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Irapuã Santana: “Os brancos cometem mais crimes patrimoniais que os negros, e os perigosos somos nós”

Membro do movimento liberal Livres e voluntário na Educafro, advogado foge do estereótipo da polarização ao defender o liberalismo ao mesmo tempo em que se engaja na luta antirracista. Ele esteve por trás da ação que garantiu a distribuição proporcional de recursos para candidatos negros em 2020

Irapuã Santana, advogado e procurador do município de Mauá (SP).
Irapuã Santana, advogado e procurador do município de Mauá (SP).Wanezza Soares
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People attend a protest against police violence and racism, amid the coronavirus disease (COVID-19) outbreak, in Sao Paulo, Brazil, July 4, 2020. REUTERS/Amanda Perobelli
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Há mais de 100 milhões de processos em andamento na justiça brasileira. Sinal de que as pessoas buscam o Judiciário por qualquer motivo? A tese de doutorado de Irapuã Santana, de 34 anos, demonstra que essa percepção, bastante difundida, é falsa. Na verdade, é justamente o contrário. “As pessoas mais pobres, ganhando um salário mínimo [1.100 reais], preferem suportar um prejuízo de 1.000,1.500 reais a ingressar na justiça”, explica o advogado em entrevista ao EL PAÍS por videoconferência. Ele acaba de publicar o estudo em livro, intitulado Acesso à Justiça - Uma análise multidisciplinar, pela editora JusPODIVM, que explica a inibição de enfrentar a injustiça. A certeza de que não serão contemplados inibe qualquer ação.

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A pesquisa fez 14 perguntas a cerca de 1.800 pessoas que ganham cerca de um salário mínimo. Em uma delas, pedia para que dessem uma nota de zero a 10 para o Judiciário. A média foi de 4,36. “A população tem os dois pés atrás com o Judiciário porque sabe que a probabilidade de ter o problema resolvido é pequena”, afirma Santana, procurador do município de Mauá (SP) e advogado voluntário da ONG Educafro. Por que há, então, tantos processos emperrados na área cível? A obra, que conta com prefácios dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Luis Roberto Barroso e Luiz Fux, este último também o orientador da tese, aponta que dos 10 maiores litigantes, seis são o próprio Estado —sobretudo INSS e bancos estatais, além de municípios e outros setores. São instituições públicas que se valem do Judiciário para postergar algumas de suas obrigações previstas em lei, como arcar com tratamentos médicos caros, por exemplo. “De um lado, temos uma Constituição que prevê tudo”, explica. “Do outro, temos um estrutura do Estado que utiliza o próprio Estado para ingressar com ações que obviamente serão julgadas improcedentes, ou recorrendo eternamente até não poder mais”, completa.

Nascido e criado em bairros periféricos do Rio de Janeiro, Santana escapa dos estereótipos criados pela divisão política no Brasil. Ele é liberal, consultor jurídico do movimento Livres e, como tal, defende privatizações e outras reformas que redimensionem o papel do Estado na economia brasileira. Ao mesmo tempo, milita pela causa antirracista na Educafro, onde dá curso de capacitação para advocacia racial, e enxerga um papel crucial do Estado na promoção de serviços públicos e de políticas públicas afirmativas. Ele fez parte da primeira turma de alunos que ingressou, em 2004, por cotas sócio-raciais na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), pioneira no Brasil na formulação dessa política. Lá, foi aluno de Barroso e de Fux. Para este último, também trabalhou como assessor em Brasília entre 2014 e 2018. Logo após se formar, foi aprovado no concurso para procurador em Mauá (SP), com apenas 24 anos.

Para ele, quem afirma que as cotas dividem a sociedade parte de uma premissa errada. “A sociedade já está dividida. As cotas só escancaram e tentam reverter isso”, argumenta. Ele também defende iniciativas como a da rede Magazine Luiza, que no ano passado abriu processo seletivo de trainee apenas para negros. Em 2022, quando a lei de cotas no Brasil completa 10 anos, ela deverá ser revisada pelo Governo Jair Bolsonaro, que é contra a política. “As pessoas brancas precisam entender que esse espaço foi dado a elas de modo irregular por muito tempo, e estamos legitimamente tomando nosso lugar”, defende.

