Cresce pressão por responsabilizar Bolsonaro por Manaus e ideia de impeachment volta a ser aventada
Por via legal, investigação teria que motivar PGR, alinhada ao Planalto, a questionar presidente. Impotência com gestão de pandemia amplia debate sobre afastamento do mandatário
A tragédia anunciada em Manaus, onde a falta de oxigênio nos hospitais fez com que pacientes morressem asfixiados, é mais um capítulo sombrio da pandemia de covid-19 no Brasil e fez ressurgir o debate sobre a possibilidade de responsabilizar as autoridades, em especial as do Executivo, pela gestão crise sanitária. De acordo com a Constituição federal e a legislação que institui o SUS (Sistema Único de Saúde), quando se trata de saúde, a competência é dividida entre os entes federativos. Quer dizer, a responsabilidade está nas mãos tanto do Estado e do município quanto do Governo federal. “Mas o Ministério da Saúde é a cabeça do SUS e se o Governo Federal não está usando essa cabeça, assume uma responsabilidade específica”, argumenta a jurista Deisy Ventura, especialista na relação entre pandemias e direito internacional.
O argumento é endossado por entidades internacionais como a Human Rights Watch, que, em seu relatório anual sobre a situação dos direitos humanos lançado nesta semana, acusa Bolsonaro de “sabotar” os esforços para controlar a disseminação da covid-19. Nesta sexta, a Conectas Direitos Humanos engrossou o coro, cobrando “uma inflexão radical na postura negacionista do Governo Jair Bolsonaro” e a “remoção imediata do general Eduardo Pazuello”, ministro da Saúde.
Entre as tentativas jurídicas de responsabilizar Jair Bolsonaro —que sempre negou os riscos e impacto da pandemia e é, quiçá, o único presidente antivacinas no mundo neste momento— cogita-se, inclusive, aumentar a pressão pelo impeachment, instrumento que seria mais rápido, em tese. As buscas pelo termo “impeachment Bolsonaro” cresceram notoriamente no Google nesta sexta, 15, e continuaram neste sábado, 16. No Twitter, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que deixará o cargo em breve, foi cobrado insistentemente para que aceite um dos 60 pedidos de impeachment contra Bolsonaro. Maia, que passou a criticar de forma mais veemente o presidente pela gestão da pandemia nas últimas semanas, preferiu ser evasivo ao falar do assunto numa entrevista na televisão ao afirmar que o debate sobre o impeachment no Congresso será “inevitável no futuro”.
A saída radical, no entanto, depende da pressão popular, refém do isolamento, e de uma articulação política que ainda é inconsistente. O forte panelaço desta sexta deu uma certa vazão a esse impulso e já começam os placares de deputados que seriam favoráveis ao afastamento de Bolsonaro. Tudo embrionário, mas um debate que não existia há duas semanas. O jornalista Marlos Apyus deu início a uma campanha informal nas redes para cobrar posicionamento de deputados sobre um eventual impeachment e chegou ao número de 92 parlamentares que se dizem favoráveis —muito aquém dos 342 necessários se houvesse um processo para valer.
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Clique aquiPor ora, há uma tentativa de dissecar a cronologia do colapso na saúde para encontrar saídas legais que cobrem do Governo suas falhas. Na quinta-feira, o Ministério Público Federal (MPF) e do Estado do Amazonas (MP-AM), além da Defensoria Pública da União (DPU) e do Estado (DPE-AM) apresentaram à Justiça Federal de Manaus uma ação civil pública na qual afirmam que a responsabilidade do colapso sanitário é do Governo Federal e que cabe à União assegurar o fornecimento regular de oxigênio para os hospitais. Já nesta sexta, Bolsonaro reconheceu que a situação no Amazonas é “terrível”, mas se isentou da responsabilidade: “Fizemos nossa parte, com recursos e meios”, afirmou. No início da semana, o presidente já havia culpado os gestores regionais: “O Governo estadual e municipal deixou (sic) acabar o oxigênio”. O vice-presidente, Hamilton Mourão, argumenta que não era possível prever o problema, ainda que pesquisadores alertem desde outubro sobre o agravamento da pandemia. “O Governo está fazendo além do que pode, dentro dos meios que a gente dispõe”, declarou ele.
