Estratégia de vacinação gera receio sobre caldo de cultivo para novas variantes resistentes do coronavírus
Expansão descontrolada do novo vírus e demora na administração da segunda dose da imunização podem favorecer a aparição de mutantes. Brasil planeja privilegiar a primeira dose
As instruções para desencadear um desastre, fazendo as vacinas contra a covid-19 pararem de funcionar, são muito simples, segundo “as reflexões de um virologista anônimo e furioso” que correm de mão em mão entre milhares de cientistas nos últimos dias. O mandamento final dessa carta aberta, a cereja no bolo da impertinente hipótese, era o seguinte: “Tendo desenvolvido uma excepcional vacina de duas doses, com uma eficácia extraordinária, seria preciso administrá-la a milhões de pessoas, mas atrasando a segunda dose”.
A receita para a catástrofe desse virologista anônimo era um retrato sarcástico da delicada situação atual, com o Reino Unido e outros países tomando a polêmica decisão de adiar a segunda injeção para dispor de mais doses na primeira rodada e assim vacinar mais pessoas sob risco ―o ministro da Saúde do Brasil, Eduardo Pazuello, anunciou nesta segunda-feira que o Governo Bolsonaro vai priorizar a aplicação da primeira dose. Muitos especialistas acham que esperar três meses entre uma dose e a outra pode fazer as defesas se enfraquecerem o suficiente para que o vírus aprenda a vencê-las.
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“Eu escrevi a carta, admito”, diz com ironia Paul Bieniasz, um virologista da Universidade Rockefeller (Estados Unidos) que foi o primeiro a publicar essas “instruções para o desastre” em sua conta do Twitter. “Permitir que o vírus circule de maneira descontrolada, acumulando diversidade genética, e depois proteger de maneira incompleta a população com as vacinas é o que alguém faria para gerar mutantes resistentes às vacinas”, adverte Bieniasz.
Muitos colegas expressam a mesma inquietação. “Não sabemos o eventual impacto de uma única dose de vacinação [num período de meses]. Se a resposta imunológica induzida não for totalmente ideal, o vírus terá a oportunidade de mudar e se tornar resistente aos anticorpos”, opina a virologista espanhola Isabel Sola. “Fico um pouco receosa, porque os vírus são como a água, que sempre procura uma fresta por onde escapar”, alerta a pesquisadora, que trabalha em uma vacina experimental contra a covid-19 no Centro Nacional de Biotecnologia, em Madri.
A hipótese é fácil de entender. O novo coronavírus é uma mensagem de 30.000 letras químicas com as instruções para sequestrar as células humanas. E, como todos os vírus, não para de mudar. Acumula aproximadamente duas mudanças de letra por mês. Pode parecer pouco, mas dentro de cada pessoa infectada há até um trilhão de vírus. E a cada semana há quatro milhões de novos doentes de covid-19 diagnosticados no mundo. O matemático francês Émile Borel cogitou esta ideia há mais de um século: um milhão de macacos esmurrando um milhão de máquinas de escrever poderiam acabar escrevendo Dom Quixote.
As primeiras vacinas da Pfizer, Moderna e Oxford foram concebidas para gerar ―após duas doses― defesas contra o vírus que contêm as 30.000 letras determinadas quando ele foi identificado há cerca de um ano, na cidade chinesa de Wuhan. Se os vírus atuais acumularem suficientes mudanças, as vacinas disponíveis poderiam perder sua eficácia. “A aparição de mutantes que escapem às vacinas é possível, sem dúvida. E se alguma destas medidas políticas der lugar a respostas imunológicas menos marcadas ou de menor duração, esse escape será mais provável”, opina o biólogo Andrew Read, um dos principais especialistas mundiais na evolução dos vírus.
Read costuma contar em suas palestras que entrou no mundo da ciência há 40 anos com o objetivo de salvar da extinção os kakapos, papagaios gigantes da Nova Zelândia com aspecto de galinha e cara de coruja. Os kakapos são o resultado da seleção natural proposta em 1859 por Charles Darwin: como evoluíram em uma ilha sem predadores, não desenvolveram grandes mecanismos de proteção ―são aves incapazes de voar, procriam sem pressa, a cada quatro anos, e podem viver até um século. Quando os gatos chegaram à Nova Zelândia, acabou-se a tranquilidade dos kakapos. Restam apenas cerca de cem espécimes.
