Papo reto com Mano Brown
Líder do Racionais MC’s e principal nome do rap nacional, artista estreia como entrevistador em ‘Mano a Mano’, podcast do Spotify para debater política, religião, racismo, futebol, entre outros temas
Assim que a possibilidade de comandar um podcast foi apresentada, Mano Brown aboliu a ideia de um projeto voltado à própria trajetória. “Eu poderia contar minhas histórias, mas não era isso que eu queria.” A decisão do artista é fruto de um misto de humildade e curiosidade, em um momento no qual as perguntas eram mais importantes do que respostas. “Eu decidi que não poderia ‘chapar’ mentalmente durante a pandemia. Para fugir da ansiedade e da falta de perspectiva, fui estudar teologia, arqueologia, ciência, tudo relacionado à diáspora africana”, afirmou o líder do Racionais MC’s.
As inquietações dominaram a mente do rapper mais importante do país, cuja relevância artística e social está longe de ser mensurada. Como bom contador de histórias, um cientista social autodidata, Brown decidiu que a melhor maneira de entender aspectos do Brasil contemporâneo, como a polarização política, seria através do diálogo. “Essa guerra ideológica que acontece no Brasil... Nós precisamos conviver com isso e entender o que as pessoas estão pensando.”
Mano a Mano, podcast produzido pelo Spotify e que chega à plataforma nesta quinta-feira, é uma mistura de tudo isso. A pulsão pelo debate, o desejo de compreender o outro, a necessidade de criar pontes, o dever de firmar posicionamentos e a vontade de ser uma fonte de entretenimento em um período sombrio. “Quero ter liberdade para falar sobre o que eu quiser. As pessoas vão absorver e filtrar aquilo que elas desejarem. Não posso e não vou direcionar nada”, explicou o rapper durante o evento on-line de lançamento do projeto, em conversa mediada pela jornalista Adriana Ferreira Silva.
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Clique aquiBrown exerceu a função de entrevistador em 16 episódios, com um perfil variado de convidados. “Tive que sair da zona de conforto. Aí pude ver como é para um jornalista abordar um convidado e tirar dele o que você quer que as pessoas saibam”, disse o artista, que ao longo dos 30 anos de carreira sempre foi avesso à entrevistas. Até por isso, Mano a Mano é uma forma de também conhecer Brown, ainda que a intenção seja torná-lo um coadjuvante de luxo. “Sou o cara mais comum do mundo. Um brasileiro de mentalidade mediana, como diz Jorge Ben. Filho de uma mulher negra com um cara branco desconhecido. Um filho da escravidão e um típico produto brasileiro.”
Até o momento, foram divulgados apenas os cinco primeiros convidados. A estreia é com a rapper Karol Conká, criticada nacionalmente por sua participação questionável no BBB21. Brown afirma que muitas pessoas ao seu redor não queriam ter a artista no podcast, mas ele bancou a participação da cantora. “Era algo delicado até para mim. Ela teve 99% de rejeição. Naquele momento, ninguém queria ouvi-la, agora já não sei. Eu não assisti e não assisto o Big Brother, mas me interessa ouvi-la. Quem manda em mim sou eu. Uma mulher negra, em um momento frágil... Até lembrei um pouco da minha mãe, que também não era fácil. Esse olhar fez bem ao nosso diálogo”, ressaltou Brown.
A lista segue e inclui o médico Drauzio Varella, com quem o rapper mantém amizade de longa data. “É como um pai que eu não tive. Ficaria conversando com ele o dia inteiro se pudesse”. Além dele, outros entrevistados já revelados são o técnico de futebol Vanderlei Luxemburgo, o pastor Henrique Vieira e o vereador Fernando Holiday (Novo), ex-liderança do MBL (Movimento Brasil Livre). Citada por Brown en passant, a conversa com Juary, Gilberto Sorriso e Pita, ex-jogadores do Santos, time do coração do rapper, ainda não foi confirmada.
De todos os nomes anunciados até o momento, o que causou maior furor foi o de Holiday. Jovem negro de direita, o vereador já fez críticas a amigos de Brown, como o rapper Emicida, e mantém posicionamento político contrário ao do líder dos Racionais. “É um cara polêmico. Discordo de algumas coisas que ele pensa. É um cara que ninguém queria ouvir e isso me interessa, por mais que eu discorde. Ele é uma inteligência negra emergente, embora acredite que ele esteja equivocado em suas escolhas políticas”, avaliou Brown.