O governador do Amazonas, Wilson Lima, aliado de Bolsonaro, disse, em entrevista à GloboNews, que todas as decisões tomadas “foram baseadas em critérios técnicos, tentando encontrar um equilíbrio entre a proteção da vida e as atividades econômicas”. Já o prefeito de Manaus, David Almeida, culpou o isolamento geográfico do Estado pela crise de abastecimento de oxigênio.
Medidas deliberadas para atraso
De acordo com Rafael Mafei, professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP), para que o caso chegue aos tribunais é preciso, antes, investigar como chegou-se ao colapso em curso em Manaus, que pode se espraiar para outros Estados. Nos últimos dias, surgem elementos que compõe o panorama. A principal empresa fornecedora de oxigênio em Manaus diz ter alertado o Governo federal sobre a possibilidade de escassez. Some-se a isso, o Governo federal aumentou o imposto de importação para cilindros de gás em dezembro, mesmo se tratando de uma elemento básico no tratamento e com demanda crescente. “A depender do que for apurado, se houver, por exemplo, suspeita de que agente público deliberadamente causou a redução de estoque de oxigênio ou a possibilidade de atendimento, pode haver julgamento”, explica.
Outra possibilidade, diz Mafei, é se for encontrado um crime de prevaricação, se for comprovado que houve atraso em uma licitação de compra de insumos. “Isso poderia abrir um inquérito civil no MPF ou uma CPI, uma investigação parlamentar”. O jurista ressalta, no entanto, que a atribuição de responsabilidade político-administrativa, através de um processo de impeachment, seria, em tese o mais rápido entre os mecanismos, previsto justamente para proteger as instituições de governantes que não as respeitam nem à Constituição.
“Não vejo a possibilidade de um processo criminal contra o presidente, porque não há sequer um esboço de vontade de [Augusto] Aras [procurador geral da República e aliado de Bolsonaro] de mover uma palha no sentido de apresentar uma denúncia contra ele. E, mesmo que ele o fizesse, seria necessária uma aprovação da Câmara dos Deputados, onde o Governo tem o apoio de um terço dos parlamentares”, explica Mafei.
Apesar de concordar que o impeachment seria o caminho para atribuir responsabilidades administrativas, Mauricio Dieter, professor de Criminologia e Direito Constitucional da USP, é cético quanto à aplicação do mecanismo neste momento. “Crimes de responsabilidade não são crimes, de fato. São atos ilícitos previstos —na minha opinião, muito frouxamente— na Constituição. Desde março de 2020, Bolsonaro já cometeu uma série deles e não deu em nada. É preciso mobilizar todas as forças políticas para que essa responsabilização aconteça”, afirma.
Tais forças, porém, só se movem se houver pressão popular capaz de fazer o assunto crescer. “É preciso abrir a discussão porque os fatos [que envolvem Bolsonaro em eventual crime de responsabilidade] são graves. Mas o ritmo dele será ditado pelas ruas e pelo Congresso Nacional”, disse o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo. Bolsonaro tem ainda uma blindagem de seus apoiadores que lhe conferem quase um terço de apoio popular. Ainda que baixo para um início de terceiro ano de mandato, é o suficiente para fazer barulho em defesa do presidente. Seja como for, Bolsonaro já farejou a pressão e afirmou nesta sexta em entrevista a um programa popular na TV “Só Deus me tira daqui. Não há nada concreto contra mim.”
