O “coro demoníaco” de Bolsonaro durante a pandemia se traduz em nove crimes ou 68 anos de prisão
Segundo o primogênito do presidente, Flávio Bolsonaro, o mandatário deve ter dado uma gargalhada ao saber do relatório da CPI da Pandemia. Documento será votado no dia 26
Foi com deboche que o presidente Jair Bolsonaro reagiu ao relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia que sugere o seu indiciamento por nove crimes cometidos durante a gestão da maior crise sanitária enfrentada pelo mundo. A crise de saúde resultou até o momento em mais de 603.000 mortes por covid-19 no Brasil. Segundo o seu primogênito, o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), o presidente deve ter gargalhado ao saber do teor do documento elaborado pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL), e que atribui a ele nove delitos: epidemia, crimes contra a humanidade, infração de medidas sanitárias, incitação ao crime, emprego irregular de verba pública, charlatanismo, prevaricação, falsificação de documentos particulares e crime de responsabilidade. As penas para todos esses crimes somados variam de cinco anos e quatro meses de detenção a até 68 anos e dez meses. Além da perda de mandato e dos direitos políticos, caso prospere um improvável processo de impeachment contra o mandatário.
— Como o presidente recebe essa sugestão de indiciamento por tantos crimes? — pergunta uma repórter ao senador.
– Você conhece aquela gargalhada dele? Hahahaha [imita a risada]. Por que não tem o que fazer diferente disso! É uma piada de muito mau gosto o que o senador Renan Calheiros faz — responde Flávio Bolsonaro.
O tratamento insensível com os mortos durante a pandemia tem sido uma das marcas da presidência de Jair Bolsonaro. Ele já disse que não tinha de se preocupar com os falecidos porque não era coveiro, já colocou em dúvidas os números de óbitos registrados, chamou de idiota quem o cobrava para acelerar a compra de vacinas, incitou a população a criticar governadores e prefeitos que impuseram medidas de restrição de circulação e sempre tentou eximir-se de culpa por o Brasil ter um elevado índice de contaminação, apesar de seus discursos anticiência e contra a imunização da população.
Bolsonaro também se manifestou sobre o relatório. Disse que não tem “culpa absolutamente de nada”. “Nada produziram [a CPI], a não ser o ódio e o rancor entre alguns de nós. Mas sabemos que não temos culpa de absolutamente nada, fizemos a coisa certa desde o primeiro momento”, declarou no interior do Ceará, durante um evento público do Governo federal.
Nesta quarta-feira, a CPI oficializou a sugestão de indiciamento de Bolsonaro, de outras 65 pessoas e de duas empresas – Precisa Medicamentos e VTCLog. O documento deverá ser analisado no próximo dia 26 pelo plenário da comissão. Para ser aprovado, são necessários os votos da maioria dos 11 senadores que compõe o colegiado. A previsão é que o placar seja de 7 votos a favor do relatório e 4 contra, levando-se em conta as composições da comissão até aqui.
Além do presidente, são indiciados quatro ministros —Marcelo Queiroga (Saúde), Walter Braga Netto (Defesa), Onyx Lorenzoni (Trabalho) e Wagner Rosário (Controladoria-Geral)—, três ex-ministros —Eduardo Pazuello (Saúde), Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Fábio Wajngarten (Secretaria de Comunicação)— além dos três filhos políticos do presidente, o senador Flávio, o deputado Eduardo e o vereador Carlos.
Na leitura do resumo de seu relatório, Calheiros disse que a Gestão Bolsonaro desprezou a vida. “Esse trabalho coletivo silenciou um coro demoníaco vindo de uma catedral da morte, sediada pelo Governo federal. Geraram uma necrópole aterradora, marcada pelo desprezo à vida, pelo escárnio com a dor de mais de 600.000 famílias, pela insensibilidade e indiferença humanitária. Categorias que resvalam na insanidade, na psicopatia que marcam comportamentos primitivos do ogro e dos bárbaros”
Barreiras jurídica e política
O deboche de Bolsonaro, de seus familiares e de sua base congressual, que consideraram o relatório inconstitucional uma “maluquice”, uma “peça de ficção”, talvez esteja amparado em uma Procuradoria Geral da República que pouco ou nada fez para frear os desmandos do Governo ou para cobrar ações dele no enfrentamento da doença. Assim como da classe política ilustrada na figura do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que não deu andamento a nenhum dos mais de 130 pedidos de impeachment contra ele. Pela legislação brasileira, CPIs não têm o poder de denunciar ou punir. A elas cabe encaminhar as sugestões e conclusões aos órgãos de fiscalização competentes.
O alinhamento entre Aras e Bolsonaro é tamanho que o procurador já se manifestou contrário a pelo menos duas investigações que agora são citadas no relatório contra o presidente, as dos crimes de epidemia e prevaricação. Isso ocorreu ao longo de 2021, quando senadores opositores recorreram ao Supremo Tribuna Federal para acusar o presidente de ser conivente com um esquema de corrupção que estava em andamento no Ministério da Saúde e quando um grupo de ex-procuradores cobrou que Aras denunciasse Bolsonaro por epidemia.