Ao EL PAÍS Holiday afirmou que o rapper foi “justo e democrático” ao longo da entrevista. “O foco da conversa foram os meus posicionamentos relativos às cotas raciais e outras políticas sociais de combate ao racismo. Foi um dos poucos momentos em que pude ser confrontado de maneira mais profunda sobre isso e embasar com mais completude o que penso sobre esses temas. Ele [Brown], apesar de não concordar com muitas coisas, respeitou os meus posicionamentos”, revelou.
“Pude conhecer melhor a história de vida dele, sua trajetória, e como isso impacta na formação dos seus posicionamentos. Então, o podcast serviu para que eu entendesse e mudasse um pouco a visão e a percepção que tinha sobre ele”, completou. “As minhas ideias continuam iguais, mas acredito que a conversa serviu para que eu pudesse refletir sobre o modo como me expresso, por vezes tachada como radical.”
A conversa com Holiday faz parte do que Brown entende como um movimento a ser feito em um Brasil fragmentado. “As pessoas que são de direita estão nas ruas, praticando o que pensam. Não é deixando de falar com elas que isso vai deixar de existir. Nós vamos ter que dialogar com esses eleitores”, diz o artista. “Quem foi que votou no Bolsonaro? Essas pessoas estão aí, algumas escondidas. Mas elas continuam pensando da mesma forma, ainda que Bolsonaro possa ter sido uma decepção. Esse eleitorado não é uma massa que pode ser desprezada e desconsiderada. "
No polo oposto, o pastor Henrique Vieira, filiado ao PSOL e cuja candidatura a cargos eletivos é sempre especulada, sobretudo no Rio de Janeiro, definiu Brown como alguém com “sensibilidade crítica” e “multiplicidade de temas”. “Foi uma experiência instigante, fora da caixa, do padrão. Ele nos tira de um lugar cômodo e vai provocando pensamentos cada vez mais ampliados”, disse Vieira ao EL PAÍS.
A religião esteve presente nos estudos de Brown ao longo da pandemia e apareceram com força no podcast. “Onde estão os negros da Bíblia? Por onde andou Jesus dos 12 aos 32 anos? Quem foi Cam? Falei disso com o Henrique Vieira. São temas que muitos religiosos não dominam completamente”, disse Brown, que valoriza a troca de ideias, mas há posições inegociáveis. “Há temas que não tem como se acovardar. Não estou fechado para novos entendimentos, mas tenho meus posicionamentos.”
Uma geração diferenciada
Desde o fim dos anos 1980, Brown e os Racionais MC’s usaram a música para narrar as transformações que viam a olho nu. Álbuns como Holocausto urbano (1990), Raio-X do Brasil (1993) e Sobrevivendo no inferno (1997) trazem como ponto central a violência contra a população negra e periférica que vive nas franjas das grandes cidades. “Como rapper, sempre expus minha opinião, sobretudo naquele momento de treva, onde a raça negra era sufocada e só aparecia nas páginas policiais. Músicas como Homem na estrada e Fim de semana no parque eram maneiras de se entender a situação do negro no Brasil”, explicou
A situação começou a mudar em 2002, com o lançamento de Nada como um dia após o outro dia, álbum que apresenta uma situação diferente não só do grupo, mas também da vida na periferia das metrópoles, com elementos que remetem ao dinheiro farto e à ostentação, componentes que se fixaram na cena atual do rap. Essa mudança no cenário musical impactou a formação de novos artistas, com aspirações distintas da geração de Brown, com destaque para Djonga, Emicida, Rincon Sapiência, BK, entre outros.
“O Brasil tem algo histórico. Toda vez que um negro começa a alcançar a liberdade, alguém grita ‘Pega!’. Às vezes o próprio negro avisa o sistema. Tem gente que não gosta de ver o preto rico no Brasil”, diz ele. Em sua visão, o Brasil aceita que negro possa ter dinheiro, desde que se mantenha dentro do quadrado, que sirva ao sistema. “O problema é quando ele sai desse quadrado. E essa geração atual do rap não quer ser subserviente ao sistema. Eles chegam e tomam tudo. Emicida, por exemplo, está dando aula em Portugal. É sobre isso”, disse Brown.
Essa mudança histórica alcança também a sociedade como um todo, garante o rapper. “A gente vive um momento diferente de inteligências negras, que conseguiram driblar essa asfixia. O que era importante em 1960 deixou de ser relevante em 1988, quando eu comecei. O Brasil era uma fazenda e hoje são quase 220 milhões de habitantes. A perspectiva mudou”, avalia. A mudança passa pela juventude atual que quer chegar muito mais longe do que a sua geração, “que lutava por direitos básicos: comer, uma roupa para vestir e um ônibus. Eu andava um quilômetro para pegar um ônibus. Essa resenha não cabe mais para a molecada atual”, salientou.
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