Coronavírus joga sal sobre a ferida da desigualdade e aumenta a diferença econômica
Epidemia de peste negra do século XIV, que deixou dezenas de milhões de mortos, passou à história como um período redistributivo. O padrão não se repetirá com a covid-19
A crise do coronavírus cria lugares-comuns na mesma velocidade em que destrói outros, muito arraigados no imaginário econômico: enquanto o “sem precedentes” se assenta como muleta para tudo, o mantra de que as pandemias reduzem as desigualdades estremece. Não porque seja errôneo em si mesmo – se demonstrou certo na grande praga da peste negra e, em menor medida, na epidemia de gripe de 1918 (especialmente grave entre os trabalhadores mais jovens) –, e sim porque nessa ocasião não se dão as circunstâncias para que seja assim: se à época se encarniçou entre a população em idade ativa, diminuindo o fator trabalho e conduzindo a um aumento dos salários, dessa vez tem os idosos como principais vítimas. Se essa pandemia é alguma coisa – quarentena incluída – é, de acordo com mais de uma dúzia de historiadores e economistas consultados, criadora de desigualdades. Ao contrário das anteriores, agravará a iniquidade já existente, em parte herdada da crise de 2008. O teletrabalho é uma possibilidade somente para alguns, geralmente os mais qualificados, enquanto condena os mais precários. Igualmente, apesar das severas perdas na Bolsa, tudo indica que o capital recuperará o ritmo antes do que os mercados de trabalho. O resultado desse coquetel, de acordo com uma dúzia de historiadores e economistas, só pode ser um: os que chegaram em momento mais complicado à crise também sairão pior.
O historiador Walter Scheidel ilustrou no monumental Violência e a história da desigualdade: Da Idade da Pedra ao século XXI como somente a guerra, a revolução, o colapso do Estado e as pragas – “Os quatro cavaleiros da equiparação”, em suas palavras – são os únicos fatores capazes de equilibrar a relação de forças entre ricos e pobres. Sem eles, diz, não há melhora possível. O caso da peste negra (dezenas de milhões de mortos no século XIV, talvez o mais funesto de todos os tempos; com uma redução de 25% a 45% da população) provocou uma queda da desigualdade e aumentou o bem-estar dos que conseguiram sobreviver. A gripe de 1918, ainda que em medida muito menor (40 milhões de mortos, pouco mais de 2% da população mundial), também minguou a força de trabalho e provocou um efeito semelhante, ainda que menor. “As pandemias adoecem e matam as pessoas e deixam as famílias com níveis de vida mais baixos. Os efeitos diretos sobre a pobreza e o bem-estar são grandes e persistentes. A alegria da melhora resultante na igualdade soa vazia: que bom que somos mais iguais em nossa miséria!”, diz James Foster, da Elliott School of International Affairs.
Com o coronavírus sequer essa melhora conjuntural será vivenciada: o número de mortos é tão grande em termos absolutos (330.000 pessoas) como devastador no moral, mas muito pouco relevante no estatístico em um mundo que tem quase 8 bilhões de habitantes, 20 vezes mais do nos tempos da peste negra. Nada mudará no equilíbrio entre capital e trabalho: como lembram quase em uníssono Nora Lustig, professora da Universidade de Tulane e uma das melhores historiadoras econômicas latino-americanas de nossos dias, e Òscar Jordà, da Universidade da Califórnia em Davis e coautor de um dos primeiros trabalhos sobre as consequências econômicas da covid-19 a longo prazo, o que torna essa pandemia diferente é que (felizmente) em termos relativos as mortes são significativamente menores do que nas ocasiões anteriores. “Os mais afetados são os aposentados, com economias e capital, mas que já estão fora do mercado de trabalho”, diz Jordà. E, por outro lado, outras variáveis fundamentais à desigualdade irão piorar.