Bolsonaro faz de tudo para permanecer acima da leiPedro Abramovay, diretor da Open Society Foundations
Para o diretor para América Latina da Open Society Foundations, Pedro Abramovay, o presidente procede como uma pessoa que sempre cometeu crimes e nunca foi punida. Ao assumir o poder, ele conseguiu se blindar ainda mais. “O presidente mostrou que é possível se tornar um presidente livre de qualquer punição se você cooptar o presidente da Câmara e o PGR. Bolsonaro faz de tudo para permanecer acima da lei”, afirmou ao EL PAÍS.
Na visão de Abramovay, ex-secretário-nacional de Justiça, o relatório da CPI conseguiu furar uma espécie de bolha de proteção que havia até então ao presidente. “O impacto é mais do que só na imagem do presidente. Ele fez de tudo para cooptar instituições. Essa é uma resposta institucional a ele”.
Os crimes de Bolsonaro
Em quase seis meses de trabalhos, a CPI concluiu que Bolsonaro precisa ser investigado por nove crimes. Os que chamam mais atenção são os de maiores penas: o crime contra a humanidade, que deve ser analisado pelo Tribunal Penal Internacional, e o de causar epidemia com a propagação de germes patogênicos. Este está previsto no artigo 267 do Código Penal. Em caso de morte da vítima, a punição do culpado é de 20 a 30 anos de reclusão.
No parecer, Renan Calheiros destacou que comete o crime de epidemia não somente aquele que origina ou produz uma epidemia, com a propagação inicial de germes patogênicos, “mas também quem, mesmo após iniciado o quadro epidêmico, age ou se omite para dar causa a um processo epidêmico de maiores proporções”. No entendimento do relator, quando o Governo Bolsonaro atrasou a compra de vacinas, se contrapôs ao distanciamento social e ao uso de máscaras ou quando incentivou o uso de medicamentos ineficazes contra o novo coronavírus, contribuiu para o risco de propagação da doença.
Sobre o crime contra a humanidade, cuja pena pode chegar a 30 anos de prisão, o embasamento é o artigo 7º do decreto 4.388, que promulga o Estatuto de Roma. O presidente é apontado pelo relator como um dos responsáveis pelo colapso na rede de saúde de Manaus, quando faltou oxigênio para os pacientes, pela compra e incentivo do uso dos ineficientes kits covid e por ataques contra a população indígena. “O que distingue a morte de centenas de indígenas da morte de centenas de milhares de outros dos nossos concidadãos é, fundamentalmente, a intenção de submeter esse grupo específico da população ao risco de contágio”, delineou Calheiros.
Genocídio e governador do Amazonas ficam de fora
Calheiros planejkava sugerir o indiciamento de Bolsonaro pelos crimes de genocídio dos povos indígenas e de homicídio qualificado. Mas, depois da pressão de colegas de seu grupo político quanto ao peso dos termos e de discussões técnicas, decidiu dar um passo atrás. O genocídio entrou no âmbito dos crimes contra a humanidade e o homicídio qualificado, no de epidemia. “Homicídio doloso qualificado, pela legislação, é algo cometido contra alguém identificado. São mais de 600.000 vítimas. Ou seja, é algo que não se sustentaria. Então, saiu. Mas ficou o crime de epidemia com resultado morte, que tem caráter coletivo”, explicou um técnico da CPI.
“Preferimos ter um relatório forte, contundente, que seja aprovado pela maioria para, em seguida, exigirmos a apuração dos crimes e a punição dos envolvidos”, ressaltou o vice-presidente da comissão, Randolfe Rodrigues (Rede-AP). Na visão dele, apesar do aparente alinhamento do procurador-geral da República, Augusto Aras, com o presidente da República, não haverá maneira de Bolsonaro se esquivar de futuras denúncias criminais. “O PGR receberá um relatório com todos os elementos necessários para dar encaminhamento às investigações.”
Além da não caracterização do genocídio, outra ausência que gerou queixas entre os senadores opositores foi o não indiciamento do governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC). Dois senadores amazonenses, Eduardo Braga (MDB) e Omar Aziz (PSD) cobraram publicamente Calheiros para incluir Lima no rol dos indiciados. Trataria-se de mais do que uma questão política —ambos são de grupos políticos distintos do governador—, pois tem valor humanitária, já que Manaus sofreu uma crise de abastecimento de oxigênio em janeiro que resultou na dezena de mortes de pacientes internados com covid-19.
A inclusão de Lima no relatório final ainda pode ocorrer até a próxima terça-feira. O relator disse que está à disposição para algumas modificações. Após a possível aprovação do documento, os senadores montarão um Observatório do Senado para cobrar o andamento das apurações junto aos órgãos responsáveis. Para o dia 27 eles prometem um ato na Procuradoria-Geral da República, onde entregarão oficialmente o parecer. E ainda neste ano pretendem fazer o mesmo junto ao Tribunal Penal Internacional. A busca por punições está apenas começando.
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