‘Apagão’ da vigilância genética no Brasil atrasa detecção de novas cepas, que preocupam ante colapso de Manaus
Nova variante do coronavírus detectada no Amazonas alarma cientistas, que estudam impacto na situação no Estado. País faz cem vezes menos sequenciamentos genômicos que o Reino Unido
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Enquanto o mundo se preocupa com os impactos de novas cepas de coronavírus potencialmente mais transmissíveis, o Brasil não sabe precisar quais variantes do vírus circulam no seu território. O país testa pouco a sua população e é capaz de sequenciar geneticamente um volume muito pequeno destes exames ―um reflexo da histórica falta de financiamento na ciência. É comum ocorrer mutações e a maioria não traz grandes preocupações. Mas a chamada vigilância genômica é ainda mais importante durante uma pandemia. É este trabalho que indica, por exemplo, se existem cepas mais transmissoras ou letais e se podem escapar da proteção das vacinas, assim como se é preciso aprimorar os testes para que continuem capazes de confirmar infecções. Nesta quinta-feira, o Governo britânico vetou a entrada de voos vindos do Brasil para evitar a entrada de uma nova cepa do vírus, identificada no Japão em viajantes provenientes do Amazonas. O Estado vive uma situação cada vez mais grave e, com o avanço da covid-19, viu acabar o oxigênio dos hospitais de Manaus.
A identificação da variante brasileira do coronavírus exemplifica a dificuldade do país em vigiar as mutações. Para se ter uma ideia, o Brasil realiza cem vezes menos sequenciamentos genômicos que o Reino Unido (cerca de 1% em relação ao realizado pelos britânicos), referência global nessa área. No final do ano passado, os cientistas britânicos detectaram rapidamente uma variante potencialmente mais transmissível. Por enquanto, os cientistas ainda não são capazes de apontar quanto a nova variante do coronavírus detectada em Manaus é responsável pelo segundo colapso do sistema de saúde do Amazonas, embora seja forte a hipótese de sua influência.
Quando o Japão emitiu no domingo passado, 10 de janeiro, o alerta sobre a variante de Manaus ―com mutações potencialmente mais transmissíveis―, o grupo de pesquisadores da Fiocruz no Amazonas que trabalha com a vigilância genômica tinha acabado de concluir o sequenciamento de amostras do mês de novembro. Desde março de 2020, o grupo trabalha simultaneamente com o sequenciamento genômico e o diagnóstico por exames laboratoriais. A primeira grande onda da doença no Estado sobrecarregou os pesquisadores, que passaram três meses sem conseguir avançar na vigilância genômica. Só com um arrefecimento dos casos, o grupo conseguiu retomar as atividades e voltar a analisar amostras vindas de praticamente todos os municípios. A partir do alerta japonês, estes pesquisadores voltaram esforços para comparar com o sequenciamento de novembro e confirmaram que a origem daquela linhagem ―potencialmente mais transmissível― era mesmo do Amazonas.
“Isso foi surpreendente. Como tínhamos o sequenciamento até novembro, vimos que tinha origem no mesmo grupo, só que com muitas mutações em um período curto de tempo”, conta o pesquisador e vice-diretor de Pesquisa e Inovação do Instituto Leônidas & Maria Deane (ILMD/Fiocruz Amazônia), Felipe Naveca. Agora, o grupo trabalha com o sequenciamento do vírus em amostras colhidas de pacientes infectados em dezembro para verificar se, no fim do ano passado, já havia circulação desta variante, que tem as mutações semelhantes às da África do Sul e do Reino Unido, além de outras com impactos ainda desconhecidos.
As mutações encontradas nestes países foram descritas por outros estudos, que têm indicado até agora um poder maior de transmissão em relação ao coronavírus identificado em Wuhan (China) em dezembro de 2019, mas não de agravamento de quadros clínicos de covid-19, aponta Naveco. Também não há, neste momento, indicativo de que elas escapam da proteção das vacinas. Diante da descoberta desta nova variante, o Ministério da Saúde emitiu alerta para todos os Estados reforçarem a vigilância. Preocupado, o governador do Pará, Helder Barbalho, anunciou que proibiria a circulação de veículos aquáticos com o Amazonas ― os dois Estados não têm estradas entre eles, mas os voos, atribuição do governo federal, estão mantidos.
“Provavelmente esta nova variante que emergiu recentemente adquiriu mutações que podem estar associadas a uma transmissão mais rápida, que escapa aos anticorpos, mas também com outro conjunto de mutações que ainda não sabemos exatamente o que fazem”, explica o cientista Nuno Faria, do Centro Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (Cadde), que tem trabalhado com pesquisadores da Fiocruz. Cientistas ainda estudam se a nova variante é mais transmissível e se consegue escapar da resposta imune de quem já teve a covid-19. A Fiocruz detectou nesta quarta-feira (13) o primeiro caso de reinfecção pela nova variante do coronavírus do Amazonas.
O Amazonas estuda também outros fatores que podem explicar o agravamento da pandemia neste momento, como os contágios durante as festas de fim de ano e a sazonalidade de doenças causadas por vírus respiratórios. Entre novembro e abril, um período chuvoso, historicamente há aumento de infecções virais no Estado. “A gente tem visto desde novembro um aumento que já começava a assustar. Somamos situações como as festas de fim do ano e os protestos pra reabrir o comércio com uma variante mais infecciosa circulando”, explica Naveca.
