“Aqui em Manaus não é segunda onda, é o tsunami inteiro. Não deixem isso acontecer no resto do país”
Enquanto o colapso avança pelo interior do Amazonas, médicos dizem que continuam na iminência de faltar oxigênio em crise que tende a se estender mesmo com recebimento de cilindros
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Manaus se prepara para um fim de semana de angústia. Depois de viver o dia mais dramático da pandemia ―quando o oxigênio acabou em vários hospitais e profissionais de saúde precisaram ventilar pacientes no braço (ou ambuzá-los, no jargão médico)― a crise segue aguda e sem perspectiva de quando deverá ser controlada. O Amazonas só consegue produzir um terço da demanda do insumo e enfrenta dificuldades logísticas para fazê-lo chegar rapidamente de outros Estados. O desabastecimento de oxigênio avançou rumo ao interior do Amazonas, em outros pronto socorros da capital e até na rede privada. Em Manaus, familiares passavam horas em filas para tentar comprar o insumo para pacientes. O colapso do sistema de saúde afetou os pacientes com covid-19 e com outras doenças. O Amazonas precisou pedir socorro para transferir 61 bebês prematuros que precisavam de UTI pela manhã. À noite, o Governo Federal disse ter garantido oxigênio suficiente para mantê-los por mais 48 horas no Estado, um conta-gotas desesperador que ganhou manchetes pelo mundo.
“Estamos demonstrando como não deixar isso acontecer com o resto do país. Aqui não é segunda onda, é o tsunami inteiro”, diz uma médica da linha de frente que preferiu não se identificar. Ela trabalha nas redes pública e privada de Manaus e conta que em ambos o cenário é ruim. Hospitais públicos receberam 100 cilindros de oxigênio na manhã desta sexta-feira―vindos com ajuda do Governo Federal e também de doações―, mas o que chega vai sendo consumido rapidamente diante do grande volume de pacientes. O cenário é de incerteza. “Ainda esperamos se vão conseguir abastecer novamente. A ansiedade é o que reina entre nós, profissionais de saúde, porque a gente não sabe se vai durar ou não, se vai ter reposição”, diz.
Enquanto isso, médicos relatam sensação de impotência e se preparam caso haja a necessidade de ambuzar os pacientes novamente, o termo usado para tentar ventilar manualmente para tentar fazer chegar o ar aos pulmões. Tentam racionar ao máximo o oxigênio disponível, reduzindo as quantidades em pacientes com menos chance de sobreviver. “Escolher quem vive e quem morre não deveria ser nosso papel”, segue esta médica de Manaus. Alguns hospitais concentraram todo o insumo que chegava em um único andar para aumentar a pressão na tubulação e ter maior aproveitamento. “Você consegue imaginar um local cheio de pessoas, todas dependentes de oxigênio, bem mais de 100 pessoas, e de repente a iminência de faltar isso?”, pergunta a médica, que vê ―incrédula com a falta de planejamento dos governantes― uma situação de guerra.
O governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC), diz que a demanda por oxigênio aumentou cinco vezes nas duas últimas semanas enquanto tanto o presidente Bolsonaro diz que o Governo Federal fez sua parte. Já o vice, Hamilton Mourão, credita o colapso à nova cepa do coronavírus e alega que não era possível prevê-la, uma visão confrontada pela própria OMS (Organização Mundial da Saúde) nesta sexta ao comentar a tragédia de Manaus. “A situação é difícil, e não são as novas variantes que estão levando a isso. Elas podem ter um impacto, mas é muito fácil jogar a culpa na variante. Infelizmente é também o que nós não fizemos que causou isso”, disse o diretor-executivo da OMS, Mike Ryan, que criticou o relaxamento no distanciamento social.
O Brasil vive um apagão na vigilância de mutações num cenário de falta de verba, segundo pesquisadores, que alertam sobre o agravamento da pandemia há meses. O Amazonas registrou 82 mortes nesta sexta-feira, superando 6.000 óbitos desde o começo da crise sanitária global. E tem 2.222 pessoas com covid-19 internadas. Sem conseguir dar assistência a todos, tem transferido pacientes a outros Estados. Está em construção, com apoio do Governo Federal, uma espécie de “enfermaria de campanha”, que deve ficar pronta na semana que vem. Nesta sexta-feira, o Amazonas bateu recorde de sepultamentos realizados em um dia durante toda a pandemia: 213. O maior número diário havia sido 167, em abril. Em Manaus, alguns cemitérios ampliaram seus horários de funcionamento para dar conta dos enterros.
O colapso avança para o interior
Fora dos hospitais, a situação em Manaus é dramática também para pacientes com covid-19 tratados em casa. Pelas redes sociais, voluntários se organizavam para transportar cilindros a quem não tinha como fazê-lo ―seja com oxigênio doado ou comprado. O desabastecimento de oxigênio que colapsou Manaus avançou também por cidades do interior, onde o sistema de saúde é ainda mais frágil. “Antes a luta era por leitos, hoje é por oxigênio. Nosso hospital ontem sucumbiu e tivemos que tomar decisões difíceis. Perdemos sete pessoas”, narrou o prefeito de Manacapuru, Beto Dangelo, em um vídeo postado no Facebook. O gestor diz que a crise toma o Estado inteiro.
