“Como é que alguém se transforma em escritor, ou é transformado em escritor?”
'Anos de Formação: os Diários de Emilio Renzi', de Ricardo Piglia, sai no Brasil. Leia trecho
Dois anos depois da morte do escritor argentino Ricardo Piglia, a editora Todavia lança no Brasil Anos de Formação: os Diários de Emilio Renzi, que percorre a educação formal e sentimental de Renzi, espécie de alter-ego de Piglia. Logo no início do livro, o narrador se questiona: "Como é que alguém se transforma em escritor, ou é transformado em escritor? Não é uma vocação, imagine, também não é uma decisão, mais parece uma mania, um hábito". É ao redor do ofício do escritor, tendo como cenário uma Argentina artística e política, que o livro se desenvolve.
O lançamento da edição brasileira acontece em São Paulo, nesta terça-feira, às 19h, no Instituto Cervantes, onde acontecerá uma conversa com o tradutor do livro Sérgio Molina, o especialista em literatura argentina Júlio Pimentel Pinto e o editor da revista literária Quatro cinco um, Paulo Werneck. Leia abaixo um trecho do primeiro capítulo do livro de Piglia.
Na soleira
— Desde pequeno repito o que não entendo – ria Emilio Renzi retrospectivo e radiante naquela tarde, no bar da Arenales com a Riobamba. — Achamos divertido o que não conhecemos; gostamos do que não sabemos para que serve.
Aos três anos ficava intrigado com a figura do seu avô Emilio sentado na poltrona de couro, ausente dentro de um círculo de luz, os olhos fixos num misterioso objeto retangular. Imóvel, parecia indiferente, calado. Emilio, o menino, não entendia muito bem o que estava acontecendo. Era pré-lógico, pré-sintático, era pré-narrativo, registrava os gestos, um por um, mas não os encadeava; simplesmente imitava aquilo que via os outros fazerem. Então, naquela manhã subiu numa cadeira e tirou um livro azul de uma das estantes da biblioteca. Depois foi até a porta da rua e se sentou na soleira com o volume aberto no regaço.
Meu avô, disse Renzi, abandonou o campo e foi morar conosco em Adrogué quando minha avó Rosa morreu. Deixou a folhinha sem arrancar no dia 3 de fevereiro de 1943, como se o tempo tivesse parado na tarde da morte de sua mulher. E o calendário aterrador, com o bloco dos números fixo nessa data, continuou em casa durante anos.
Morávamos num lugar tranquilo, perto da estação de trem, e a cada meia hora passavam pela nossa calçada os passageiros vindos da capital. E lá estava eu, na soleira, querendo ser visto, quando de repente uma sombra comprida se inclinou para me dizer que o livro estava de ponta-cabeça.
Acho que deve ter sido o Borges, brincava Renzi naquela tarde no bar da Arenales com a Riobamba. Naquela época ele costumava passar o verão no Hotel Las Delicias, e só mesmo o velho Borges para fazer essa advertência a uma criança de três anos, não é?
Como é que alguém se transforma em escritor, ou é transformado em escritor? Não é uma vocação, imagine, também não é uma decisão, mais parece uma mania, um hábito, um vício, você deixa de fazer isso e se sente mal, mas ter que fazê-lo é ridículo, e acaba se tornando um modo de viver (como outro qualquer).
A experiência, ele percebera, é uma multiplicação microscópica de pequenos acontecimentos que se repetem e se expandem, sem conexão, dispersos, em fuga. Sua vida, ele compreendera, era dividida em sequências lineares, séries abertas que remontavam ao passado distante: incidentes mínimos, estar sozinho num quarto de hotel, ver seu rosto num instantâneo, entrar num táxi, beijar uma mulher, levantar os olhos da página e dirigi-los à janela, quantas vezes? Esses gestos formavam uma rede fluida, desenhavam um percurso – e desenhou um mapa de círculos e cruzes num guardanapo –, digamos que o percurso da minha vida seria assim, disse. A insistência dos temas, dos lugares, das situações é o que eu quero – falando figuradamente – interpretar. Como um pianista que improvisa, sobre um frágil standard, variações, mudanças de ritmo, harmonias de uma música esquecida, disse, e se ajeitou na cadeira.
