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Bolsonaro fica entre o crime contra a humanidade e o charlatanismo no relatório da CPI da Pandemia

Vazamento do parecer do relator Renan Calheiros antecipa discussão que os senadores travarão até o dia 26 para definir o grau de gravidade da conduta do presidente durante a crise de saúde da covid-19

Painel eletrônico exibe vídeo do presidente Jair Bolsonaro diante do relator da CPI da Pandemia, Renan Calheiros, durante sessão em 8 de junho.
Painel eletrônico exibe vídeo do presidente Jair Bolsonaro diante do relator da CPI da Pandemia, Renan Calheiros, durante sessão em 8 de junho.Edilson Rodrigues (Edilson Rodrigues/Agência Senad)

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O presidente Jair Bolsonaro cometeu crime contra a humanidade durante a pandemia da covid-19. Essa é a leitura do relator da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia, que vai chegando ao fim após uma maratona de quase 70 reuniões percorridas para descobrir os responsáveis pelas 600.000 mortes provocadas pelo coronavírus no Brasil. O relatório produzido pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL) e vazado antes de sua leitura oficial, que será feita nesta quarta-feira, desvela uma rede de falsas informações capitaneada pelo presidente com a conivência da classe médica, que levou o país ao sétimo lugar do mundo na relação de morte por habitantes —o Brasil é responsável por 12,4% dos óbitos do planeta na pandemia, apesar de ter apenas 2,7% da população mundial.

O relator pede 72 indiciamentos —de 70 pessoas e duas empresas— por 24 crimes, e seu principal alvo é Bolsonaro. O presidente teria cometido 11 crimes, que vão desde charlatanismo —”inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível”— até homicídio qualificado por omissão no combate ao coronavírus e genocídio de indígenas, pela “intenção de submeter esse grupo específico da população ao risco de contágio”. Essas duas acusações mais graves não eram consenso entre os parlamentares que participaram da investigação e, durante reunião na noite desta terça-feira, foram retiradas do relatório —a avaliação é de que esses dois crimes estão contemplados na tipificação do crime contra a humanidade e no de epidemia, respectivamente. De qualquer forma, o caminho para que os crimes denunciados venham a ser de fato investigados pela justiça brasileira é incerto: o procurador-geral, Augusto Aras, responsável por acusar formalmente o presidente da República, já demonstrou mais de uma vez que não pretende incomodar Bolsonaro.

Para tentar diminuir a resistência de colegas em relação à acusação de genocídio, Calheiros ressaltou a prudência ao tratar do tema no relatório. “Nem todo massacre, morticínio ou assassinato em massa pode ser descrito como genocídio. Devemos preservar o discernimento para não desqualificar a gravidade dos fatos e chamar cada um à devida responsabilidade”, escreveu. No documento, o relator diz que Bolsonaro atuou para “favorecer a contaminação e consequentemente a morte dos brasileiros que ele tinha a obrigação de proteger”. “As manifestações do Presidente da República fizeram parte de uma estratégia que, embora equivocada, foi cuidadosamente organizada de forma a alcançar o objetivo de acelerar a disseminação do vírus, para atingir a imunidade de rebanho ao menor custo possível”, descreve o relator.

Os senadores se reúnem nesta quarta-feira para ouvir a leitura do relatório e terão mais seis dias até decidir se endossam tudo o que Calheiros escreveu. Além dos pedidos de investigação do presidente por homicídio e genocídio, os parlamentares também se questionam sobre o indiciamento dos três filhos políticos de Bolsonaro —um senador, um deputado e um vereador— por terem participado da rede de desinformação liderada pelo presidente durante a pandemia. “Temos de fazer um relatório devastador, mas não podemos nos perder nas questões jurídicas pra não darmos brechas para questionamentos”, explica o senador Humberto Costa (PT-PE), membro da CPI e opositor do Governo.

Outro ponto de discórdia é o indiciamento do ministro da Defesa, Walter Braga Netto. General do Exército, ele foi o chefe da Casa Civil e responsável pela coordenação das primeiras ações no enfrentamento da doença. Calheiros entende que o general seja indiciado pelo crime de epidemia, mas parte dos parlamentares teme que o Exército veja a acusação como uma provocação. O não indiciamento do governador do Amazonas, o bolsonarista Wilson Lima (PSC), também resultou em queixas entre os parlamentares. O presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), reclamou que Lima teria responsabilidade sobre as mortes de dezenas de amazonenses durante a crise da falta de cilindros de oxigênio em Manaus. Dos membros da CPI, Aziz é o que mais se irritou com o vazamento do relatório.

