Bolsonaro força reunião midiática com STF para tentar dividir a conta da crise econômica do coronavírus
Enquanto parte do país discute 'lockdown’ e medidas mais estritas contra pandemia, presidente levou empresários para encontro de última hora na Corte afirmando que “a indústria está na UTI” e cobrando abertura
Enquanto o Ministério da Saúde se dispõe a discutir lockdown em determinadas localidades para conter o avanço do coronavírus, o país registra 9.146 óbitos decorrentes da doença e seis Estados começam a entrar em colapso nas redes pública e privada de saúde, o presidente Jair Bolsonaro pressiona o Supremo Tribunal Federal para dividir os prejuízos da crise econômica ocasionada pela pandemia. Nesta quinta-feira, o mandatário fez um gesto político e esteve em uma reunião de última hora com o presidente do STF, Antonio Dias Toffoli, para debater o tema. Levou a tiracolo um grupo de dirigentes de associações industriais e empresariais que dizem empregar 30 milhões de pessoas e representar 45% do Produto Interno Bruto (PIB) da indústria.
O encontro com Bolsonaro havia sido solicitado pelos presidentes de entidades empresariais na semana passada, quando estiveram com o ministro da Economia, Paulo Guedes, e com o general da reserva Walter Braga Neto, ministro da Casa Civil. Seria a segunda audiência do grupo com o presidente desde a sua eleição – a primeira ocorreu no primeiro semestre de 2019. Mas o que deveria ser uma reunião corriqueira ficou indigesta num momento delicado da pandemia, com o Brasil em carne viva. Até a escolha das palavras dos executivos, de anunciar que “a indústria está na UTI” pegou muito mal, quando brasileiros estão morrendo por falta de leitos em vários pontos do país, num quadro que só tende a piorar. Houve quem falou em “morte de CNPJs”, na tentativa de ganhar protagonismo.
Bolsonaro se animou com a demanda dos empresários e reforçou o recado ao afirmar que dez milhões de brasileiros já foram demitidos nessa crise, embora não tenha dado a fonte desse dado. O ministro da Economia, Paulo Guedes, por sua vez, declarou que o Brasil não poderia se tornar uma Venezuela na área econômica e justificou a pressão sobre o Judiciário. “O presidente, ao ouvir o relato empresarial disse: olha, vamos compartilhar isso com o Supremo, vamos compartilhar o prejuízo, afinal de contas, o combate é de todos nós brasileiros, principalmente, dos poderes”.
Entre os ministros do STF, conforme dois interlocutores da Corte, houve uma tentativa midiática do presidente de dividir a responsabilidade e atribuir aos magistrados uma culpa que não é deles. Na reunião, Toffoli disse: “O que os senhores trazem aqui é a necessidade de planejamento”. E, para se livrar de firmar qualquer compromisso declarou que, na sua opinião, “é fundamental a coordenação com Estados e municípios”.
Uma das queixas do Governo é a decisão unânime do Supremo que permitiu que governadores e prefeitos podem decretar isolamentos e regras de restrição de circulação na pandemia. Bolsonaro queria ter esse poder. Como alternativa, ele tem editado decretos que tratam de atividades essenciais. O mais recente foi o de incluir o setor de construção civil.
A ida ao Supremo por um convite inesperado do presidente também soou desafinado, em meio à contenda de Bolsonaro com a Corte. E dias depois dele fazer acenos desonrosos à democracia. Primeiro, a participação num ato que pregava fechar o Congresso no domingo passado. Na sequência, mandando jornalistas calarem a boca, repetindo cenas só vistas durante a ditadura militar. E na mesma semana, recebendo o major Sebastião Curió, que sempre admitiu ter executado militantes de esquerda na região do Araguaia a pedido do Exército.
Plano de abertura
Humberto Barbato, presidente da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee), reconhece que não é essa a atitude do presidente que tem de prevalecer. “Existem pessoas extremadas, conheço empresários que pensam assim, mas felizmente que não são a maioria”, diz ele, que participou da audiência com o presidente do STF, Dias Toffoli, por videoconferência.
