Psicólogo do esporte: “Clubes desprezam a saúde mental dos jogadores”
João Ricardo Cozac analisa queda repentina de desempenho nas equipes e aponta negligência de dirigentes com o aspecto emocional dos atletas de futebol
Líder do Campeonato Brasileiro com a melhor campanha de turno da história dos pontos corridos. O retrospecto excepcional do Corinthians na primeira metade da temporada hoje contrasta com um time ainda na ponta, mas abalado pela queda de desempenho no returno que ameaça a conquista de um título que parecia encaminhado. Às vésperas do duelo contra o Palmeiras, neste domingo, que pode reduzir a diferença entre os rivais para apenas dois pontos a seis rodadas do fim do campeonato, o doutor em psicologia do esporte pela USP e presidente da Associação Paulista da Psicologia do Esporte, João Ricardo Cozac, observa indícios de desgaste emocional no elenco corintiano – que, segundo ele, são negligenciados pelo comando do clube. “Técnicos e dirigentes ainda têm dificuldade de enxergar o atleta como ser humano”, afirma o psicólogo, que também analisa o trauma da seleção brasileira na última Copa do Mundo e os casos cada vez mais recorrentes de jogadores que sofrem com a depressão.
Pergunta. Até que ponto o estado emocional da equipe interfere em um declínio tão acentuado de performance como o do Corinthians no Campeonato Brasileiro?
Resposta. Trabalho com psicologia no esporte há 26 anos. Em todo esse tempo, percebi que é absolutamente normal para uma equipe que atinge um ponto elevado de alto rendimento sofrer oscilações e até mesmo uma queda brusca. É um comportamento esperado, de certa forma inconsciente, de relaxamento do atleta com bons resultados em sequência, de achar que o campeonato já está ganho. A grande questão, no caso do Corinthians, é que, historicamente, o clube não investe em trabalhos de psicologia do esporte. É o único time profissional de São Paulo que não tem um psicólogo em sua comissão técnica. Não há uma ação contínua de prevenção do estresse ou promoção de saúde mental. É claro que vários fatores podem interferir em uma queda de desempenho no futebol. Mas, caso tivesse um psicólogo à disposição do elenco, a situação que o time vive agora no campeonato poderia ter sido prevista e causado menos desconforto. O Corinthians corre risco de perder o campeonato por desprezar o aspecto emocional dos jogadores.
P. Quais são os indícios de que a confiança do jogador está abalada diante de uma sequência de resultados negativos?
R. A primeira evidência é a ansiedade. O time começa a criar menos possibilidades de gol ou ter baixo aproveitamento nas finalizações, ainda que o técnico mantenha a mesma escalação e a forma de jogar que antes funcionava perfeitamente. Além dessa elevação de ansiedade em campo, a equipe também experimenta uma redução considerável dos níveis de concentração. O jogador passa a errar passes e movimentos simples por dispersão, cansaço e desgaste psicológico. Isso vai minando a unidade da equipe. Para render o máximo de sua capacidade técnica, o atleta precisa estar com a confiança a 100%. É inadmissível que um clube grande como o Corinthians, inserido no contexto do alto rendimento, em que cada detalhe faz a diferença, relativize o papel da psicologia do esporte no processo de gestão de um elenco profissional.
P. Por que os clubes ainda demonstram resistência em abrir espaço aos psicólogos?
R. O futebol é um meio muito machista. Pintam o jogador como uma rocha, um homem viril que não pode fraquejar. E a fraqueza é vista em forma de emoção. Por isso o atleta acaba deixando de expressar seus sentimentos. Existe um preconceito enorme, sintoma cultural de uma sociedade que ainda acha que psicólogo é coisa pra gente louca. Mas, no futebol, essa visão ganha contornos mais dramáticos, porque os técnicos, principalmente aqueles que são ex-jogadores, por pura desinformação e preconceito, relutam em contar com o suporte da psicologia.
P. Treinadores, que muitas vezes assumem o papel informal de psicólogos de seus jogadores, também precisam de ajuda psicológica?
