Criolo: “Não dá para desperdiçar amor, mas não dá para romantizar. Estamos à flor da pele”
Rapper falou ao EL PAÍS sobre a música feita em homenagem à irmã, vítima da pandemia, o aniversário de dez anos de Nó na Orelha, seu álbum de estreia, e a ascensão de uma nova estética na música brasileira criada nas periferias
Sentado em um banco de madeira vestindo preto da cabeça aos pés, Criolo segura as mãos de seu pai, Cleon, e de sua mãe, Maria Vilani. A cena derradeira do clipe de Cleane, música-homenagem lançada pelo rapper há duas semanas, em parceria com o duo de DJ’s Tropkillaz, retrata uma família que se equilibra na força do outro após ser dilacerada pela dor da morte. “Estamos vivendo nosso luto. Na quebrada é assim, lutamos contra essa violência há muito tempo. Estão sempre nos distanciando dos nossos sonhos e minando nossas vidas. Ainda que a dor seja enorme, precisamos seguir construindo algo”, comenta o rapper ao EL PAÍS.
A canção feita em homenagem à irmã, Cleane Gomes, que faleceu em junho vítima da covid-19, aos 39 anos, ajuda a explicar o Brasil contemporâneo. “Somos apenas números na mão dessa gente. Eles esquecem que temos pai, mãe, filho, irmã. No meu caso, já não tenho mais”, diz Criolo. “É uma desumanização contínua e a glorificação da crueldade. A morte faz parte do processo natural, mas eles abreviam nossas vidas com os mecanismos cruéis que nos são oferecidos.”
Diante da tela em branco, Criolo elabora sua obra-manifesto. As imagens das covas sendo abertas aos montes, dos corpos sendo enterrados rapidamente e sem direito a velório e despedida formam um país que inaugurou a modalidade do ‘talão zona azul de jazigo pequeno’. Nada parece sensibilizar quem nos governa. “Está morrendo gente? Eu escrevo: ‘esse sangue pisado não é açaí’. Mataram inocente? Foda-se! Põe granola e caqui. Eles estão comendo a gente nesse assassinato em massa que extermina o povo preto, indígena e LGBTQI+ desse país”, salienta.
Ao inventar o termo “Baryshnikova”, Criolo faz uma homenagem às avessas ao bailarino russo Mikhail Baryshnikov. A introdução da letra ‘A’ e a formação do prefixo ‘kova’ indicam que a peça encenada em terras brasileiras, com seus 600.000 mortos vítimas da pandemia, seja um espetáculo sombrio de acompanhar. “Aqui quem nos conduz é o bailarino da morte, que vai se banhar com ondas de sangue em uma praia de mortos.”
A ideia de que uma família comande o país também está na letra da canção. “É o chefe do chefe que lucra com a peste/ É o pai é o filho, família de rico/ Que culpa o pobre que leva o castigo”. “Nós estamos vivendo em um país cujo poder de decisão de vida e morte está nas mãos de poucas pessoas”, afirma. “Esse bailarino da morte nos impõe uma morte cruel, covarde e desumana. Jeito sujo e sórdido de como se pensar a vida de todas as pessoas do nosso país.”
Criolo vai empilhando referências. “É a ‘lítero-quebrada’. Literatura do gueto para além dos portões que nos cercam. Todo maloqueiro tem um saber empírico”, explica. Ao usar a palavra ‘Chambers’ (Câmara, em inglês), que aparece repetidas vezes no refrão da música, ele manda um recado ao Congresso Nacional. “Não estão nem aí se vai morrer todo mundo. É da minha família? Não? Então quero saber dos meus interesses. Esse é o pensamento”, analisa.
Criolo está puro ódio e a revolta ocupa lugar de destaque no seu pódio de prioridades. O rapper mira sua artilharia do Brasil distópico para quem ainda não entendeu a complexidade do momento. “Se não é com você, que que tá acontecendo?/ Sentado no muro, conforto, isento”, diz um dos versos. Em outro, o músico anuncia: “cês não tão sabendo, povo tá morrendo”, como se a desigualdade social que vitimou mais negros e pobres ao longo da pandemia fosse uma novidade para uma parcela do país.
“Véus foram rasgados para as pessoas perceberem a desigualdade que existe aqui. Só agora descobriram que não tem hospital na favela? Que não tem saneamento básico? Que nós morremos mais e das formas mais cruéis? Só agora?”, questiona. “Mas também tenho a sensação de que muita gente ainda não vai ter contato com a forma brutal que conduz nosso povo”, lamenta o rapper.