“Dessa vez é diferente: não ocorrerá escassez de mão de obra e o salário do trabalhador médio não subirá”, frisa Scheidel, professor da Universidade Stanford, em conversa com o EL PAÍS. “No curto prazo, de fato, o coronavírus provavelmente aumentará a desigualdade, com maiores diferenças entre os trabalhadores de setores relativamente estáveis e aqueles que ficarão com a pior parte dos confinamentos”. Tudo, acrescenta Guido Alfani, historiador da Universidade Bocconi de Milão, depende muito do contexto e das instituições: “Seria mais correto dizer que algumas pandemias, como a peste negra, que foi a praga mais mortífera da história, reduziram a desigualdade. Mas nem todas: a do século XVII [também de peste] no sul da Europa, que na Itália matou de 30% a 40% da população, por exemplo, não provocou nenhuma redução significativa e duradoura”.
Ainda sem dados brutos – será preciso esperar anos –, tudo indica que dessa vez não cairá, e sim subirá bastante: da mesma forma que o vírus golpeia mais alguns países (os que dependem do turismo e dos serviços, como a Espanha) do que outros (as economias mais fechadas), também atinge mais os estratos de baixo rendimento. “É um mito que todas as pandemias tenham um efeito sequer neutro no plano social”, diz sem deixar muita margem à dúvida Svenn-Erik Mamelund, da Universidade Metropolitana de Oslo e um dos pesquisadores que mais se aprofundaram nas derivadas econômicas e demográficas dos problemas sanitários. “Os pobres sempre foram mais atingidos em termos médicos (hospitalizações e mortes) e econômicos: também são os que acabam empobrecendo-se mais. É algo que estamos vendo hoje com os negros e os índios navajo nos EUA, mas também com os mais pobres em Madri, Paris, Oslo e Estocolmo: os que dizem que a covid é um igualador estão enganados”. A doença, completa por e-mail o Nobel Joseph Stiglitz, autor de O Preço da Desigualdade, “atinge a parte baixa da escala socioeconômica, que perde seus trabalhos de maneira desproporcional [em relação à média]. Ficam com a pior parte”.
As crises sempre deixam à mostra as vergonhas e os vícios ocultos – e não tão ocultos – nas economias. E essa pandemia está revelando cruamente as brechas que já existiam antes que o vírus aparecesse: as taxas de mortalidade são mais altas entre os coletivos mais frágeis em praticamente todas as cidades do Ocidente e a disponibilidade de economias em muitos casos destruídos pela Grande Recessão marca tudo. Quem entrou na crise endividado tem menos possibilidades de sair-se bem do que quem chegou com um colchão de segurança e um emprego estável e bem-remunerado. “Destroçará os devedores, inquilinos e os que têm créditos que não podem devolver pela diminuição de seus rendimentos”, alerta James K. Galbraith, da Universidade do Texas. “A menos que exista um alívio geral dessas dívidas, os credores ficarão com os ativos a preço de liquidação. Sem esse recomeço, ocorrerá uma depressão prolongada e uma pauperização maciça das até agora classes médias”.
O efeito dos confinamentos continua sendo uma incógnita: é, como lembra Alfani, a primeira vez na história da humanidade que tantos países optam por medidas “tão rígidas, de modo que não podemos nos ater a episódios do passado para tentar prever o que acontecerá”. Mas, por agora, já se podem extrair algumas primeiras conclusões: no mercado de trabalho o coronavírus está criando, grosso modo, dois grupos de trabalhadores: os que podem continuar desempenhando sua tarefa com quase total normalidade, majoritariamente qualificados – os de colarinho branco, em termos anglo-saxões –, e os que diretamente não podem fazê-lo – os de colarinho azul: de operários de fábricas a garçons –, que se veem lançados ao desemprego, seja em sua versão temporária (ERTE, na Espanha) e em sua versão permanente. Justo quando a ferida da crise anterior sobre as rendas começava a cicatrizar.
Os mercados de trabalho obedecem, com exceções, ao seguinte padrão: a salários mais baixos, menores opções de trabalhar em casa e maiores de cair em desemprego. Nos EUA, por exemplo, quatro de cada 10 trabalhadores demitidos ganhava menos de 40.000 dólares (213.000 reais) por ano, apesar do salário médio ficar acima dos 50.000 (266.000 reais). Isso nas economias mais avançadas. Nos países emergentes, o dilema que se apresenta é muito mais duro – confinar-se ou comer –, com milhões de trabalhadores informais – os que estavam em pior situação já desde antes da pandemia – obrigados a fazer, literalmente, o que for preciso para procurar um sustento para eles e suas famílias enquanto os empregados mais qualificados podem fazer seus trabalhos de casa sem grandes mudanças. Não se pode esquecer, também, que a desigualdade esteve na origem dos protestos do final do ano passado na América Latina, uma região na qual os desequilíbrios econômicos continuam se movendo com total liberdade.