Não há, de fato, nada por enquanto concreto, mas o debate avança. Segundo Mauricio Dieter, a responsabilidade criminal é a mais difícil de atribuir, porque seria necessário construir uma retrospectiva causal até a Presidência. Seria preciso provar, por exemplo, que um indivíduo morreu sem oxigênio diretamente porque o presidente fez ou deixou de fazer alguma coisa. “Outro caminho seria provar uma política de morte intencional, mas falar em genocídio já é uma analogia muito difícil de fazer. Porque, para haver genocídio, é preciso ter um projeto declarado nesse sentido e isso não acontece no Brasil, ainda que esse projeto não declarado se efetue como tal”, explica Dieter. Em termos técnicos, segundo ele, não se pode falar de crime contra a humanidade. “O que há aqui é uma política de banalização da morte. Mas é uma ilusão acreditar que Bolsonaro vá enfrentar um julgamento criminal no STF. Até porque, analisando tecnicamente, o que essas mortes de Manaus têm de diferente das outras 200 mil mortes causadas pela pandemia no país?” argumenta e enfatiza: “O direito penal não vai resolver a catástrofe do Governo Bolsonaro”.
Esperança no âmbito internacional
No dia 23 de dezembro, o Governo do Amazonas decretou o fechamento das atividades não essenciais. Por pressão política da base bolsonarista, o governador voltou atrás e os apoiadores do presidente comemoraram a vitória sobre o que chamam de fecha-tudo. No dia 4 de janeiro, uma ordem judicial revalidou o decreto, mas já era tarde demais. Para Deisy Ventura, o fato de que a medida preventiva foi “combatida ativamente pelo Governo Federal” é mais um ônus de culpa. “No momento em que dou esta entrevista, o presidente do país está em um programa televisivo de grande audiência popular mentindo ao dizer que o STF o proibiu de tomar medidas de controle da pandemia, quando o que a Corte determinou foi que o exercício de competência de um deles não isenta a competência dos demais”, Ventura enumera o que seria mais um crime de responsabilidade.
A jurista argumenta que o Ministério Público também deveria ser instado judicialmente a “parar de mentir sobre a existência de um tratamento precoce contra a covid-19″ —enquanto os pacientes amazonenses lutam para respirar, Bolsonaro e o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, alegam que o colapso atual se deu por fatores como a falta de aplicação de tal “tratamento precoce com antimaláricos”, como a hidroxocloroquina, medicamentos sem eficácia comprovada no combate ao coronavírus. Nesta sexta, o Twitter tirou do ar uma postagem do presidente que falava em tratamento precoce.
“De ontem para hoje, novas demandas judiciais foram apresentadas ao Ministério Público Federal. A judicialização da pandemia já é enorme e se intensificará nos próximos dias. O STF, por enquanto, não responsabilizou ninguém, mas tem agido para amenizar a má gestão. A responsabilização esbarra no foro privilegiado do presidente e na atitude da Procuradoria Geral da República (PGR) que não dá prosseguimento a essas demandas”, explica Ventura.
Ela acredita que, independente do uso do conceito de genocídio, Bolsonaro pode enfrentar uma investigação no Tribunal Penal Internacional (TPI) e que o Estado Brasileiro pode responder ao Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos. “É muito difícil saber se vai dar em alguma coisa, mas quem tem anos de experiência em situações dessa natureza no contexto internacional já viu processos que pareciam impossíveis acontecerem, de repente, principalmente quando há mudança na opinião internacional e no cenário econômico”, argumenta Ventura. Segundo ela, a posse de Joe Biden como presidente dos Estados Unidos, no dia 20 de janeiro, poder ser o início dessa mudança de conjuntura. “Nesse caso, ser um pária internacional, como Bolsonaro já disse orgulhar-se de ser, custará cada vez mais caro”, diz a jurista, que salienta que a mudança também depende de “uma tomada de atitude da sociedade civil” diante da fragilidade política de governadores e prefeitos. “Trabalhamos com a impotência de não fazer cessar os crimes que estão sendo cometidos contra a saúde dos brasileiros”, conclui.
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