As reivindicações de Barbato e de seus pares é o de garantir um plano de abertura da economia, num momento em que outros países que saíram antes da pandemia estão voltando ao jogo do comércio internacional. “A China se recuperou, e agora existe o medo de que tome mais lugar no mundo. Ela pode dar desconto que quiser, e já está ocupando esse espaço”, diz José Augusto Castro, presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), que reúne exportadores, e também esteve por videoconferência. “Não fui a Brasília porque tenho mais de 60 anos e sou grupo de risco. E ali muita gente não usa máscara”, explica.
Castro é favorável ao isolamento pois, segundo ele, “abrir sem saber quem está infectado ou não é suicídio”, disse ele, lembrando a falta de testes no Brasil, e a carência de informações mais precisas sobre a doença no país. “Nós reclamamos do dinheiro que foi liberado, mas não está chegando às empresas. Nem falamos de exportação, até porque não tem demanda. Nós queremos algo imediato”, diz ele.
Politicamente, Bolsonaro viu na audiência dos empresários duas oportunidades. Uma, ganhar reforço em seu pleito por relaxar o isolamento no país para resgatar a economia. A outra, uma aproximação com o Supremo depois da pressão do ministro Celso de Mello no inquérito que envolve o ex-ministro da Justiça Sergio Moro e da decisão de Alexandre de Moraes que o impossibilitou de nomear o diretor-geral da Polícia Federal que desejava. “Eu estou de mãos atadas. Vocês concordariam em fazer uma exposição para o Supremo Tribunal?”, questionou Bolsonaro.
De Toffoli, ouviram que a abertura do comércio era uma conversa a ter com governadores e prefeitos, algo que os empresários já estão fazendo. Mas, o encontro, na visão de Barbato e Castro, era uma maneira também de ajudar na ponte entre Executivo e Judiciário num momento em que a falta de diálogo decorrente das crises políticas atrasa o desenho de planos concretos que garantam previsibilidade ao setor produtivo. “É a velha discussão, morrer de fome ou de coronavírus”, diz Barbato, repetindo o bordão que o presidente cunhou para abordar a crise econômica durante o coronavírus. O representante da indústria, porém, fala em retorno gradativo, usando os cuidados sanitários, em regiões onde é possível fazê-lo. “A prioridade é a vida”. Ele sabia que a ida ao Supremo representaria um ato político, e mesmo assim aceitou. “Precisamos de um pacto de Moncloa”, em que todos os poderes conversem, disse, em referência ao acordo na transição democrática na Espanha que lançou um ambicioso pacote de reformas econômicas. “Falta bom senso por parte de todos os atores para se entender e que deixe de existir o cabo de guerra. Ninguém vai sair ganhando”, completou. Mas admitiu que tentar usado a expressão “indústria na UTI” foi infeliz.
Reação nas redes e na vida real
Para o presidente, a reunião de empresários no STF foi um ponto vitorioso. O simbolismo do ato foi comemorado nas redes bolsonaristas e em grupos de WhatsApp de apoiadores quase imediatamente. Bolsonaro atravessou caminhando a praça dos Três Poderes, que interliga as sedes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, para o encontro com Toffoli. Além disso, transmitiu toda a reunião em sua conta no Facebook. Uma transparência incomum. Bolsonaro não transmite todas as reuniões que têm com seus ministros, por exemplo. E ainda está tentando evitar a entrega da íntegra de uma delas, que servirá para compor o inquérito contra ele e contra o ex-ministro da Justiça Sergio Moro.
Na vida real, porém, o alarde com a reunião caiu bem mal. Nem todos os setores da indústria estavam representados, e os desdobramentos políticos que cercam o encontro foi mal recebido por outros segmentos da sociedade. A reunião ocorre no mesmo dia em que a Confederação Nacional da Saúde, uma entidade que representa o setor privado, divulgou que hospitais particulares estão ficando sem leitos em unidades de terapia intensiva, que são a última etapa na tentativa de salvar vidas. Conforme o órgão, o colapso na rede particular está próximo de ocorrer no Amazonas, no Pará, no Ceará, em Pernambuco, no Maranhão e no Rio de Janeiro. Isso significa que, mesmo que o poder público recorra aos hospitais privados, como tem sido aventado pelo Governo federal, não há a garantia de que haverá onde internar as pessoas em estado grave.
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