O secretário de Saúde do Amazonas, Marcellus Campêlo, anunciou na última segunda-feira que 200 amostras de exames de pacientes com covid-19 serão analisadas em um estudo genético para determinar se a nova onda da doença no Estado, de fato, é causada pela nova variante do novo coronavírus. Mesmo assim, a variante tem preocupado a comunidade científica brasileira, especialmente pelo contexto do país, que nunca conseguiu pôr em prática políticas eficazes para controlar o contágio, vive neste momento um agravamento da pandemia e tem sistemas de saúde sob pressão.
Apagão no sequenciamento genômico
O caso do Amazonas é um exemplo de uma espécie de apagão de dados genômicos do novo coronavírus no país. Durante a pandemia, o Brasil até reforçou as redes que trabalham com o sequenciamento genético. Há vários grupos trabalhando nisso no país, ligados aos ministérios da Saúde e da Ciência e Tecnologia, alguns com parceria com o Cadde. Ainda assim, apenas 0,024% dos casos confirmados no país foram sequenciados, enquanto no Reino Unido esse índice chega a 5% e, na África do Sul, a 0,256%. “O Brasil já testa pouco, e o sequencia menos ainda. Tudo isso é reflexo de uma histórica falta de financiamento”, explica Naveca. Os recursos para a ciência no ano passado, quando implodiu a pandemia, é 65% menor que os previstos em 2015, quando iniciaram os cortes na área. O cenário para este ano também é dramático. “A gente tem no Brasil recursos para fazer um número limitado de amostras”, endossa a pesquisadora Ana Teresa Vasconcelos, do Laboratório Nacional de Computação Científica.
O grupo da Fiocruz no Amazonas tem 190 genomas sequenciados até o momento. “Poderíamos fazer mais, mas temos o trabalho no diagnóstico e os recursos ainda estão longe do necessário”, explica Naveco. Os problemas para ampliar o trabalho vão além de falta de equipamentos. “O gargalo é investimento para reagente e para pessoal. Eu diria que estamos em um nível de medio para baixo no sequenciamento”, aponta o pesquisador. A desvalorização do real em relação ao dólar nos últimos meses também tem dificultado os trabalhos do grupo, já que todos os insumos necessários são importados. “O que a gente podia comprar caiu pela metade. No Amazonas, a gente sofre muito com isso”, diz. Naveco conta que, no ano passado, o grupo ficou praticamente sem insumos e precisou pedir apoio da Força Aérea para transportá-los. “Precisamos importar os insumos e muitos deles não estão disponíveis para pronta entrega. A importação pode demorar de 30 a 60 dias”, acrescenta Vasconcelos.
Nos últimos meses, houve atraso nos trabalhos de vigilância genômica no Brasil, conforme admite o pesquisador Fernando Spilki, professor de Virologia na Feevale e coordenador da Rede Corona-ômica, criada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações durante a pandemia para liderar os esforços no sequenciamento. “Existiu um movimento no início que gerou mais sequenciamento, com esforço de redes internacionais. Depois, não teve tanto e agora começamos a recuperar o tempo perdido”, afirma. Spilki diz que trabalha para ampliar a rede e o número de pessoas envolvidas neste trabalho para dar respostas mais rápidas. “Não temos a capacidade de fazer sequenciamento como faz o Reino Unido, que chegou a depositar num dia só 7.000 sequências. Mas a gente vem trabalhando para ampliar nossa capacidade. Neste momento, estamos preocupados, sequenciando o máximo de genomas e vendo quais podem nos preocupar”, acrescenta.
Esse monitoramento é o que permitiu, por exemplo, identificar uma nova cepa que surgiu no Rio de Janeiro em julho e que tem predominado nos novos casos de covid-19 do Rio Grande do Sul. Ele viabiliza traçar a rota do vírus, mas também é importante para saber se as ferramentas de diagnóstico existentes precisam ser aprimoradas para detectar novos casos. “Se tiver mutação em uma região do vírus que o teste reconhece, pode dar falso negativo. Com essa informação, é possível ajustar e fazer o teste voltar a funcionar”, explica Naveco.
No contexto da vacinação, a vigilância genômica também é crucial. Isso porque podem surgir mutações capazes de furar a proteção oferecida pelo imunizante, que precisaria ser aprimorado. “Até o momento nenhuma das variantes interfere na vacina”, alerta Ana Teresa Vasconcelos. Ela explica que foram observadas mutações na proteína Spike, onde atuam vários imunizantes, mas que conseguir interferir nessa proteção é mais complexo. “E mesmo identificado alguma muito prejudicial, essas vacinas são feitas de forma que podem ser adaptadas”, pondera.
O início da vacinação da população pode reduzir o volume das mutações. “Quanto menos vírus circulando, é menos pessoas transmitindo. Para ele sobreviver, tem que ir infectando”, explica. Uma política para conter os contágios seria importante neste sentido. “As medidas no Brasil são muito brandas e estamos dando muito espaço pra que vírus evolua. Precisamos, o mais urgente, além de medidas mais restritivas, de vacinação. Precisamos conter isso para que o vírus não continue se diversificando e tenhamos problema no futuro com vacinas”, finaliza Spilki.
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