Cientistas estudam a virulência da ‘mutação britânica’ do Sars-Cov-2 e dão como certo que vírus já se espalhou
Pesquisadores se lançam agora a entender se as mudanças genéticas da nova cepa do coronavírus, detectada no Reino Unido, aumentam sua capacidade de infectar e causar a covid-19
No fim de setembro, cientistas britânicos detectaram dois pacientes infectados com uma variante do coronavírus nunca antes vista. Esta cepa do SARS-CoV-2 acumulava 17 mutações diferentes em sua sequência genética, um número surpreendentemente alto. Oito dessas mudanças estavam na proteína S, a parte fundamental do novo coronavírus, que lhe permite entrar nas células humanas e iniciar a infecção. Dois meses depois, esta variante se expandiu pelo sul do Reino Unido até 70% mais rápido que as versões anteriores, segundo o Governo britânico. O país estabeleceu um confinamento quase completo, e muitos países europeus fecharam suas fronteiras a viajantes procedentes do Reino Unido. Por enquanto não há forma de saber se o avanço acelerado desta versão do coronavírus se deve em parte às mutações ou apenas a uma transmissão acelerada pela permissividade das autoridades até o momento. Dezenas de cientistas britânicos se lançaram aos experimentos necessários para averiguar se esta nova cepa é mais contagiosa e virulenta.
“Provavelmente esta nova versão já se espalhou por muitos outros países da Europa”, diz Ravindra Gupta, pesquisador da Universidade de Cambridge e membro do consórcio nacional de coronavírus do Reino Unido. Essa organização se encarrega de analisar amostras aleatórias de pacientes com covid-19 de todo o país, sequenciar seu genoma completo e assim seguir o rastro das diferentes variantes do vírus que correm por seu território.
O Governo britânico chamou a nova cepa de VUI – 202012/01, onde VUI significa “variante sob investigação”, na sigla em inglês, 202012 se refere ao ano e mês da sua notificação, e 01 por ter sido a primeira comunicada no mês. De todas as suas mutações, há três especialmente preocupantes. O SARS-CoV-2 é uma sequência de quase 30.000 letras colocadas em perfeita ordem e que contêm as instruções necessárias para que o vírus entre nas células humanas e utilize seu maquinário biológico para fabricar dezenas de cópias de si mesmo. As mutações são lidas como matrículas que identificam a mudança concreta na sequência genética viral. Por exemplo, a N501Y, primeira mutação potencialmente perigosa do vírus britânico, significa que há uma mudança na posição 501, de N (asparagina) para Y (tirosina). Esta minúscula mudança se encontra na proteína S, que o vírus usa para infectar, e é possível que ela lhe permita se unir com mais eficácia às células humanas. As outras duas mutações mais preocupantes na proteína S – 69-70del e P681H – poderiam permitir ao vírus escapar do sistema imunológico e aumentar sua efetividade de entrada nas células, segundo o relatório preliminar do consórcio britânico.
Algumas das 17 mutações já foram detectadas em versões de outros países, por exemplo a vista em visons e humanos na Dinamarca, mas nunca tinham aparecido tantas e todas juntas. Na África do Sul, outra variante com a mesma mutação N501Y e outras duas mudanças na proteína S foram associadas a um aumento dos contágios em duas províncias, segundo um estudo preliminar publicado nesta segunda. A mesma variante britânica já foi detectada na Dinamarca, Holanda e Austrália, explicou Maria van Kerkhove, epidemiologista da Organização Mundial da Saúde (OMS). E foi encontrado também pelo menos um caso em Gibraltar, enclave britânico no sul da Espanha, informa a Reuters.
O mais urgente agora é estudar se o sistema imunológico pode neutralizar esta cepa. Para isso, serão feitos experimentos com anticorpos extraídos de pessoas que passaram pela doença. Um trabalho desse tipo leva pelo menos um mês, adverte Gupta. Antes, em cerca de duas semanas, será possível fazer outro estudo crucial, em cultivos celulares, que indicará se esta nova variante se replica mais rapidamente que as anteriores. Até então, não se saberá com certeza se a expansão acelerada desta nova versão do vírus no Reino Unido se deve às novas mudanças genéticas do coronavírus, ou simplesmente ao acaso ajudado por um relaxamento nas medidas de controle.
“O Reino Unido destacou-se por suas medidas pouco rigorosas, e estas em parte poderiam explicar a maior propagação observada”, afirma Fernando González Candelas, pesquisador da Fundação Fisabio, entidade de pesquisas biomédicas com sede em Valência, e membro do grupo espanhol que analisa genomas do SARS-CoV-2.
Há alguns meses, sua equipe já detectou uma nova variante que tinha surgido na Espanha entre trabalhadores temporários e depois se expandiu rapidamente pela Europa. Naquele caso não ficou demonstrado que fosse mais contagiosa ou virulenta. Algo semelhante ocorreu na Dinamarca, levando o Governo local a abater todos os 17 milhões de visons criados do país, para evitar o risco de expansão de uma cepa que tinha saltado de pessoas para esses mamíferos, e depois novamente para pessoas. Por enquanto não ficou demonstrado que nenhuma das quatro mutações tornasse o vírus mais perigoso, e também se descartou que possam interferir no resultado das vacinas. Este é também o caso da cepa britânica, explica Candelas.
“Não devemos nos preocupar de que estas mutações afetem a eficácia das vacinas, elas funcionarão do mesmo jeito”, aponta González Candelas. O geneticista opina que “por enquanto não deve haver motivo de preocupação perante a nova variante do Reino Unido, mas sim vigilância”. E acrescenta: “Minha previsão é que esta nova versão será detectada na Espanha assim que analisarmos os genomas do final de novembro e começo de dezembro, mas a frequência será muito mais baixa”. O consórcio, que analisa cerca de mil genomas por mês, espera ter novos dados nesta semana.
“Embora esta variante tenha se espalhado mais rapidamente, ainda não chegou a ser a dominante no Reino Unido”, destaca Iñaki Comas, biólogo do Instituto de Biomedicina de Valência, ligado ao CSIC (agência espanhola de pesquisa científica). “Esta nova versão estava no lugar certo e na hora exata, e está se tornando mais frequente em competição com outras anteriores. É muito difícil evitar que se expanda para o resto do mundo, mas na maioria dos casos observados estas novas variantes não representam um problema”, observa.
“Parece que o vírus deu um salto evolutivo importante e será preciso tomar cuidado e estudá-lo bem”, opina Isabel Sola, codiretora de outra vacina experimental contra a covid-19 no Centro Nacional de Biotecnologia, em Madri. A quantidade de mutações acumulada “escapa a tudo o que foi observado anteriormente”, ressalta.
Como pôde um vírus que mudava uma ou duas vezes por mês acumular 17 mudanças de repente? O caso de um paciente que morreu de coronavírus no Reino Unido poderia ajudar a explicar. Tratava-se de uma pessoa cujo sistema imunológico estava debilitado e que sofreu uma infecção muito mais longa que o normal, de 100 dias. O paciente recebeu plasma de pessoas que tinham passado pela infecção e que contém anticorpos capazes de neutralizar o vírus. O tratamento não deu certo. Em um estudo ainda preliminar publicado há alguns dias, a equipe do pesquisador da Universidade de Cambridge detectou que essa variante do vírus desenvolveu duas das mutações preocupantes em sua proteína S. A equipe cogita que a origem desta nova versão possa estar nesses pacientes “crônicos”, com sistemas imunológicos pouco eficientes e que permitem ao vírus ter mais tempo para acumular mutações que possam lhe assegurar vantagens na hora de infectar organismos e driblar sistemas imunológicos.
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