R. Sem dúvida. Eu passei por vários clubes e já trabalhei com técnicos extremamente nervosos e ansiosos. Outros, inexperientes e inseguros. Isso transparece aos atletas. O comandante da equipe precisa, em primeiro lugar, controlar suas próprias emoções para que não perca o controle do grupo. O papel de liderança no futebol é fundamental, sobretudo dentro do campo. Porém, muitos treinadores confundem liderança comportamental com liderança técnica. Elegem os capitães de seus times com base no modelo escolar, em que os melhores são sempre os primeiros a serem escolhidos no par ou ímpar. Os líderes de uma equipe deveriam ser designados de acordo com uma avaliação sociométrica mais profunda, capaz de aferir as atribuições de confiança que cada um pode suportar. O melhor do time não necessariamente é o que tem mais condições psicológicas e emocionais para liderar.
P. Thiago Silva foi bastante criticado após chorar e escancarar suas emoções durante a última Copa do Mundo. Se encaixa nesse caso de liderança técnica, mas não comportamental?
R. Ninguém duvida que o Thiago Silva é um ótimo jogador, assim como o Neymar, mas, pelos perfis de comportamento de cada um, eles não me parecem os mais indicados para a função de liderança. Havia uma pressão gigantesca para que o Brasil vencesse a Copa em casa. E como a CBF reagiu? Levou uma psicóloga para trabalhar com os jogadores duas semanas antes do Mundial. É impossível traçar o perfil psicológico de uma equipe e avaliar resultados em apenas duas semanas. Esse trabalho deve ser contínuo e integrado com a comissão técnica. É a mesma coisa que contratar um preparador físico para ajudar um atleta com sobrepeso a emagrecer em duas semanas. Psicólogo não é bombeiro nem socorrista. Precisamos de tempo para ganhar a confiança dos atletas e, a partir daí, contribuir com o desenvolvimento da equipe. Infelizmente os clubes ainda pensam que a função do psicólogo se resume a palestras motivacionais. Nos últimos 15 dias, cinco clubes das séries A e B do Brasileiro me chamaram para palestrar. Não aceito nenhum convite desse tipo, porque não acredito que ações isoladas deem resultado em um ambiente tão peculiar e de relações tão complexas como o futebol.
P. O que faz exatamente o psicólogo do esporte? Jogadores sentem receio em compartilhar experiências com um profissional que não é do ramo?
R. O psicólogo do esporte, especificamente no futebol, atua como um facilitador para a compreensão das emoções. Nosso principal foco é contribuir com os profissionais que estão na linha de frente da equipe, como técnicos e preparadores, para que eles saibam quais são as tendências comportamentais de cada atleta, qual a melhor forma de cobrar ou motivar determinado jogador. Essas tendências devem ser mapeadas durante a pré-temporada e constantemente atualizadas no decorrer de jogos e campeonatos, já que o futebol é dinâmico. Com toda certeza, a psicologia é uma ciência que pode gerar muitos benefícios a uma equipe de alto rendimento. O problema é que ainda temos poucos psicólogos especializados no âmbito esportivo. O Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei Pelé exigem que os clubes ofereçam suporte psicológico para jovens jogadores nas categorias de base. Mas muitos contratam psicólogo apenas para cumprir a exigência e não serem punidos. Quando isso acontece, geralmente recorrendo a um profissional que não entende as nuances do meio, o psicólogo mal preparado acaba confundindo ainda mais a cabeça de técnicos e dirigentes, fecha portas para psicólogos especializados e só aumenta o preconceito contra nossa atividade. Atleta não tem de ser tratado em consultório, mas sim dentro do clube, com o amparo de toda comissão técnica. A maioria dos psicólogos ainda conhece pouco o dia a dia dos clubes e, o principal, não sabe de onde vem o jogador de futebol no Brasil.
“A adolescência tardia e o arsenal financeiro do qual os jogadores passam a desfrutar formam uma combinação perigosa e potencialmente destrutiva.”