1178 páginas

Afora os pontos de divergência, não parece restar dúvidas quanto ao papel de liderança do presidente na costura de uma cortina de fake news para esconder as falhas gritantes de seu Governo no enfrentamento da pandemia. Falhas como a incapacidade do Executivo federal de se articular com Estados e municípios no “planejamento das ações para aquisição de insumos estratégicos e para a elaboração dos planos tático-operacionais”. O relatório de 1178 páginas disseca em 16 capítulos como Bolsonaro se cercou informalmente de um gabinete paralelo composto por médicos, políticos e empresários para defender tratamentos sem comprovação científica quase que como uma política de Governo, “ao arrepio das orientações técnicas do Ministério da Saúde, sem ter investidura formal nos cargos públicos responsáveis por essa função”.

A política negacionista de Bolsonaro teve o suporte de um órgão considerado técnico, o Conselho Federal de Medicina (CFM), que não se opôs ao uso da cloroquina mesmo depois de ficar mais claro que ela não serve para tratar a covid-19. O presidente do órgão, Mauro Luiz de Brito Ribeiro, teve seu indiciamento sugerido pelo delito de epidemia culposa com resultado morte. Foi escorado no gabinete informal composto por órgãos como esse que Bolsonaro advogou pela imunidade de rebanho —a ideia de que o melhor caminho para encerrar a pandemia seria permitir que a maior parte de brasileiros possível se contaminasse— e que, até hoje, semeia dúvidas sobre as vacinas que seu próprio Governo comprou, e com as quais mais de 100 milhões de brasileiros já foram imunizados com o ciclo completo.

Ao longo de todo o relatório, Renan Calheiros ressalta que o Governo demorou para contratar vacinas contra o coronavírus —um assunto que tomou diversas sessões televisionadas da investigação, primeiro por causa da demora de meses do Governo para se entender com a Pfizer e, depois, pelas suspeitas de corrupção na negociação para a compra de vacinas como Covaxin e Sputnik V, que não chegaram a ser adquiridas pelo Governo brasileiro. “O atraso na aquisição de vacinas impôs escassez à população e redução do ritmo de vacinação, o que aumentou a mortalidade pelo vírus”, destaca o texto, que guarda uma sessão para a crise de falta de oxigênio no Amazonas, o ápice da tragédia pandêmica no Brasil.

Entre senadores que lideraram a investigação, há uma preocupação de que o relatório seja rejeitado no próximo dia 26, como consequência do desentendimento quanto aos crimes mais graves atribuídos ao presidente e a alguns de seus ministros —entre os pedidos de indiciamento estão Marcelo Queiroga (Saúde), por epidemia e prevaricação; Onyx Lorenzoni (Trabalho), por incitação ao crime e genocídio de indígenas, e Wagner Rosário (Controladoria), por prevaricação. Mesmo divergências políticas regionais entre os membros da comissão ameaçam retirar votos que garantiriam a aprovação do texto final. O histórico de Calheiros, um político desgastado há décadas por inúmeras acusações de corrupção, também não advoga a favor de seu parecer sobre quem e por que deveria ser punido pelo desempenho do Governo no combate à pandemia.

Os parlamentares também discutem se considerarão ou não as informações referentes à disseminação de fake news. Calheiros usou em seu relatório trechos da investigação sobre desinformação conduzida por militantes bolsonaristas que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF). Os demais senadores não tiveram acesso a esse documento e se queixam da falta de embasamento para acusar os bolsonaristas, entre eles o primogênito do presidente, o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), de incitação ao crime, ao espalhar informações sobre a efetividade do kit covid ou dúvidas sobre as vacinas.

Ainda que o relatório seja aprovado como proposto, caberá a outros órgãos uma punição formal a Bolsonaro e a seus aliados. O texto ainda será analisado pelo Ministério Público Federal, que tem à sua frente um procurador apontado como apoiador de Bolsonaro. No comando da Câmara, por onde se inicia a tramitação de qualquer processo de destituição, está outro bolsonarista, o deputado Arthur Lira (PP-AL). De qualquer forma, o fim da CPI da Pandemia marca mais um capítulo de intenso desgaste para um presidente que vive seu pior nível de aprovação popular e que se encaminha para o ano eleitoral extremamente enfraquecido.

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