O luxo de ficar em casa e a desigualdade de gênero
Ficar em casa é mais do que nunca um luxo. Esse clichê não acabará com a crise. “Podemos ver isso nos EUA, sim, mas também em um Estado de bem-estar como a Noruega: os com menos educação e recursos são os mais duramente atingidos tanto em termos de desemprego como em rendimento. E a história da crise nos diz que são, da mesma forma, os que mais problemas têm para retornar ao mercado de trabalho após um período de desemprego”, ressalta Mamelund. “Ao afetar mais as pessoas mais pobres, que não têm economias e estão mais desprotegidas: provocará uma mobilidade social às camadas mais baixas”, completa Lustig, que pede sem rodeios um imposto específico à riqueza “dos bilionários” ligado à prevenção da onda de desigualdade que está por vir. “A recessão está tão vinculada ao aumento do desemprego e à queda de pequenos negócios, como cafés e restaurantes, que é difícil imaginar um horizonte em que os pobres saiam beneficiados em relação aos ricos”, diz Peter Lanjouw, da Universidade Livre de Amsterdã. Falando claramente: a crise empobrecerá a todos (ou quase todos: alguns, como sempre, passarão em brancas nuvens), mas não igualmente.
As dinâmicas financeiras tampouco ajudarão a acabar com a brecha. O impacto inicial nas Bolsas de Valores foi muito duro, arranhando o patrimônio dos donos de grandes fortunas − o quarto homem mais rico do mundo, Warren Buffett, já perdeu 50 bilhões de dólares (267 bilhões de reais) desde o início desta crise −, mas os mercados financeiros já começaram a recuperar (muito lentamente) parte das perdas. “Se a Grande Recessão de 2008 serve como guia, os investimentos dos ricos se recuperarão antes dos mercados de trabalho”, prevê Scheidel. No outro destino predileto dos investimentos dos mais ricos, o mercado imobiliário, parece que a mordida será grande. Mas aí a classe média que se endividou para ser proprietária também assimilará o golpe, e o efeito igualador será − se houver − discreto.
“A capacidade das pessoas de proteger sua família e de resistir à tempestade varia muito”, apontam Sabina Alkire e Ricardo Nogales, da Universidade de Oxford. “Enquanto algumas pessoas têm trabalhos formais e estáveis, relações saudáveis, casas confortáveis e uma saúde mental forte, outras só obtêm renda de fontes informais e enfrentam uma situação de vulnerabilidade e pobreza, com condições comprometidas em casa. São, particularmente, idosos e mulheres”. O gênero é, de fato, uma variável-chave na análise: a Unesco calcula que 1,5 bilhão de crianças em todo o mundo não estão indo atualmente à escola, com o consequente efeito sobre as famílias, que precisam cuidar delas no período em que deveriam estar na sala de aula. “E, dadas as normas de gênero existentes e levando em conta a distribuição histórica de tarefas domésticas, podemos dizer, sem risco de erro, que essa carga adicional está recaindo desproporcionalmente mais sobre as mulheres”, afirma Olga Shurchkov, do Wellesley College.
Essa assimetria entre mulheres e homens está sendo observada praticamente todos os âmbitos: desde o primeiro ataque do vírus, a produtividade despencou entre as mulheres pesquisadoras, enquanto crescia entre seus colegas homens. Também em termos de emprego: se na crise de 2008 as perdas de postos de trabalho ocorreram em setores muito masculinizados (construção, fábricas), desta vez a pior parte recai sobre os serviços, onde as mulheres têm um peso maior. “A conclusão é clara: a desigualdade de gênero aumentou e continuará aumentando enquanto durar esta recessão”, assinala Shurchkov.