P. Você se refere à origem social dos atletas?
R. Exatamente. Boa parte dos nossos jogadores vem de famílias pobres, com pouca instrução formal ou desestruturadas. Deixamos de formar grandes talentos pelo fato de chegarem ao time profissional extremamente frágeis do ponto de vista emocional. Aqueles que vingam, via de regra, conquistam fama e ascensão social meteóricas, mas carregam uma lacuna existencial, já que tiveram de abrir mão de sua juventude em prol do futebol. Cria-se, então, uma enorme distância entre o “quem eu era” e o “quem eu sou”. A forma encontrada por muitas jovens estrelas para preencher esse vazio é se esbaldar em festas e ostentar o dinheiro que ganham na tentativa de estabelecer uma conexão com a nova realidade social. A adolescência tardia e o arsenal financeiro do qual os jogadores passam a desfrutar formam uma combinação perigosa e potencialmente destrutiva.
P. Isso ajuda a explicar casos recentes de jogadores diagnosticados com depressão ou alcoolismo?
R. De acordo com a psicologia do desenvolvimento, é impossível pular fases da vida. Se você não viveu a adolescência aos 13 anos, certamente vai vivê-la aos 30 ou aos 50. Confinados em concentrações e com atenção voltada aos treinamentos, os jogadores costumam postergar parte da infância e adolescência, que é um período rico de construção da nossa identidade. Mas, ao saltar da pobreza ao estrelato, muitos deles ficam perdidos entre a vontade de viver o que não viveram e o cumprimento de exigências para a manutenção de uma carreira de sucesso. Daí vem a angústia e a depressão, que atinge cada vez mais atletas. O caso do Adriano é emblemático. Por que as pessoas se assustaram ao vê-lo cercado de amigos na Vila Cruzeiro? Porque a opinião pública se acostumou a ver o Adriano em Milão cercado de glamour e carrões. Esse é o padrão de comportamento esperado para um craque consagrado, e não o retorno à favela. O fato de ele ter reencontrado a identificação em sua origem foi fundamental para que pudesse se recuperar de um quadro depressivo. Adriano é apenas um reflexo de como o lado humano dos atletas é deixado em segundo plano pelos clubes de futebol.
P. Há como prevenir a derrocada de um ídolo que se desilude com o esporte?
R. Nelson Rodrigues já dizia que temos jogadores “com corpos de aço em bases de barro”. Se o aspecto pessoal do atleta estiver mal resolvido, ele não vai desempenhar seu melhor nem física e nem tecnicamente. O pior cenário é quando um jogador não consegue externar emoções e representar sua verdadeira personalidade, algo muito comum no futebol. A psicologia é uma das ferramentas que podem ajudar o clube a deixar de encarar seus atletas meramente como um produto, uma máquina. A formação do jogador tem de potencializar sua essência humana, e não suprimi-la.
“A seleção brasileira está jogando bem e colhendo resultados sob o comando do Tite. Mas esse time ainda não foi realmente testado do ponto de vista emocional.”
P. Alguma equipe pode ser vista como referência na abordagem psicológica dos jogadores?
R. Joachim Löw, técnico da seleção alemã, já reiterou publicamente a importância da psicologia no sucesso do seu time na última Copa do Mundo. Ele conta com o auxílio de Hans Dieter Hermann, uma autoridade mundial da psicologia esportiva que ajudou a arquitetar o título mundial de 2014 e coordena uma equipe de 16 psicólogos da liga alemã. Eles são responsáveis por elaborar mapas emocionais de todos os jogadores convocados pela Alemanha, desde as categorias de base. É uma engrenagem que funciona há mais de uma década, algo muito distante da realidade da seleção brasileira.
P. Houve alguma evolução depois do 7 x 1 para a Alemanha?
R. Tivemos indiscutivelmente uma evolução técnica do time. Assim como o Corinthians no primeiro semestre deste ano, a seleção está jogando bem e colhendo resultados sob o comando do Tite. Mas esse time ainda não foi realmente testado do ponto de vista emocional. Como os jogadores vão reagir em uma situação adversa, saindo atrás no placar em um jogo de mata-mata? Como os atletas que disputaram a Copa no Brasil vão administrar seus sentimentos? O Edu Gaspar [ex-jogador e coordenador técnico da seleção brasileira], que desde os tempos de Corinthians adota o mesmo pensamento, entende que a equipe não precisa de um psicólogo. Nesse aspecto, a seleção do Tite não é tão diferente da seleção de Dunga ou Felipão.
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