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No Brasil informal com coronavírus, domésticas dependem de altruísmo de patrões para evitar contágio

Trabalhadoras sem contrato encontram obstáculos para ficar em casa. Nas favelas, falta de estrutura e alta densidade populacional dificultam prevenção. Rede de proteção social amenizaria o quadro

Pessoas fazem fila para entrar no ônibus nesta segunda-feira, 16 de março, no Rio de Janeiro.
Pessoas fazem fila para entrar no ônibus nesta segunda-feira, 16 de março, no Rio de Janeiro.Silvia Izquierdo (AP)

Uma crise serve para fazer um país se olhar no espelho. A pandemia do coronavírus que agora atinge o Brasil vem mostrando, entre muitas outras coisas, como trabalhadores informais ou temporários, além de moradores de favelas, se perfilam a serem as principais vítimas da Covid-19 —pelo aspecto da saúde ou pelo lado econômico. Pessoas sem contrato formal de trabalho representam quase metade da força produtiva do país. E as opções se tornam quase sempre escassas: em plena crise, a maioria precisa escolher entre trabalhar e se expor ao vírus ou seguir as recomendações de quarentena e não ter dinheiro no fim do mês. Para aqueles que vivem em comunidades com becos fechados, sem saneamento básico ou com abastecimento irregular de água, lado a lado com centenas de vizinhos em igual situação de exclusão social, manter distanciamento e seguir as orientações de higiene são tarefas difíceis. A imagem que o Brasil projeta no espelho nem sempre é a mais agradável de se ver.

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A situação de trabalhadoras domésticas —são mais de sete milhões de mulheres nessa ocupação— é bastante representativa desse quadro. As que fazem bico como diarista eram 31,7% do total em 2015, segundo a OIT, mas há indícios de que essa cifra aumentou com a recessão econômica, acompanhando a tendência geral de aumento da informalidade. “Ela [a empregadora] disse que eu tenho o livre arbítrio para vir ou não, e que se eu quisesse ir de carro poderia deixar na sua garagem. Ela me deixou à vontade, mas se eu não vou, não recebo", explica a diarista Ana (nome fictício). "Em outro lugar que eu trabalho, nas segundas e sextas, falaram que vão me dispensar. Mas disseram que não tinham como me pagar”, acrescentou.

Na semana passada, o colunista Lauro Jardim, do jornal O Globo, noticiou a solução a que chegaram um empresário carioca e sua esposa, diagnosticados com o coronavírus. Contrariando todas as recomendações dos especialistas, não dispensaram a empregada doméstica, que permaneceu no apartamento “trabalhando de avental, luvas e máscara”. Ao mesmo tempo, surgiu um movimento de pessoas nas redes sociais para dizer como era importante não apenas a dispensa do trabalho como, também, manter a remuneração dessas mulheres quando possível. Foi o que fez Cynthia Saguie com a diarista que trabalha duas vezes por semana em sua casa há muitos anos. “Ela vem de transporte público, então, independentemente de ela ir ou não, vou pagar os dois dias da semana”, conta. Não ter um contrato de trabalho e pouca proteção social significa também depender de solidariedade e generosidade em situações atípicas. O home office é para poucos. Até esta segunda-feira várias continuavam indo trabalhar, apesar de pegar ônibus ou trens cheios, com patrões alheios ao fato de que elas podem ser fonte de contágio ou serem contagiadas — a maioria conta com o sistema público de saúde para uma emergência, ao contrário de seus empregadores.

Uma mulher de 63 anos que trabalhava como doméstica morreu nesta terça-feira no município de Miguel Pereira, no sul do Estado do Rio de Janeiro, com suspeita de coronavírus. Ela teve contato com a patroa, que voltou da Itália e testou positivo para o Covid-19, segundo a Secretaria Municipal de Saúde. Ela deu entrada em estado grave no Hospital Municipal Luiz Gonzaga com sintomas compatíveis ao do coronavírus, mas a causa da morte só será confirmada nesta quarta-feira, segundo a Prefeitura.

Existe quase um consenso entre especialistas e economistas de que é preciso aumentar os gastos públicos para amortecer o impacto entre aqueles que são socialmente mais vulneráveis. Contudo, o pacote de quase 150 bilhões anunciado nesta segunda pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, é direcionado sobretudo para aposentados ou pessoas com contrato formal de trabalho. Inclui, por exemplo, a antecipação do abono salarial (décimo quarto salário pago pelo Governo para aqueles que ganham até dois salários mínimos) para julho; transferências de valores do PIS/Pasep para o FGTS, para que possam ser sacados; ou a antecipação da segunda parcela do décimo terceiro de aposentados e pensionistas do INSS para maio.

