Os mapas da pandemia revelam as desigualdades na América Latina

Depois de cinco meses de avanço contínuo, o coronavírus expõe as linhas invisíveis que dividem as grandes cidades da região

Vista aérea da favela de Paraisópolis ao lado de edifícios de luxo no Morumbi, em São Paulo.
Vista aérea da favela de Paraisópolis ao lado de edifícios de luxo no Morumbi, em São Paulo.AMANDA PEROBELLI (Reuters)

O coronavírus está marcando com tinta indelével as fronteiras da desigualdade nas cidades latino-americanas. A doença, que chegou oficialmente à região em 26 de fevereiro, com um brasileiro de São Paulo que estava na Itália, e causou a primeira morte em Buenos Aires pouco mais de uma semana depois, não demorou para entrar na fase de contágio comunitário, deixando em situação de emergência os sistemas de saúde de alguns países.

A covid-19 levou os líderes da região e milhões de famílias a enfrentar o dilema impossível de como interromper sua expansão sem afundar a economia. Embora o vírus infecte tanto ricos como pobres, há grandes diferenças quando se trata de combatê-lo, dependendo da classe social. Ficar confinado, manter distância social, permanecer em casa e até lavar as mãos são ações muito mais difíceis para quem vive amontoado e, às vezes, sem acesso à água corrente em bairros de baixa renda ou favelas, nos quais os habitantes estão em situação desvantajosa para enfrentar a pandemia.

Uma análise de dados de quatro das maiores cidades da região revela como o fosso ficou exposto com a pandemia, que se espalhou mais fortemente pelos bairros mais pobres da América Latina urbana. Em São Paulo, a maior cidade da América Latina, um zoom milimétrico revela as fronteiras invisíveis pelas quais a covid-19 se move; na enormidade da área metropolitana que acompanha a Cidade do México, encontramos o peso da densidade; em Bogotá, a divisão econômica entre o nordeste da cidade e o restante também se materializa nos contágios; em Buenos Aires, o hiato norte-sul se reflete com particular intensidade não apenas no contágio, mas também na atenção que mereceu das autoridades.

🇧🇷 O vírus respeita fronteiras invisíveis em São Paulo

✍️ Por Marina Rossi

A cidade de São Paulo, a mais rica e populosa do Brasil, foi a primeira a registrar um caso de covid-19 no Brasil, em 26 de fevereiro, quando suas ruas estavam cheias de gente festejando o Carnaval. Com 12 milhões de habitantes, rapidamente se tornou o epicentro da pandemia no país e hoje soma oficialmente mais de 10.000 mortos, quando o país acumula 95.819 óbitos nesta terça-feira. Embora a quarentena tenha sido oficialmente imposta em 24 de março, com restrições em alguns setores, nunca houve um confinamento real. As medidas de isolamento social favoreceram as classes média e alta. Grande parte dos setores que empregam a população de menor poder econômico continuou funcionando total ou parcialmente, como os serviços essenciais ou a construção.

Sob essa realidade, os mais pobres se tornaram ainda mais vulneráveis. Morando em espaços precários, muitas vezes sem infraestrutura básica e compartilhando pequenos espaços com outras pessoas, essa população continuou a trabalhar, muitas vezes usando transporte público, o que a expunha mais ao contágio. Além disso, esse setor geralmente depende da saúde pública, que já tinha longas listas de espera antes da pandemia. A comparação entre o bairro do Morumbi, um dos mais caros da cidade, e Paraisópolis, um conjunto de favelas, é um exemplo claro desse cenário. Os moradores do Morumbi, onde a densidade populacional é de 4.119 habitantes por quilômetro quadrado, foram muito menos afetados pela pandemia do que os de Paraisópolis, cuja densidade é de 45.000 por quilômetro quadrado.

Segundo dados da Prefeitura apresentados na semana passada com base em uma pesquisa por amostragem, 1,3 milhão de pessoas tiveram contato com o coronavírus, número seis vezes maior que os 213.000 casos confirmados oficialmente até então na cidade. O relatório oficial mostra que as pessoas com renda mensal mais baixa e menor escolaridade são as mais vulneráveis ao vírus, um setor com a maioria da população negra.

🇲🇽 A metrópole mexicana recebe o vírus por setores

A Cidade do México passou meses lutando contra o contágio em um espaço que abrange muito mais do que suas fronteiras administrativas: os limites das metrópoles latino-americanas frequentemente transbordam, mas a extensão da Zona Metropolitana do Vale do México, na qual a cidade se insere, é excepcional: 8.000 quilômetros quadrados, 60 municípios e 22 milhões de habitantes. Em sua variedade, e na constância do contágio, oferece um observatório tragicamente privilegiado para se comprovar como o vírus se desenvolve tendo a densidade populacional como fio condutor.

O México já é o terceiro país com mais mortes por coronavírus no mundo, depois dos Estados Unidos e do Brasil, segundo a contagem da Universidade Johns Hopkins. Até 2 de agosto, a cidade havia registrado mais de 74.314 casos positivos e mais de 8.900 mortes. A pandemia, que chegou à capital mexicana no final de fevereiro, principalmente por meio de pessoas dos bairros mais abastados que estiveram no exterior, encontrou nas áreas populares densamente povoadas e com alta pobreza um caldo de carne cultivo para expansão.

