_
_
_
_
_
Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

Lei de Jô: a hipocrisia de cobrar honestidade dos outros e não enxergar os próprios deslizes

Boa parte dos que condenam atacante do Corinthians por não ter acusado gol com o braço comete pecado semelhante ao julgar sem fazer autocrítica

Jô marcou gol com o braço neste domingo pelo Corinthians.
Jô marcou gol com o braço neste domingo pelo Corinthians.Daniel Augusto Jr. (Agência Corinthians)

A história começa há cinco meses. Mais precisamente em 16 de abril, no clássico entre São Paulo e Corinthians. deu um leve empurrão em Rodrigo Caio, que acabou pisando na perna do goleiro Renan Ribeiro. O árbitro Luiz Flávio de Oliveira mostrou cartão amarelo para Jô, entendendo que o corintiano havia dado o pisão. Rodrigo Caio se acusou. Luiz Flávio voltou atrás na advertência a Jô, que, depois do jogo, elogiou o gesto de fair play do rival e cobrou mais honestidade dos colegas de profissão. Neste domingo, entretanto, Jô marcou o gol que deu a vitória ao seu time sobre o Vasco usando o braço, mas não se acusou à arbitragem. Seria algo normal no futebol, onde há muitos anos impera a célebre Lei de Gérson, onde o bom boleiro é o malandro que leva vantagem na base da malícia, onde todos buscam a vitória a qualquer custo. Seria normal se Jô não tivesse clamado por mais ações como a de Rodrigo Caio há cinco meses.

Mais informações
'Toda honestidade será castigada', por XICO SÁ
Os brasileiros já não votarão no “melhor corrupto”
O polêmico ‘jeitinho’

Dessa vez, ao deixar o gramado, ele alegou falta de convicção ao negar irregularidade no lance. Pela adrenalina do jogo, é realmente complexo ter o discernimento e a grandeza de espírito para acusar a infração no instante do gol. No entanto, após a partida, de banho tomado, Jô escorregou ao não admitir o toque com o braço. Foi tão hipócrita quanto boa parte daqueles que instantaneamente o massacraram, com dissimulado espanto, ao lembrar de sua atitude depois do episódio com Rodrigo Caio. Como se a recém-instituída Lei de Jô fosse uma prerrogativa inventada pelo atacante corintiano. Como se não vivêssemos em um país de incoerências e contradições. Do futebol às pequenas atitudes do dia a dia, há quem seja 100% ético?

Aécio Neves bradava que o PT inventou a corrupção no Brasil e hoje acumula inquéritos da Operação Lava Jato que o acusam de receber propina. Militantes ditos liberais ignoram direito a livre expressão em exposição de arte, enquanto militantes ditos progressistas usam de métodos não menos intolerantes para censurar aquilo lhe convém. Todo mundo concorda que o racismo existe, mas ninguém se reconhece como racista. Técnicos e dirigentes reclamam da arbitragem quando prejudicados, mas se calam quando beneficiados. Executivos de futebol lançam associação para valorizar a categoria, mas demitem treinador para não ter de assumir os próprios erros. A CBF cria departamento de compliance e governança corporativa, mas abriga um presidente indiciado por corrupção pelo FBI. Como cobrar coerência apenas de Jô se a entidade que cuida do esporte mais popular do país é comandada há décadas por cartolas nada exemplares? Como cobrar retidão absoluta na conduta de jogadores de futebol se, fora dos estádios, as coisas caminham em outra direção?

Evidentemente que o erro de arbitragem a favor do Corinthians e o discurso contraditório de Jô são incontestáveis. Ele daria um raro e admirável exemplo caso tivesse se acusado. Porém, a ausência – previsível – de fair play não deve ser vista como desvio de caráter típico de uma casta minoritária da sociedade que diz uma coisa e faz outra. Pelo contrário. A maioria dos legisladores de comportamento que agora apedreja o atacante provavelmente, em algum momento, já se beneficiou da lógica de conveniência e da ética utilitária. Antes de exigir princípios dos outros, precisamos discutir honestidade sem demagogia, sem ignorar que a Lei de Jô é também a Lei de João, José e Maria. Em primeiro lugar, há de se romper o círculo vicioso da hipocrisia, em que, na prática, todos agem como Jô, mas, diante do espelho, se enxergam como Rodrigo Caio.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_