A dicotomia entre garantir alguma segurança sanitária ou enfraquecer a economia, criada pelo Governo Jair Bolsonaro e sustentada por seus apoiadores desde o início da pandemia, também é alvo de críticas por parte do rapper. “Empresas fecharam? Lamento. A favela quer ver todo mundo bem, mano, inclusive a gente. O empresário está triste porque perdeu o negócio. Entendo perfeitamente, mas quem morreu não volta mais, não tem jeito, não há como remediar. "
A divisão social não é novidade para Criolo, já que “na favela sempre se conviveu com isso”. “Mas parece que agora esse racha aumentou mil vezes”, complementa o artista, que viveu boa parte da vida no Grajaú, zona sul da capital paulista. Para ele, qualquer tipo de reconciliação não será fácil. “Não dá para desperdiçar amor, mas também não dá para romantizar. Estamos à flor da pele. O que sobrou da gente? Tem que se amar, cada um do seu jeito, respirar fundo e dar alguma contribuição.”
Nó na Orelha, dez anos depois
Criolo está no rap desde os 13 anos de idade, mas só conseguiu gravar e lançar o primeiro álbum aos 35. Produzido por Marcelo Cabral e Daniel Ganjaman, Nó Na Orelha (2011) apresentou ao público músicas que se tornaram clássicos, como Subirusdoistiozin, Grajauex e Bogotá. “Esse disco é fruto de muito sonho, lágrima, desespero, choro, vontade de ser feliz. De gente que estendeu a mão e não me deixou desistir”, diz.
Maior sucesso do álbum, Não Existe Amor em SP virou trilha oficial para narrar a crueza da cidade, comparada pelo rapper a um “buquê de flores mortas”. “A grande maioria das pessoas que vivem aqui têm apenas o direito de acordar muito cedo para trabalhar e voltar muito tarde para o seu lar. Elas não vivem a cidade, apenas as reverberações de quem de fato pertence à metrópole. São camadas profundas de não acesso e bolsões de hostilidade. Aqui, nós sobrevivemos, e sobreviver não é viver”, explica.
Ao mesmo tempo, afirma Criolo, há um grande paradoxo, porque a mesma cidade constituída para “ser uma máquina de amassar gente e desperdiçar sonhos”, é capaz de “acolher pessoas especiais, cheias de ideias, caminhos e possibilidades”. “Para quem vem de fora, é muito difícil compreender esses conflitos que nos rodeiam todos os dias.”
Criolo acredita que o fato de o álbum de estreia ser lembrado como um marco do rap nacional acontece por alguns motivos. O primeiro deles tem a ver com o fato de o rapper considerar o trabalho “um convite para a troca”. “É como uma janela aberta. Não há imposição. Sempre que houver um coração disposto a ouvir, essa troca vai acontecer”, comenta.
O segundo motivo, menos lírico, envolve a possibilidade do erro. “Foram 22 anos lambendo o palco. Cantando em festa da igreja, bingo, feira, festa junina. Nesse período, foram pouquíssimos acertos e muitos erros”, relembra. “Eu sofri muito até o álbum ser lançado, porque achava que nunca ia dar certo. Quando vingou, percebi que ele havia acontecido no momento exato”, complementa.
A maneira como conduziu sua carreira até Nó na Orelha faz Criolo refletir sobre o impacto da internet na produção artística atual. O rapper lembra que cresceu e viveu boa parte da fase adulta sem acesso constante à internet. “Não dava para postar um vídeo cantando desafinado ou uma música que não tava bem ensaiada”, analisa. “Hoje é diferente, o jovem não tem tempo para experimentar, e isso é muito cruel com o processo artístico de cada um. Mal começaram e já são condenados entre o que presta e o que não presta”, ressalta.
O rapper diz que “há muito o que aprender com a nova geração” e vai elencando nomes que o agradam. Cita o rapper mineiro Djonga, o cearense Matuê, um dos principais nomes do trap no Brasil, e a maranhense Pabllo Vittar, “com as estéticas sonoras desse ser de luz.” “O público que consome Rap, Trap, Funk e o paredão de Belém do Pará criou a nova energia pop da música brasileira. Ninguém deu nada de graça a esses artistas. A gente precisa celebrar e aplaudir essas pessoas.”
Dez anos depois do primeiro álbum, Criolo diz “não acreditar que tenha andado tudo isso”. Com a voz embargada, comemora a feitura dos trabalhos posteriores, que incluem o disco Convoque Seu Buda (2014), uma turnê com Ivete Sangalo para celebrar a obra de Tim Maia (2015), o relançamento de Ainda Há tempo (2016) e Espiral de Ilusão (2017), título dedicado ao samba.
Desde 2018, o rapper tem gravado músicas esparsas, como Boca de Lobo, Sistema Obtuso e Fellini, retratos da crise social brasileira. Questionado sobre a possibilidade de um novo álbum, ele dá a entender que isso não deve acontecer agora. “As outras coisas da vida precisam mais de mim. Meus pais precisam de mim, eu preciso deles. Nós ainda não vivemos o nosso luto”, afirma. “O Brasil não viveu seu luto.”
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