Relatório da CPI liga os pontos da política anticiência que devastou o país na pandemia
Bolsonaro é acusado de 9 violações graves, incluindo o crime contra a humanidade que pode embasar nova denúncia contra Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional
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O Brasil inaugura nesta quarta uma batalha para apontar e punir os culpados de facilitar a disseminação da covid-19 durante a pandemia para acelerar uma imunidade de rebanho e retomar a atividade econômica a qualquer preço. A lista é grande, encabeçada pelo presidente Jair Bolsonaro, acusado de cometer 9 delitos graves que ajudaram a espalhar o vírus, resultando em mais de 600.000 mortos. A constatação é da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou nos últimos seis meses as causas que levaram o país a chegar a esse resultado. O relatório da Comissão, de mais de 1.000 páginas, foi lido nesta quarta no Senado e aponta 68 pessoas (66 pessoas físicas e duas jurídicas) como responsáveis por uma cadeia de atos — e uma teia de desinformação —, dentro e fora do Governo, que promoveram uma “estratégia macabra”, que incluiu até cobaias humanas para testar drogas rejeitadas pela ciência no tratamento da covid-19 em hospitais privados.
Entre as violações cometidas pelo presidente, segundo os senadores, estão a incitação ao crime e à epidemia, previstos no Código Penal. Mais grave, é a leitura de que houve crime contra a humanidade, uma transgressão imprescritível, pela omissão e atraso na compra de vacinas e medicamentos eficazes, ao mesmo tempo em que a gravidade do coronavírus foi minimizada. Inicialmente, cogitou-se acusar Bolsonaro por genocídio ou homicídio em massa, mas o temor de que as interpretações jurídicas pudessem dificultar a sua punição fez os senadores responsáveis pelo relatório excluírem esses crimes. Genocídio teria de configurar abusos a um grupo específico, o que foi difícil delimitar neste caso.
O crime contra a humanidade focaria principalmente o papel do Governo diante dos indígenas por ter deixado de vacinar grupos que não viviam em aldeias, deixar de fornecer água em alguns momentos, configurando atos desumanos, perseguição e extermínio. “Não há como afastar a responsabilidade do presidente no que diz respeito às omissões relacionadas ao enfrentamento da pandemia”, disse o relator Renan Calheiros, durante a leitura do relatório. “O conjunto probatório revelou que o chefe do Executivo teve inúmeras condutas que incrementaram as consequências nefastas da covid-19 em nossa população”, diz trecho do documento.
O relatório tem o mérito de ligar todas as pontas de uma política que devastou o país oferecendo remédios ineficazes, precarizando estruturas de atendimentos e criando dificuldades para comprar vacinas. Enquanto isso, se fortalecia um conjunto de leis que liberou médicos e hospitais privados a atuar por conta própria, fazendo propaganda de remédios como cloroquina e ivermectina, inclusive no auge da crise em Manaus, capital que viveu cenas de terror com a falta de oxigênio no início deste ano. Pacientes morriam asfixiados enquanto o Governo insistia em levar pilotos de tratamentos alternativos.
A insistência em remédios ineficazes semeou dúvidas na sociedade, enquanto o presidente Bolsonaro acusava o Supremo Tribunal e os governadores de não poder atuar como desejava — contra as medidas de restrição, estimulando aglomerações e sem usar máscara — para que a população voltasse a circular no auge da pandemia. Bolsonaro chegou a trocar de ministro da Saúde três vezes enquanto insistia em sua política errática. Um dos mais duradouros foi o general Eduardo Pazuello que ocupou o cargo entre junho do ano passado e março deste ano, e que deu aval a todas as investidas negacionistas do presidente. Pazuello também é acusado no relatório por crimes contra a humanidade. Durante a sua gestão, o ministério da Saúde foi ocupado por outros militares que se envolveram em tramas de compras de vacinas mediante suborno. “O Governo optou por uma atuação ‘não técnica’ na gestão da pandemia”, observa o relatório, que acusa o presidente também de charlatanismo.
Bolsonaro, contudo, teve o endosso de ministros, militares, políticos e empresários que o auxiliaram em sua cruzada. Um corpo de médicos negacionistas deu suporte às teses anti-ciência do Governo para oferecer soluções inócuas. Boa parte desse grupo também é acusada de ter cometido crimes.
O relatório da CPI, que pode ser usado como base para punições contra abusos em outros países, enfrenta a resistência de um corpo de senadores governistas que querem derrubar o documento, a ser votado em plenário no dia 26 pelo plenário da CPI, composto por 11 senadores. A oposição tem maioria, mas as barreiras continuam diante de uma Procuradoria Geral da República conduzida por Augusto Aras, alinhado ao presidente. Os senadores, porém, acreditam na pressão internacional e da sociedade que busca uma resposta à altura da dor enfrentada pelo país desde que a pandemia começou em março do ano passado. Juntos, os 9 crimes atribuídos ao presidente somariam mais de 100 anos de prisão. Há também, arcabouço suficiente para abrir um processo de impeachment, algo difícil de acontecer sem a pressão das ruas. Há mais de 100 pedidos de destituição na Câmara que não saem da gaveta. O relatório, porém, tem o poder de encher o noticiário nos próximos dias e desgastar, ainda mais, a imagem do presidente, que vê sua popularidade se deteriorar diante de uma economia cambaleante.
Os deboches de Bolsonaro com a pandemia ficaram famosos no mundo todo. Desde o “E daí?”, quando perguntado sobre as primeiras 5.000 mortes por covid-19, até o “não sou coveiro”, o mundo se chocou diante da indiferença do presidente brasileiro, que desafiou o mundo anunciando que não iria se vacinar por julgar que o coronavírus era uma ‘gripezinha’. O presidente parece manter a mesma postura em meio às conclusões dos trabalhos da CPI. Nesta quarta, o senador Flavio Bolsonaro, filho do presidente foi perguntado sobre como o pai iria reagir ao relatório da Comissão. Flavio então respondeu: “você conhece a gargalhada dele?”, imitando o riso debochado do pai. A dúvida é se ele tem capital político para se blindar e zombar dos trabalhos da Comissão, ou se trata de um riso de escapismo diante da conta alta que pode chegar pela gestão errática a que submeteu o Brasil.
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