Em março, a Cidade do México entrou em uma quarentena frouxa, que ficou ainda mais relaxada em junho, quando o Governo de Claudia Sheinbaum inaugurou o sistema do semáforo epidemiológico, pelo qual lojas e restaurantes foram parcialmente reabertos com medidas de segurança e distância saudável enquanto a taxa de ocupação dos hospitais diminuía. No entanto, para os moradores dos setores mais desfavorecidos, onde as famílias vivem amontoadas e sem acesso a água potável e saneamento, ficar em casa e manter distanciamento seguro nunca foram uma opção, e isso se reflete claramente no número de mortes e contágios. Para muitos mexicanos, o ato de sair à rua e, como consequência, a possibilidade de adoecer, é determinado mais pela necessidade de ganhar a vida do que pelo semáforo.

🏢 A densidade importa. Os municípios com mais contágios e mortes também são alguns dos mais densamente povoados e os que têm maiores taxas de pobreza, como Iztapalapa e Gustavo A. Madero, onde 35% e 28,4% da população, respectivamente, vivia na pobreza em 2015, segundo dados do Conselho Nacional de Avaliação da Política de Desenvolvimento Social (Coneval).

🇨🇴 O contágio em Bogotá, em duas metades

A epidemia demorou para ganhar corpo na Colômbia, mas, quando isso aconteceu, concentrou seu impacto na capital. Bogotá acumula quase 4 em cada 10 casos detectados no país, embora tenha 18% da população. Mas a grande maioria de seus habitantes se situa nos estratos mais pobres.

A palavra “estrato” não é trivial aqui, pois tem uma profunda conotação nas cidades do país: todas as suas habitações urbanas são classificadas de acordo com uma série de parâmetros de qualidade e habitabilidade que variam de 1 a 6. A vinculação de uma residência a um estrato praticamente se torna uma marca de classe. Segundo dados divulgados pela Secretaria de Saúde de Bogotá em 30 de julho, 45% dos que morreram durante a pandemia moravam em casas do estrato 2, e 25%, do estrato 3. Ambos dominam em Suba e Kennedy, as localidades com mais contágios acumulados. No total, 17% viviam no 1. Entre todos, somam 9 de cada 10 mortes pela covid-19 confirmadas em Bogotá.

🚍 A desigualdade na rua, nas casas... e no transporte público. Um terço das moradias de Bogotá são do estrato 2, mas quase metade das mortes e hospitalizações pertence a esse segmento. No estrato 1 a diferença é mais abismal: a proporção de casos graves de covid-19 duplica em relação ao porcentual na população. A razão é dupla: por um lado, são lugares normalmente mais densos. Por outro, neles vivem as pessoas que tiveram que sair para trabalhar quase desde o primeiro momento.

O confinamento na Colômbia começou cedo, mas o retorno das pessoas às ruas foi rápido. Especialmente por motivos de trabalho, de acordo com os dados de mobilidade do Google. Além disso, o sistema de ônibus de plataforma reservada, que transporta milhões de pessoas dia após dia, coleta dados de acordo com o tipo de tarifa usada pelos passageiros: os bilhetes comprados com a tarifa reduzida, reservados para famílias de baixa renda, caíram menos que os demais e depois também aumentaram com velocidade maior. São, efetivamente, os estratos 1 e 2.

🇦🇷 Os focos no sul de Buenos Aires

✍️ Por Federico Rivas

A Argentina iniciou uma quarentena severa em 20 de março, que ainda continua. Depois de manter estável a curva de contágio durante meses, o país agora está passando por um período de aumento acelerado da curva. Nas últimas duas semanas, a média tem sido de 5.500 casos por dia e o número de infectados se aproxima de 200.000, com mais de 3.500 mortos. As cifras estão longe das dos vizinhos mais afetados pela pandemia, como Brasil e Chile, mas as autoridades estão preocupadas com o fato de o vírus estar se espalhando na cidade de Buenos Aires e sua área metropolitana. Vivem ali cerca de 15 milhões de pessoas, 33% da população total da Argentina. Os mapas também mostram que a distribuição do vírus não foi homogênea dentro dessa zona de conflito.

🛑 Os focos epidemiológicos nas zonas vulneráveis. O vírus chegou à Argentina no início de março e se instalou na parte norte da capital, onde estão concentrados bairros ricos. Ingressou pelo aeroporto internacional de Ezeiza, transportado por turistas que retornavam de férias na Europa, principalmente na Espanha e na Itália. A disseminação, no entanto, logo se concentrou nas áreas mais pobres, localizados na metade sul da capital, e nas chamadas villas miseria, bairros carentes onde os moradores, amontoados em residências pequenas e sem serviços básicos, não podem cumprir o confinamento preventivo. O peso estatístico desses assentamentos precários foi tão importante que cobriu de vermelho o bairro do Retiro, localizado na zona “verde” do coronavírus.

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