A importância das políticas públicas e a pressão política
O ponto de partida é, por si só, preocupante. Apesar do declínio das classes médias ocidentais e do fato de que as altas não pararam de aumentar sua fatia do bolo, a melhora de seus pares emergentes equilibrou a foto global da desigualdade. Dentro dos países, o panorama é outro. Desde os anos sessenta, quando Billy Wilder fazia sucesso no cinema, a concentração de renda cresceu muito − principalmente nos EUA, mas também no Reino Unido, na Alemanha, na Itália e na Espanha. Paralelamente, a desigualdade foi ganhando espaço no debate público: a crise financeira, que continuou ampliando a brecha, transformou-a em um tema recorrente de discussão, deixando claro que a preocupação vai muito além da justiça social e que atua, também, como fator inibidor do crescimento. Além da questão ética, ela é, em suma, um entrave na roda da economia.
As políticas públicas, geralmente deslocadas para o fundo de um debate social constantemente marcado pela guerra cultural e pela polarização, emergem como a chave do cofre no edifício social que resulte desta crise. Os bem-vindos mecanismos de proteção adotados até agora − principalmente na Europa, com vários Estados assumindo parte dos salários, esquemas de renda mínima e ajudas específicas para os grupos vulneráveis: uma socialização de perdas no melhor dos sentidos − não parecem ser suficientes. É o que mostram as 100.000 pessoas que solicitaram ajuda para alimentação só em Madri e os temores de Stiglitz do outro lado do Atlântico. “Nos EUA, uma parte desproporcional dos três trilhões de dólares [16 trilhões de reais] injetados na economia foi parar nas mãos dos que mais têm, entre eles grandes empresas. Os custos da crise estão recaindo, principalmente, sobre os pobres, e o dinheiro não os está ajudando, o que amplia as desigualdades”, enfatiza o Nobel.
Nos países emergentes, o abalo da crise econômica será igualmente duro. E isso, segundo Lanjouw, da Universidade Livre de Amsterdã, será sentido na desigualdade global, uma brecha que tinha diminuído com a globalização e agora corre o risco de seguir o caminho contrário. “O processo de convergência entre países pobres e ricos provavelmente ficará mais lento ou, diretamente, será revertido”, observa o acadêmico holandês, que dedicou boa parte de sua vida a questões de economia do desenvolvimento.
Diante os males do hoje − pobreza, desigualdade −, impõe-se a perspectiva e a visão do amanhã. Em um horizonte um pouco mais longo, poucos duvidam que a covid será mais do que um abalo econômico e sanitário: sacudirá também o campo das ideias. O que acontecerá no futuro, escreveu recentemente nestas páginas a filósofa Adela Cortina, “dependerá em grande parte de como vamos exercer nossa liberdade, se faremos isso a partir de um ‘nós’ inclusivo ou de uma fragmentação de indivíduos”. Isso é ainda mais válido para o plano puramente econômico.
O debate público sobre desigualdade, prevê Lanjouw, mudará para melhor: o foco será mais concentrado naqueles que estão pior. “Pode propiciar uma mudança duradoura na orientação ideológica e nas políticas públicas”, opina, na mesma linha, Samuel Bowles, do Santa Fé Institute. “Como na Grande Crise, a pandemia é um golpe para os mercados não regulados e os Estados pequenos [em termos de gastos públicos] sem uma mínima rede de proteção econômica para os trabalhadores. Se a covid-19 é capaz de demonstrar os riscos mortais das políticas econômicas baseadas somente no livre mercado e da ideologia individualista, também pode propiciar um futuro mais igualitário.” A crise do coronavírus, conclui Scheidel, tem o “potencial” de aumentar a pressão política em favor de uma agenda mais progressista. Principalmente se se prolongar no tempo e nos níveis de pobreza e descontentamento, “podendo levar a nacionalizações, a programas de renda básica e a uma progressividade maior na fiscalização da riqueza. Isso, sim, poderia reduzir a atual concentração do ingresso e o patrimônio”. O golpe inicial pode ser revertido a longo prazo. É necessária apenas uma mudança de mentalidade. Profunda.
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