Morrer sem oxigênio em Manaus, a tragédia que escancara a negligência política na pandemia

Após minimizar crise, Planalto e Governo do Amazonas correm contra o relógio para transferir pacientes a outros Estados e conseguir importar insumo. Nos primeiros dias de janeiro, morreram 1.654 pessoas no Estado, mais do que entre abril e dezembro

Homem chora do lado de fora do hospital 28 de Agosto, em Manaus. No vídeo, desespero das equipes médicas e de parentes ao redor dos centros de atendimento.Vídeo: MICHAEL DANTAS / AFP| AFP

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“É difícil você ter que escolher quais pacientes devem receber oxigênio suplementar. Os que têm mais chances.” O relato é de um médico do Hospital Universitário Getúlio Vargas (HUGV), em Manaus, um dos epicentros da crise sem precedentes que escala na capital do Amazonas. A cidade registrou ao menos duas mortes nesta quinta-feira por causa da falta de oxigênio nas unidades de saúde colapsadas pelo aumento das internações por covid-19 ―mas os números são incertos e vários relatos davam conta de que o total de vítimas que morreu sem ar pode ser maior. As cenas de desespero das equipes médicas e de parentes ao redor dos centros de atendimento se multiplicaram, numa situação que é crítica e não têm solução imediata, admitem agora as autoridades do Estado e do Governo federal, depois de meses de negligência com o avanço da pandemia. No momento, há uma corrida desesperada tanto para transportar cilindros de oxigênio na própria capital como para importar o insumo até via fluvial de outras partes do país. Enquanto isso, tenta-se transferir pacientes estáveis para outros Estados.

Ao longo do dia, o médico do HUGV, que preferiu não se identificar, contava que todos os pacientes lá internados deveriam receber uma fração mais baixa de oxigênio, uma vez que os estoques só eram suficientes para cobrir oito horas. No Instagram, o médico intensivista Anfremon D’Amazonas, que também trabalha no Hospital Getúlio Vargas, contou a operação hercúlea montada para tentar salvar os pacientes apesar da falta de O2. Primeiro colocaram todos de bruços (pronar, no jargão médico), para melhorar a oxigenação. Depois, a corrida para trazer pequenas quantidades de oxigênio usadas em outros setores do hospital. “A gente conseguiu salvar quem dava, quem podia”, lamentou.

No Serviço de Pronto Atendimento (SPA) e na Policlínica Dr. José de Jesus Lins de Albuquerque, na zona centro-oeste da cidade, a busca por transporte de cilindros de O2 mobilizou famílias de pacientes internados e até mesmo policiais, convocados para reforçar a segurança em frente às unidades de saúde. Há relatos de familiares que pagaram do próprio bolso para garantir oxigênio oas doentes. No SPA do Coroado, no leste, ao menos dois pacientes morreram à espera de atendimento.

“Considero que sim, há um colapso no atendimento de saúde em Manaus, a fila para leitos cresce bastante, estamos hoje com 480 pessoas na fila”, admitiu o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, em uma transmissão ao vivo ao lado de Jair Bolsonaro nesta quinta-feira e falou das ações da Força Aérea Brasileira (FAB) para levar oxigênio até a cidade. Nesta semana, Pazuello esteve no Amazonas e usou sua entrevista a jornalistas no local para cobrar a aplicação do “tratamento precoce” contra a covid-19 usando cloroquina. Trata-se de uma obsessão da Administração federal que não tem respaldo científico no mundo, apesar de ser chancelado por entidades de classe médicas no Brasil.

“Nosso Governo, um Governo que eu votei, tem sido negacionista. Relativiza tudo, banaliza tudo”, seguiu criticando o médico Anfremon D’Amazonas. “A última coisa foi dizer que o que está acontecendo em Manaus foi por falta de tratamento precoce. Dizer isso é uma sacanagem com quem trabalha sério. O Governo tem que preparar o país para a segunda onda, porque ela é devastadora e está levando vidas.”

Recorde de mortes nos primeiros 14 dias de janeiro

Em meio à comoção pelo colapso no atendimento, pacientes com quadro clínico estável começaram a ser transferidos para outros Estados. O Governo do Estado anunciou a remoção inicial de 90 pessoas para os Estados do Maranhão, Piauí e Distrito Federal nesta quarta. Estão previstas ainda transferência de outros 145 com a ajuda da Força Aérea Brasileira nos próximos dias para o Rio Grande do Norte e Goiás.

A operação tenta desafogar a demanda por oxigênio que registrou um aumento de 160% em relação ao primeiro pico da doença, nos meses de abril e maio de 2020. Na ocasião, o consumo máximo foi de 30 mil metros cúbicos/mês. No segundo pico, o consumo passou a 76 mil metros cúbicos por dia, segundo o principal fornecedor do gás ao Governo do Estado, a fábrica White Martins. A empresa afirma que este quantitativo é quase o triplo da capacidade nominal de produção da unidade local, de 28 mil metros cúbicos, após ampliação.

