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Comer ou ficar em casa para não adoecer: o dilema de 1,6 bilhão de trabalhadores informais

Relatório da OIT aponta que recuperação econômica, embora necessária, não a reduzirá por si só os efeitos da pandemia de coronavírus sobre população sem garantias

Agente de saneamento cumprimenta morador que vende gelo no Complexo da Maré, no Rio.
Agente de saneamento cumprimenta morador que vende gelo no Complexo da Maré, no Rio.Silvia Izquierdo (AP)
Ignacio Fariza

Um dilema tão grande quanto terrível sacode atualmente milhões de trabalhadores da economia informal nas principais cidades do mundo emergente, de Jacarta à Cidade do México, de Nova Déli a São Paulo: ficar em casa para não adoecer, ou sair para garantir renda suficiente para comer. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) alertou nesta quinta-feira que os confinamentos e as medidas de contenção necessárias durante a pandemia do coronavírus ameaçam incrementar drasticamente os níveis de pobreza, já bastante altos, que assolam as pessoas que se veem obrigadas a participar da economia invisível. E propôs como remédio a universalização dos esquemas de amparo social e o aumento da formalização dos que hoje trabalham. “A recuperação econômica, embora necessária, não a reduzirá por si só; as políticas públicas são essenciais”, alerta o órgão da ONU.

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Até 1,6 bilhão de empregados informais estão sendo golpeados no mundo pelas restrições de movimento para frear o vírus. Os autores do estudo estimam que, sem alternativas de renda, o índice de pobreza entre esses trabalhadores subirá 21 pontos percentuais nos países de renda média, 52 nos de renda alta e 56 nos de renda baixa, de longe os mais golpeados.

“Como quem está na informalidade precisa trabalhar, os confinamentos e outras medidas de contenção [da epidemia] são uma fonte de tensão social e de práticas transgressivas que põem em risco os esforços das autoridades para proteger a população”, salienta a entidade, com sede em Genebra. “Não trabalhar significa perder seus empregos e seu sustento: morrer de fome ou pelo vírus é o dilema, muito real, que muitos encaram.”

É a cobra que morde o próprio rabo: em muitos países, se os trabalhadores do setor informal adoecem, não têm acesso aos serviços de saúde nem às redes de proteção de renda; se não puderem ter acesso a atendimento médico, o vírus se espalha numa maior velocidade; e se tiverem —em muitas áreas rurais os serviços de saúde nem sequer estão disponíveis—, são obrigados a fazer um enorme desembolso para sua capacidade econômica, se veem forçados a se endividar ou a vender o pouco que têm. Uma espiral que desemboca, de qualquer forma, em um aumento da pobreza. Ciclo fechado com consequências catastróficas para milhões de famílias, sobretudo em países de renda média ou baixa.

A informalidade é, por sua vez, a única saída possível em tempos de aperto econômico, como os de agora —e continuarão sendo. “O colapso econômico e o fechamento permanente de pequenas e médias empresas desencadearão um aumento do desemprego e do subemprego sem precedentes, e a economia informal se expandirá”, alertam os economistas. “Na ausência de uma substituição de renda, especialmente em países de renda média e média-baixa, com sistemas de proteção social fracos e cobertura baixa, muita gente recorrerá a ganhar a vida como donos de microempresas, trabalhadores por conta própria e empregados informais. Algumas micro e pequenas empresas formalizadas também poderão ser empurradas para a informalidade”.

A resposta que a agência da ONU propõe para a defesa dos trabalhadores é dupla: universalização dos esquemas de amparo social e aumento da formalização dos trabalhadores. “A última década foi marcada por um crescente reconhecimento de que uma economia informal avultada é um grande obstáculo para a redução da pobreza, o trabalho decente e o desenvolvimento sustentável”, apontam os autores do estudo. E a crise econômica desatada pelo coronavírus, que levará a bloco emergente em seu conjunto ao seu primeiro retrocesso econômico em pelo menos seis décadas, representa também uma seríssima chamada de atenção sobre um problema sem resolver. Um aviso da necessidade crucial de que a transição da informalidade para a formalidade seja uma área prioritária nas agendas dos Governos.

Empregados domésticos, especialmente vulneráveis

Falar de trabalhadores informais é falar de mais de dois bilhões de pessoas em todo o mundo —62% do total de empregados, uma proporção que cresce até 90% nos países de baixa renda e até 67% nas nações de renda média—, que atuam em praticamente todos os setores da economia: da hotelaria à venda de comida de rua ou às manufaturas, passando pelo comércio ou por 500 milhões de agricultores que fornecem alimentos às grandes cidades do mundo emergente. As mulheres estão significativamente mais expostas a esse problema do que os homens, em parte devido ao trabalho doméstico, e são um elo “ainda mais vulnerável”, segundo a agência das Nações Unidas.

Para os 67 milhões de trabalhadores domésticos que existem no mundo —a grande maioria é de mulheres e três quartos deles na informalidade— “o desemprego se tornou um fator tão ameaçador quanto o próprio vírus”, segundo a OIT. Muitos deles, destaca a agência, estão há semanas sem poder ir ao trabalho por causa dos confinamentos. E aqueles que continuam indo às casas onde realizam tarefas de limpeza e cuidados o fazem apesar do “alto risco” de contágio. “A crise da covid-19 está exacerbando situações já existentes de vulnerabilidade e desigualdade, e a resposta política deve garantir que o apoio chegue aos trabalhadores e às empresas que mais necessitam”, diz Philippe Marcadent, chefe da divisão de inclusão trabalhista da OIT.

Negócios informais, o outro cavalo de batalha da crise

Como no caso dos trabalhadores, os negócios que se movem sob o manto da economia subterrânea —80% dos que existem no mundo— são os mais atingidos pela crise sanitária. “Sua produtividade e seus níveis de poupança e investimento são baixos, o que os torna especialmente vulneráveis aos choques econômicos”. Além disso, são “habitualmente excluídos dos programas oficiais de assistência às empresas”, apontam os técnicos da OIT. São, em outras palavras, invisíveis nos registros oficiais. E também, como está se vendo na tímida resposta que muitos países emergentes estão dando ao problema, aos olhos de alguns Governos.

No Brasil, o Governo Jair Bolsonaro insiste na retomada da economia e na manutenção dos empregos em meio ao crescimento dos contágios no Brasil, que registrou mais de 600 mortes pelo terceiro dia seguido e o total de óbitos já ultrapassa 9.000. Nesta quinta, o presidente tentou pressionar o Supremo Tribunal Federal (STF) a aliviar as medidas de quarentena, levando um grupo de empresários a uma visita-surpresa ao ministro Dias Toffoli, com o argumento que “a indústria está na UTI” e há risco de “morte de CNPJ”. O Governo implantou o auxílio emergencial de 600 reais a cidadãos mais vulneráveis, uma parcela grande da população elegível à ajuda aguarda a análise do pedido ou ainda não viu o dinheiro cair na conta, gerando aglomerações e filas na frente das agências da Caixa. Além disso, trabalhadores que foram demitidos relatam dificuldades para conseguir o seguro-desemprego. Com as agências do Sistema Nacional de Emprego (Sine) de Estados e municípios fechadas, a solicitação do benefício precisa ser realizada de forma remota, pelo site do Governo ou pelo aplicativo Carteira de Trabalho Digital, o que tem sido um obstáculo para cidadãos.

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