Um dos obstáculos é o fato de que o sistema de proteção social brasileiro não protege trabalhadores informais. "Ele segue muito vinculado ao mercado de trabalho e supõe condições econômicas normais”, explica o sociólogo Pedro H.G. Ferreira de Souza, pesquisador do Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas (IPEA) e especialista em desigualdade social. “Esse sistema”, continua ele, “não reagiu bem à crise econômica dos últimos anos e não vai reagir bem agora de novo, não havendo nada automático que sirva para diminuir o sofrimento e a vulnerabilidade dos mais pobres e trabalhadores informais”.

A informalidade no Brasil sempre foi alta, mas a Constituição brasileira foi elaborada com a aspiração de formalizar o mercado de trabalho, explica Souza. Algo que nunca aconteceu integralmente. Com a crise desencadeada pelo coronavírus, ele vê uma oportunidade de “tentar construir uma proteção social mais efetiva justamente para os informais, os mais pobres e as crianças”. Nesse cenário, o Bolsa Família é como um “oásis no deserto”, justamente por transferir renda de forma direta e por não estar vinculado a nenhum tipo de contrato formal de emprego. Souza acredita que é possível flexibilizar os critérios para o acesso ao programa e aumentar o valor dos benefícios —algo que ele já defendia mesmo antes da pandemia.

A curto prazo, contudo, não há como escapar do arroz com feijão. Souza cita medidas básicas como acabar com a fila do INSS e do Bolsa Família —Guedes anunciou o reforço ao programa, com a inclusão de mais um milhão de beneficiários, o que poderia acabar com a fila de espera que voltou ao programa. “Acredito que de concreto teria que ser algo que aproveite a estrutura do que já existe, porque não dá tempo nem temos condições de inventar nada muito diferente no curto prazo em meio à crise”, afirma o sociólogo.

Prevenção nas favelas

O impacto da pandemia do coronavírus também varia de acordo com o CEP e a cor da pessoa. Nesta segunda-feira, a hashtag #COVID19NasFavelas trazia relatos e análises sobre a vulnerabilidade de moradores —negros em sua maioria― de favelas. Como agravante, muitas dessas favelas são constantemente visitadas por estrangeiros, grande parte deles provenientes dos países mais infectados pelo coronavírus. Na Rocinha, onde vivem mais de 70.000 pessoas, a associação de moradores pediu que a entrada de turistas fosse vetada.

O ativista Raull Santiago, fundador do coletivo Papo Reto e também morador do Complexo do Alemão, explicou por meio de seu Twitter que “as dicas sobre prevenção e tentativas de evitar a proliferação do covid-19 são muito importantes, mas falhas, quando não contemplam a realidade de uma grande parte da população do país". Sobre lavar bem as mãos, lembra que a água não está disponível sempre. “Nós economizamos água não apenas por consciência, mas também por sobrevivência. Lavar a mão o tempo inteiro, não é uma possibilidade. Ah, na minha casa são seis pessoas. Ainda lutamos pelo direito à água aqui”, conta. Sobre quarentena, diz ser impossível: “É parede com parede, tem casa de dois, três cômodos com seis pessoas morando. Como faz? Qual o caminho? Para onde seguir com essas dicas de prevenção?”, questionou.

“Muitos moradores do Complexo do Alemão estão reclamado que estão sem abastecimento de água e por isso não estão conseguindo se prevenir contra o novo coronavírus. Não há álcool em gel nas farmácias e mercados”, relatou o jornalista Rene Silva, fundador do Vozes das Comunidades, em seu perfil do Twitter. Uma vizinha, Renata Trajano, respondeu com outro relato: “Onde eu moro só cai [água] duas vezes por semana à noite e com ajuda da bomba. Como faz para lavar as mãos? Álcool em gel não encontrei em lugar algum, tenho uma mãe de 80 anos e precisamos manter tudo higienizado.”

Este texto foi atualizado com a informação de que uma mulher de 63 anos que trabalhava como doméstica morreu nesta terça-feira no Estado do Rio de Janeiro, com suspeita de coronavírus

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