_
_
_
_
_

“Sempre encarei os crimes de Manson como um conto de fadas sombrio”

Romancista californiana Emma Cline, autora de ‘As Garotas’, diz que nunca quis escrever um “A Sangue Frio’ sobre o assassinato de Sharon Tate

Jacinto Antón
Emma Cline, escritora autora da novela "As garotas" sobre as seguidoras de Charles Manson.
Emma Cline, escritora autora da novela "As garotas" sobre as seguidoras de Charles Manson.Joan Sánchez
Mais informações
A noiva do mal
Literatura de prazer ou de mercado?
15 livros que seu filho adolescente deve ler (mesmo que você não queira)

Emma Cline (Sonoma, Califórnia, 1989) irradia algo do fascínio que provocavam as meninas assassinas da família Manson, pano de fundo de seu romance As Garotas (Intrínseca). Assim como ainda hoje se procura ler motivos e predisposições nos rostos e gestos daquelas jovens que surgiram no deserto da Califórnia no fim dos anos sessenta para serem catapultadas à história do crime e da perversidade, também se tenta discernir nas feições e na linguagem corporal de Cline pistas do seu sucesso literário e midiático, e seu interesse pelas primeiras. Como as garotas Manson, a escritora abriga seu enigma sob um manto de juventude e uma aura de inocência. Além disso, ela é bonita. Uma beleza quase botticelliana de rosto oval e olhos azuis que parecem deter o tempo quando você os olha de perto.

Cline conseguiu um sucesso absoluto com o absorvente e fascinante As Garotas, cujo manuscrito recebeu um adiantamento de dois milhões de dólares (cerca de 6,5 milhões de reais), definitivamente uma aposta em se tratando do primeiro romance de uma jovem de 25 anos. O argumento, é claro, tem conteúdo: é uma surpreendente reelaboração da história das garotas Manson, cujo mentor e guru, Charles Manson (que morreu no dia 19 de novembro), as fez cometer vários assassinatos, entre eles o célebre de Sharon Tate e de um grupo de amigos na casa da atriz, no número 10.050 da Cielo Drive, em Beverly Hills, em 1969. Cline –e essa é a graça– não descreve diretamente os fatos, mas o faz tangencialmente por meio de uma adolescente outsider, Evie, e colocando o foco não em Manson (que se chama Russell no romance), mas nas mulheres do grupo e no fascínio da protagonista por elas. Além disso, muda os nomes, lugares e datas.

“Nunca tive a tentação de escrever um A Sangue Frio sobre a Família Manson”, diz Cline quando perguntada se não pensou em emular Capote. “Muita gente já aprofundou aqueles fatos. Eu não estava interessada nos pormenores como eles. As coisas que eu gosto não se alimentam disso”.

Para Cline “o importante não era a fidelidade, mas o arquétipo; a história real tem uma complexidade e derivações que não me interessavam. A realidade do caso me atraiu muito pouco”. É por isso que ela nunca pensou em entrevistar as garotas sobreviventes na prisão. “Isso teria desvirtuado minha intenção”.

As Garotas está impregnado pela nostalgia dos anos sessenta e pela mitologia da Costa Oeste, diz ela, “mas também é um livro sobre a amizade entre mulheres em que o crime é a parte menos importante”.

Qual é o papel da figura de Manson na nossa cultura? “É difícil eu pensar em termos gerais. Sou da Califórnia e lá crescemos com Manson e sua história, que faz parte da mitologia da Costa Oeste. Eu sempre a vi como um conto de fadas sombrio. Não me parecia real, mas havia algo que provocava um eco muito intenso em mim. De alguma forma, ao retomar essa história, eu a exorcizei”.

As Garotas é realista nas descrições da vida desagradável e suja no rancho da seita e, ao mesmo tempo, tem um tom perturbadoramente poético. “Essa autenticidade era importante, mas ao mesmo tempo segui um conselho que Richard Ford me deu: ‘Há detalhes que o leitor espera e outros que não e que o surpreendem, esses são os que você precisa escolher’. Quanto ao tom, é verdade que tem algo de elegíaco. Muitos dos romances que eu gosto têm esse tom. É por isso que coloquei essa outra voz, a da Evie adulta, que nos permite ver como ela assume seu passado”.

A Evie de 14 anos parece se conectar com uma tradição de adolescentes avançados para sua idade e clarividentes, como Holden Caulfield (O Apanhador no Campo de Centeio) e Scout Finch (O Sol é para Todos). “Através dela você tem que olhar o mundo com símbolos, mais do que com informação objetiva, e suas descrições tinham de ser muito sensoriais, o que às vezes dá uma patina suja ao romance: me rebelei contra a representação higiênica da adolescência, essa pureza virginal; boa parte do mundo do adolescente está centrado no corpo, e os corpos cheiram e se sujam”. O sexo é visto de uma maneira estranha. “Mais uma vez é a visão da protagonista adolescente, para ela o sexo é algo intelectual, algo que acontece mais em sua mente. Será traumático em seguida, quando ela puder refletir sobre isso”.

Evie “é e não é inocente, como os adolescentes, muito mais complexos do que como são geralmente mostrados na ficção; ela se sente atraída por aspectos do lado sombrio e perigoso da vida”. Cline se surpreende ao ser perguntada se teve uma infância feliz e ri, formando uma covinha na bochecha. “Que pergunta, para mim a infância é sempre dramática, sempre em busca de atenção”. Cline é a mais velha de cinco irmãs, emparedadas entre dois meninos, mas Evie é filha única. “Isso a torna mais isolada e vulnerável”.

A romancista volta a se surpreender quando perguntada sobre o mal. “Talvez você deva perguntar isso ao Trump. Todos nós acreditamos que sabemos o que é o mal e acreditamos reconhecê-lo, o que é reconfortante. Mas meu livro fala sobre como o mal às vezes adota uma forma muito humana, até frágil, e tem a ver com desejos muito humanos. Os piores monstros são os que reconhecemos”.

A autora pagou um preço por escrever seu romance? Algum dano colateral? Cline pensa e esboça uma careta em seu rosto sardento. “Escrever foi gratificante, algo muito essencial e íntimo, mas é verdade que descobri que o romance, o meu ponto de vista, tem algo muito niilista, não aponta absolutamente para uma redenção. Não é um livro com moral da história. Talvez minha ideia da vida não seja tão negra, mas escrever te obriga a pensar sobre a verdade do mundo que te rodeia”.

“Não me preocupa o que façam no filme”

Existe alguma coisa autobiográfica em As Garotas? "Existe uma parte de mim, não no argumento, mas nas sensações e sentimentos, em como uma adolescente se sente observada e julgada. Há uma fragilidade das garotas. Quando são pequenas, são ensinadas a pensar como serão vistas. Os meninos são mais protagonistas de sua vida".

As Garotas chegará ao cinema por intermédio do produtor Scott Rudin. "Não tenho nada a ver com o roteiro e não me preocupa o que farão, os filmes sobre um livro são sempre diferentes", diz Cline, que foi atriz na adolescência. Manson leu o romance? "Não creio".

A adolescente Evie revela nesse livro uma grande crueldade no trato com os pais. “Essa me parece uma observação muito típica de alguém que tem filhos, mas é verdade que existem momentos muito dolorosos e violentos no livro que não têm a ver com os crimes, mas com coisas como vergonha e traição”.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_