O novo coronavírus se comportou até agora como um papagaio desajeitado, de asas raquíticas, numa ilha sem predadores, mas as defesas induzidas pelas vacinas em centenas de milhões de pessoas podem impulsionar sua evolução. O exército de um milhão de macacos que escreve o roteiro da pandemia pode levar o vírus a aprender a voar para burlar as vacinas. E administrar uma só dose pode ser como mandar um gato manco para a ilha.
Read, da Universidade Estadual da Pensilvânia (EUA), estudou o caso da doença de Marek, provocada por um vírus que paralisa as galinhas. As primeiras vacinas foram lançadas em 1970, numa época em que esse agente patogênico arrasava as granjas. Em poucos anos começaram a ser detectados surtos entre os frangos já vacinados, então a vacina foi substituída na década de 1980. E nos anos noventa já foi preciso modificá-la de novo. Algumas cepas do vírus não só conseguiram se adaptar às vacinas como passaram a causar uma forma ainda mais grave da doença nas aves não vacinadas. Read acredita que, nesse vírus, as mesmas mutações poderiam explicar a resistência às vacinas e o aumento da virulência. No novo coronavírus, não há indícios deste comportamento.
A doença de Marek não é um caso isolado. A resistência às vacinas é menos habitual que a resistência aos antibióticos, mas existe. Read recorda outros exemplos bem documentados de variantes resistentes a vacinas, como as dos vírus da hepatite B e da rinotraqueíte do peru. O biólogo norte-americano afirma que partir sem a ajuda de Darwin para lutar contra um organismo que evolui é como tentar chegar à Lua sem o que Isaac Newton ensinou. É preciso desenhar as vacinas antecipando-se à evolução ―por exemplo, induzindo defesas contra inúmeras partes do vírus, para que não tenha escapatória.
A variante britânica chamada B.1.1.7, que fez os alarmes dispararem porque parece mais contagiosa, acumula 17 mutações características e representa um estranho salto com relação aos demais vírus circulantes. O consórcio britânico que vigia o genoma do coronavírus acredita que essa variante pode ter surgido em um paciente imunodeprimido após várias semanas com covid-19. Nessas condições, o vírus se multiplicaria à vontade, acumulando mutações e gerando diversas variantes dentro do doente. Um tratamento com plasma sanguíneo de um doador convalescente, talvez com poucos anticorpos, poderia ter criado o caldo de cultivo perfeito para que uma nova variante com vantagens competitivas sobrevivesse.
“Cada pessoa infectada tem uma nuvem de mutantes”, explica o virologista Esteban Domingo, do Centro de Biologia Molecular Severo Ochoa, em Madri. “Se você administrar uma primeira dose, mas após 20 dias não der a segunda, necessária para ter toda a força da vacina, você gera uma força de seleção: se houver algum mutante resistente, terá uma vantagem e poderá começar a infectar e se multiplicar em pessoas vacinadas”, adverte Domingo, pioneiro em investigar a variabilidade genética dos vírus, mais de 40 anos atrás. “Não se pode vacinar pela metade”, alerta.
O veterano virologista recorda outros exemplos muito mais tranquilizadores. A vacina da varíola conseguiu erradicar o vírus da face da Terra em 1977. A do sarampo foi usada com sucesso durante décadas sem que o vírus tenha sido capaz de evoluir para escapar. Mas, no entender de Domingo, a vacina da covid-19 não estará nesta lista triunfal. “Nós, cientistas, estamos muito acostumados a nos enganarmos, então não vou ruborizar se daqui a três meses eu perceber que estava totalmente equivocado. Minha previsão é que com a vacina da covid-19 estaremos em uma situação parecida com a das vacinas da gripe, com uma eficácia parcial e uma necessidade periódica de atualizá-las”, especula.
A eficácia das vacinas da Pfizer e Moderna contra a covid-19 alcança 95%, muito acima dos 50% habituais das injeções antigripais. O vírus da gripe também acumula duas mutações por mês, mas seu genoma tem apenas 13.500 letras, então o ritmo de mudança é “enormemente maior” que o do coronavírus, como explica a geneticista Emma Hodcroft, da Universidade de Basileia (Suíça). O vírus da gripe escapa com bastante frequência da ação da vacina, então é preciso atualizar a fórmula a cada ano.