Santana, que cresceu nos bairros cariocas de Piedade, Ramos e Madureira, guarda memórias de infância típica de um garoto do subúrbio que brincava na rua, corria descalço, jogava futebol “mal pra caramba” e vivia machucando o dedão do pé. Mudou-se na adolescência para o município de Maricá, onde seus pais vivem até hoje. Filho de Xangô, o orixá da Justiça, ele chegou a passar pela preparação para ser iniciado no candomblé, mas ainda não o fez. Seu pai é católico e funcionário público aposentado. Manteve sua família sendo maquinista dos trens urbanos do Rio. Já sua mãe é candomblecista e dona de casa. “Meus pais sempre me apoiaram muito, e esse é um grande diferencial na minha vida. Eles me diziam ‘olha, se você quer mudar de vida, você tem que estudar, tem que ler, tem que fazer...’”.

Racismo não era discutido de forma recorrente em casa, mas seus pais buscaram prepará-lo para as armadilhas do mundo. “Meu pai sempre falava que o negro tinha que matar dois leões por dia, não só um. Minha mãe me falava para sempre sair com identidade, carteira...”. Ela tinha suas razões. A primeira abordagem policial que Santana recorda aconteceu aos 12 anos, voltando da padaria à noite. Teve de virar de costas, levantar a camisa e entregar a carteira de identidade enquanto era revistado, com um dos agentes apontando a arma.

As experiências foram aumentando conforme foi crescendo. “Dependendo da hora e do dia, as pessoas se assustam e ficam com medo de mim. Seguram a bolsa, andam mais rápido. Hoje tento não ligar muito”, conta. Certa vez, quando já era assessor de Fux, foi parado e encostado na parede por dois policiais na Lapa, centro do Rio. “Perguntaram meu nome e rebati. ‘Por quê?’. Comecei a ficar muito revoltado, dei uma enfrentada. Foi nesse dia que falei: independentemente de roupa, de qualquer coisa... Não é ser suspeito, é ser preto”.

Destaca que “estatisticamente os brancos cometem mais crimes patrimoniais que os negros”. Mas, ainda assim, está embrenhada no imaginário coletivo a ideia absurda de que quanto mais escura for a pele da pessoa, mais perigosa ela é. “A gente sempre fica na mira da arma. Você não faz parte de facção nenhuma, mas para a polícia você é suspeito, para quem mora fora da comunidade você é um potencial criminoso”, afirma o advogado, para quem a política de guerra contra as drogas fracassou e deve ser deixada de lado. A solução, argumenta ele, passa por colocar mais negros em postos de trabalho que “não sejam de subserviência”, mostrando que também podem ser médicos, advogados ou engenheiros.

Repasses iguais na eleição

Antes das eleições de 2020, advogou pela ação movida pela deputada federal Benedita da Silva (PT) e pela Educafro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que garantiu a distribuição proporcional de recursos para candidaturas de pessoas negras no pleito do ano passado. O tribunal aprovou na ocasião que a divisão dos fundos partidário e eleitoral, além do tempo de propaganda na TV, deveria ser proporcional ao número de postulantes negros, mas só a partir de 2022. Foi então que Santana e a Educafro se juntaram ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) para ingressar no Supremo, que por 10 votos a 1 determinou que os partidos aplicassem a regra já no pleito do ano passado. “Não estamos falando de dinheiro privado, mas sim de um fundo eleitoral que é feito para financiar gente rica e branca”, argumenta. “Se o Estado fala que é preciso erradicar o racismo, mas ele mesmo perpetua o racismo, então temos de entrar questionando isso”.

Liberais e grupos do movimento negro ainda se encontram pouco nas ruas, mas Santana se mostra orgulhoso de manter diálogo com pessoas do PSOL ao Novo. “Para entrar com esse tipo de ação no Supremo é preciso um partido político. Vou deixar de fazer só porque o PSOL tem uma ideologia diferente da minha na economia? Nada a ver. Eu debato e dialogo com todo mundo que queira debater e dialogar comigo”, argumenta o rapaz. “Quando o assunto é Direitos Humanos, precisamos reconhecer quem de fato quer efetivá-lo e resguardá-lo”.