Outros Estados e o Governo Federal se articulam para tentar enviar o gás, mas a logística é complexa. O Governo do Estado criou uma central para concentrar doações de oxigênio de empresas e pessoas físicas de todo o país. Até influencers, atores, cantores e humoristas famosos se engajaram em uma mobilização para tentar comprar o gás diante de uma crise de saúde sem precedentes. Tentam furar dificuldades tanto para comprar no Estado (onde há esgotamento) quanto para fazer chegar lá, com algumas operações exitosas. Diante da gravidade do problema, a Anvisa flexibilizou o nível de pureza exigido do oxigênio medicinal de 99% para 95%, uma forma de tentar acelerar a produção. O governador do Amazonas, Wilson Lima, também chegou a requisitar o insumo de empresas privadas, que têm dito já ter enviado o que tinham em estoque. A venda individual que está sendo feita ―e onde se formam filas― é só para recarregar cilindros menores.
O que se conseguiu até agora aliviou apenas um pouco a situação. O sistema de saúde de Manaus atende 62 municípios e está colapsado. Algumas emergências fecharam as portas e deixaram de receber novos pacientes para ver se os estoques duram pelo menos 24 horas a pacientes já internados. Hospitais particulares compram usinas, um equipamento para produzir o insumo lá mesmo. O Governo de Manaus diz que também iniciou a prospecção para contratação de mini-usinas para os hospitais de Manaus, medida assumida pelo Ministério da Saúde, que está providenciando essa solução. “É um apagão de oxigênio”, define outro médico que atua na linha de frente da covid-19 em Manaus. Ele diz já ter vivido uma situação assim durante o primeiro pico da pandemia em uma cidade do interior, mas em uma escala menor. E conta ter precisado decidir com o corpo médico se daria sedativos aos pacientes que asfixiavam ―o que reduziria o sofrimento durante a asfixia, mas reduziria as respostas do corpo e poderia acelerar o óbito. “Uma paciente de 60 anos tinha toda condição de sair [do hospital se houvesse oxigênio]”, narra o profissional. Na falta do insumo, porém, foi preciso decidir como amenizar o desfecho inevitável. Acabou tomando os sedativos para aliviar a falta de ar. “Decidimos que não íamos deixá-la agonizando tantas horas. Ela ficou calma e morreu em uma hora. É muito triste”, completa.
“Era uma situação evitável”
Agora, segundo este médico, a situação é ainda mais dramática porque os pacientes estão chegando nas unidades de saúde com quadros mais graves e com maior necessidade de oxigênio. Ele diz que uma solução por enquanto tem sido racionar oxigênio. “É aquela decisão do cobertor curto, que você corta as pernas. Não é que deixamos de dar assistência. Foi o que conseguimos fazer. É aquela sensação de impotência, de as coisas saírem do teu controle e você saber que era uma situação evitável”, afirma.
O colapso do Amazonas escancara a negligência política durante a pandemia, com governantes tentando se eximir da culpa pela crise. “Nós fizemos a nossa parte”, disse o presidente Jair Bolsonaro, que também voltou a defender o uso de medicamentos comprovadamente ineficazes para tratar a covid-19. Nos hospitais de Manaus, médicos relatam que usavam o chamado kit covid e que isso não surtiu quaisquer efeitos para evitar o novo colapso. “O Governo está fazendo além do que pode, dentro dos meios que a gente dispõe”, declarou o vice-presidente, Hamilton Mourão.
O governador do Amazonas chegou a aumentar medidas restritivas no fim do ano passado, mas voltou atrás após protestos de comerciantes e empresários. “Todas as decisões que tomamos foram baseadas em critérios técnicos, tentando encontrar um equilíbrio entre a proteção da vida e as atividades econômicas”, afirmou em entrevista à GloboNews. Já o prefeito de Manaus, David Almeida, culpou o isolamento geográfico do Estado pela crise de abastecimento de oxigênio.
O epidemiologista Jesem Orellana, da Fiocruz-Amazônia, defende que a solução ao colapso precisa ser dada em Manaus, referindo-se às ações para transferência de pacientes e à necessidade de controlar a epidemia, especialmente diante da nova cepa potencialmente mais transmissível. “Precisamos implementar medidas preventivas para reduzir a violência da circulação viral. Se as pessoas se infectam hoje, vão demandar mais atenção hospitalar daqui a 15 dias”, diz.
Em meio à escalada, o Supremo Tribunal Federal voltou a intervir nas ações da pandemia. O ministro Ricardo Lewandowki determinou que o Governo federal “promova, imediatamente, todas as ações ao seu alcance para debelar a seríssima crise sanitária instalada em Manaus”. Destacou que a ação federal deve suprir a escassez de oxigênio e outros insumos nas unidades de saúde, sem prejuízo da atuação do governador e dos prefeitos. Exigiu ainda que o Governo Federal apresente em até 48 horas “um plano compreensivo e detalhado acerca das estratégias que está colocando em prática ou pretende desenvolver para o enfrentamento da situação de emergência, discriminando ações, programas, projetos e parcerias correspondentes, com a identificação dos respectivos cronogramas e recursos financeiros”.
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