As pesquisas do imunologista norte-americano Shane Crotty mostraram que as pessoas que já superaram a covid-19 conservam defesas robustas contra o coronavírus, mesmo passados oito meses da infecção, com um ritmo de redução muito lento. Estes resultados preliminares afastam o fantasma da revacinação anual, a menos que o vírus mude drasticamente. Crotty, do Instituto de Imunologia La Jolla (EUA), também acha preocupante a decisão de adiar a segunda dose da vacina em alguns países. “Criar situações com imunidade parcial pode servir para uma seleção preferencial de mutantes que escapem [às vacinas]. É melhor ter a máxima imunidade para deter o vírus o antes possível”, opina.
“É preciso salientar que, seja qual for a estratégia de vacinação escolhida, existe a possibilidade de que mutantes evoluam para escapar das vacinas”, aponta a geneticista Lucy van Dorp, do University College de Londres. A especialista defende um reforço dos sistemas de vigilância epidemiológica das novas variantes. “É improvável que uma vacina passe instantaneamente de ser efetiva a não ser. O mais provável seria que as mudanças no vírus dessem lugar a perdas parciais de eficácia. Isto deveria nos dar tempo para atualizar as vacinas se for necessário, o que é factível utilizando a tecnologia das vacinas atuais”, tranquiliza Van Dorp.
A maioria das vacinas aprovadas ou a caminho disso utiliza um fragmento exterior do novo coronavírus, a proteína da espícula, para treinar sem risco as defesas do corpo humano. Oito das mutações da variante britânica afetam esta proteína-chave. “Mesmo que esta nova variante tenha múltiplas mutações, só 1% desta proteína muda. E isso significa que 99% continuam sendo iguais”, garantiu desde o primeiro momento, em 22 de dezembro, Ugur Sahin, um dos responsáveis pela vacina das companhias Pfizer e BioNTech. Os experimentos preliminares publicados nesta quinta-feira pela Pfizer sugerem que as principais mutações detectadas até agora não afetam a eficácia do seu medicamento.
“As vacinas aprovadas atualmente estão focadas em objetivos relativamente pequenos ―a proteína da espícula ou uma parte dela― e, portanto, é provável que seja mais fácil escapar da imunidade gerada pela vacina do que da imunidade completa ao vírus inteiro, que ocorre depois de uma infecção natural”, observa o epidemiologista Marc Lipsitch, diretor do Centro de Dinâmicas das Doenças Infecciosas da Universidade Harvard (EUA). Lipsitch recorda que duas equipes científicas já mostraram no laboratório que o novo coronavírus pode escapar inclusive do leque de anticorpos presente no plasma sanguíneo de pessoas que superaram a covid-19.
O epidemiologista norte-americano, apesar de tudo, se diz otimista, especialmente por um fator: vacinar mais gente na primeira rodada, mesmo que a segunda dose seja adiada, ajudará a reduzir a transmissão. Haverá menos vírus circulando e, portanto, mudando. Se houver menos papagaios desajeitados, será mais difícil que um deles aprenda a voar. “Acredito que seja um problema sério, mas hipotético. Na minha opinião, a urgência em reduzir as mortes e as hospitalizações pelo vírus atual supera em importância a preocupação de que talvez as medidas para acelerar as primeiras doses, atrasando as segundas, possam precipitar a disseminação global de mutantes que tornem as vacinas menos eficazes ou ineficazes”, sentencia Lipsitch. “Mas precisamos de mais pesquisas para termos respostas.”
É exatamente na diminuição da transmissão que aposta o Governo brasileiro. “Talvez o foco seja não na imunidade completa, mas na redução da contaminação”, disse o ministro Pazuello nesta segunda-feira durante pronunciamento em Manaus. Segundo ele, com uma primeira dose, a pandemia vai “diminuir muito”. Apenas após a identificação dessa redução nas contaminações seria iniciada a aplicação de uma segunda dose. O ministro foi ao Amazonas discutir com o governador do Estado, Wilson Lima, medidas de enfrentamento à pandemia diante do avanço da doença na região. Na média dos últimos 14 dias, o Estado registrou alta de 72% nas contaminações e de 80% nas mortes.
Com Rodolfo Borges
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