No momento, há 2.205 pessoas internadas nas redes pública e privada, num cenário de escassez de leitos e de UTIs. Em mais de dez meses de crise, não houve aumento da capacidade efetiva de atendimento intensivo do Estado, toda concentrada em Manaus, apenas remanejamento de alas para serem dedicadas ao combate da covid-19. O Amazonas contabiliza mais de 5.900 óbitos, num Estado com uma população de 4,2 milhões habitantes. Nesta quinta, foi dia de mais recordes: o Estado registrou o maior número de infecções em um único dia, 3.816 casos nas últimas 24 horas, totalizando 223.360 infectados. Nos primeiros 14 dias de janeiro, foram 1.654 mortos por todas as causas na cidade. É mais do que todos os sepultamentos realizados desde o auge da pandemia, em abril, até dezembro: 1.285 óbitos, um número catapultado pela pandemia.

Hospitais de Manaus sofrem com falta de oxigênio durante a pandemia de coronavírus, em 14 de janeiro.
Hospitais de Manaus sofrem com falta de oxigênio durante a pandemia de coronavírus, em 14 de janeiro.Márcio James

Uma operação via fluvial e aérea foi iniciada para trazer oxigêno de outras plantas da empresa em Estados como Pará, São Paulo e Ceará. De balsa, a duração da viagem chega a durar de 4 a 5 dias. Via aérea, cada viagem em um C130 (Hércules da FAB) consegue transportar 5.000 metros cúbicos do gás. Nesta quinta-feira, a aeronave encontrava-se em manutenção para poder retornar ao trajeto. Para suprir a demanda atual seriam necessárias 35 viagens diárias.

Mas a escassez não era apenas de O2. Medicamentos previstos para quatro meses, como fentanil, um opióide sintético utilizado contra dores intensas, estão sendo consumidos em uma semana. No caso da claritromicina, indicada para o tratamento de pneumonia, sinusite crônica e aguda e amidalite aguda, o consumo previsto para um ano está sendo feito em 10 dias. “Vamos ter furo na programação e atendimento”, diz uma mensagem de um funcionário do hospital a que a reportagem teve acesso.

O problema da falta de oxigênio atinge diretamente a estratégia de ampliação do atendimento adotada até então, principalmente no Hospital Getúlio Vargas, que era de expandir as alas dedicas à covid-19. A crise escala apenas um dia após o ministro da Saúde anunciar, em Manaus, a abertura de 60 novos leitos.

No segundo colapso do sistema de saúde de Manaus na pandemia, a falta profissionais é também um fator na crise, segundo o Conselho Regional de Enfermagem do Amazonas. “A maioria conta com pessoal afastado. Além disso, os que estão trabalhando recebem avental, luva de baixa qualidade, com gramatura inferior à recomendada para atuação em UTI”, afirma o presidente da entidade, Sandro André.

Nova cepa e transmissão acelerada em todo o Brasil

O panorama é ainda mais explosivo e imprevisível com a descoberta de uma nova cepa do coronavírus confirmada pela Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS-AM) circulando no Estado, com uma velocidade maior de transmissão. “A taxa de transmissão está em 1,3. Acima de um é uma velocidade que aumenta o número de casos. É uma velocidade semelhante à observada durante o primeiro pico em abril e maio”, afirmou a diretora da FVS-AM, Tatyana Amorim.

A aceleração da transmissão não se dá apenas no Amazonas. Todas as regiões do país tem índices maiores do que 1, como o Estado do Norte, segundo a ferramenta da USP e da Unesp que utiliza matemática e inteligência artificial para analisar dados da covid-19. A média móvel de casos medidas por um consórcio de meios de imprensa registrou recorde nesta quinta. Já a média móvel de mortes voltou a ser mais de 1.000 e é 42% maior do que há 14 dias atrás.

Depois de recuar em impor um lockdown em dezembro por causa de protestos populares, o Governo do Estado, chefiado por Wilson Lima (PSC) anunciou, pela primeira vez, toque de recolher em todo o Estado, de 19h às 6h, exceto para pessoas que trabalham em áreas essenciais, além de proibir o transporte coletivo entre rodovias e rios, exceto para transporte de carga. Ainda nesta quarta-feira, o Governo do Estado do Pará proibiu a entrada no estado de embarcações de passageiros provenientes do Amazonas.

Já a Prefeitura de Manaus reduziu para 25% a circulação da frota de ônibus da capital no horário entre 19h e 06h da manhã. No contraturno, o funcionamento dos ônibus continua com a redução adotada anteriormente de 20% do total da frota que atualmente é de 831 veículos. Uma decisão da Justiça federal ordenou o adiamento do Enem no próximo domingo no Estado, mas a AGU (Advocacia Geral da União) recorreu.

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