Santana explica por quê mantém os pés firmes nas diferentes canoas: “Para os liberais a desigualdade é um tema importante, ela não pode ser tão gigantesca quanto é no Brasil. Isso também é ruim para o crescimento”, argumenta o advogado, que coordena a setorial antirracista do Livres —que reconheceu o caráter estrutural do racismo, ainda que isentando de culpa o capitalismo ou a ideologia liberal. O Bolsa Família, continua ele, “é um benefício de ideia liberal que emancipa as pessoas, porque quem precisa dar as condições mínimas para isso acontecer é o Estado”. Não é possível falar sobre meritocracia, tão valorizada entre liberais, enquanto o racismo e os atuais níveis de desigualdade forem mantidos. “O racismo é um fator importante dentro dessa equação. Precisa ser extirpado para que os negros possam ser efetivamente livres para escolher o que quiserem ser ou que tenham potencial de ser”.

Irapuã Santana, advogado e procurador do município de Mauá (SP).
Irapuã Santana, advogado e procurador do município de Mauá (SP).Wanezza Soares

Militância em campos diferentes

Manter de forma paralela uma militância nos movimentos negro e liberal também significa ser questionado em certos momentos por colegas de ativismo. “Tem um pessoal mais extremista que fala que sou comunista, psolista, coisas assim. Já quiseram caçar minha carteirinha de liberal por ser a favor das cotas. Gente, tá bom, então cacem”, ironiza.

Entre a esquerda e membros do movimento negro, também já foi tachado de direitista. “A vida do liberal é apanhar dos dois lados em alguma medida”, afirma. Ele até já se identificou com a esquerda no passado, mas começou a mudar de lado quando percebeu que “algumas de suas soluções não vão funcionar”. Nenhuma ideologia política, como o próprio liberalismo, está isenta de erros e de violências cometidas no passado e no presente. “Mas se fosse fácil, o mundo inteiro já teria adotado uma corrente política única. A gente tem que partir de nossa experiência e ir aprimorando as coisas”.

Manteve, isso sim, a convicção de que “na prática as pessoas não são iguais e é preciso ação do Estado, que não deve ser mínimo mas deve gerir melhor seus recursos”. De modo geral, acredita ser bastante respeitado nos espaços que ocupa. “Eu carrego essa ideia, que acho muito importante, de ser suprapartidário. Frei David [teólogo criador da Educafro] e o pessoal da Educafro são super de esquerda e a gente sempre debate bastante. Partimos do princípio que queremos o melhor para a população negra.” Essas convicções fazem com que Santana tenha como referência pessoas com as quais nem sempre concorda ideologicamente, como a filósofa marxista estadounidense Angela Davis ou o advogado Silvio Almeida, de quem é amigo.

Foi na adolescência, ao ler as biografias de Martin Luther King, Nelson Mandela e Malcolm X, três figuras entre as quais mais admira, quando diz ter começado a entender que a sociedade é movida pelo racismo estrutural. Seu herói é o brasileiro Luiz Gama, jornalista e advogado abolicionista, recentemente reconhecido como tal pela OAB. “Ele foi um grande liberal anti-escravagista com uma força moral muito grande”, argumenta Santana sobre o homem que nasceu livre, foi vendido pelo seu pai, um português branco, e conquistou a liberdade aos 18 anos. “Ele não pôde estudar Direito por ser negro, mas foi autodidata, teve várias atribulações na vida por conta de seu ativismo e, mesmo assim, libertou mais de 500 pessoas escravizadas. É uma coisa absurda”, prossegue.

Atualmente morando em São Paulo, Santana tem planos de passar todos esses valores acumulados ao longo de uma vida para sua filha Beatriz, de um ano. Se hoje ele fala sobre política e racismo com seus pais de forma mais aberta, com ela pretende dar uma educação antirracista desde cedo. Até comprou uma coleção de livros sobre personalidades negras como Clementina de Jesus, Barack Obama e Nelson Mandela, e pretende adquirir uma boneca da ativista norte-americana Rosa Parks, que lutou ao lado de Martin Luther King no movimento pelos direitos civis nos anos 60. “Eu acho importante mostrar que é preciso fortalecer o movimento feminista e a mulher negra, pensar num feminismo inclusivo”, argumenta.

Entre as figuras contemporâneas, fica com o professor Hélio Santos, membro histórico do movimento negro que hoje atua na área de empreendedorismo. Durante uma conversa em videoconferência, Santos mostrou que a admiração é recíproca: “Irapuã é um doutor com grandes vitórias. O que nós projetamos para o Irapuã? Não sei se a Presidência da República, o Supremo Tribunal Federal...”, afirmou. “Você não sabe, Irapuã, o orgulho que minha geração tem de ter produzido pessoas com seu perfil.”

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