Poderia por exemplo contar minha vida a partir da repetição das conversas com meus amigos num bar. A confeitaria Tokio, o café Ambos Mundos, o bar El Rayo, La Modelo, Las Violetas, o Ramos, o café La Ópera, La Giralda, Los 36 billares…, a mesma cena, os mesmos assuntos. Todas as vezes que me encontrei com meus amigos, uma série. Se fazemos uma coisa – abrir uma porta, por exemplo – e depois pensamos naquilo que fizemos, é ridículo; mas se observarmos sua reprodução do alto de um mirante, não é preciso nada para obter uma sucessão, uma forma comum, até mesmo um sentido.
Sua vida poderia ser narrada seguindo essa sequência ou qualquer outra parecida. Os filmes a que assistiu, com quem foi ao cinema, o que fez depois; tinha tudo registrado de modo obsessivo, incompreensível e idiota, em minuciosas descrições datadas, com sua trabalhosa letra manuscrita: estava tudo anotado naquilo que agora decidira chamar de “seus arquivos”, as mulheres com que vivera ou passara uma noite (ou uma semana), as aulas que dera, os telefonemas de longa distância, notações, sinais, não era inacreditável? Seus hábitos, seus vícios, suas próprias palavras. Nada de vida interior, somente fatos, ações, lugares, circunstâncias que, repetidas, criavam a ilusão de uma vida. Uma ação – um gesto – que insiste e reaparece, e diz mais do que tudo o que eu possa dizer de mim mesmo.
No bar onde ele se instalava ao cair da tarde, El Cervatillo, na mesa do canto, pegada à janela, tinha colocado suas fichas, um caderno, um par de livros, o Proust, de Painter, e The Opposing Self, de Lionel Trilling, e ao lado um livro de capa preta, um romance, pelo jeito, com frases elogiosas de Stephen King e Richard Ford em letras vermelhas.
Contudo, tinha percebido que devia começar pelos restos, por aquilo que não estava escrito, ir ao encontro do que não estava registrado mas persistia e cintilava na memória como uma luz mortiça. Fatos mínimos que misteriosamente haviam sobrevivido à noite do esquecimento. São visões, flashes enviados do passado, imagens que perseveram isoladas, sem moldura, sem contexto, soltas, e não podemos esquecê-las, certo? Certo, disse, e olhou para o garçom que ia atravessando por entre as mesas. Mais um branco?, perguntou. Pediu um Fendant de Sion… era o vinho que o Joyce bebia, um vinho seco que o deixou cego. Joyce o chamava de Arquiduquesa, por causa da cor ambarina e porque o bebia como quem pecaminosamente – à la Leopold Bloom – suga o néctar dourado de uma púbere garota aristocrática que se agacha nua, de cócoras, sobre uma ávida cara irlandesa. Renzi frequentava esse bar – que antes se chamava La Casa Suiza – porque guardavam ali, nos frescos porões, várias caixas do vinho joyciano. E com seu pedantismo habitual citou, em voz baixa, o parágrafo do Finnegans celebrando aquela ambrosia…
Era uma radiografia do seu espírito, melhor dizendo, da construção involuntária do seu espírito, disse, e fez uma pausa; não acreditava nessas baboseiras (frisou), mas gostava de pensar que sua vida interior era feita de pequenos incidentes. Assim, poderia enfim começar a pensar numa autobiografia. Uma cena e depois outra e mais outra, não é? Seria uma autobiografia seriada, uma vida em série… Dessa multiplicidade de fragmentos insensatos, começara seguindo uma linha, reconstruindo a série dos livros, “Os livros da minha vida”, disse. Não os que escrevera, mas os que lera… Como li alguns dos meus livros poderia ser o título da minha autobiografia (caso a escrevesse).
Primeiro ponto, portanto, os livros da minha vida, mas nem todos os que li, e sim aqueles dos quais lembro com nitidez a situação e o momento em que os lia. Se eu me lembro das circunstâncias em que estava com um livro, isso para mim é a prova de que ele foi decisivo. Não são necessariamente os melhores, nem os que me influenciaram: são os que deixaram uma marca. Vou seguir esse critério mnemônico, como se eu contasse somente com essas imagens para reconstruir minha experiência. Um livro na lembrança tem uma qualidade íntima somente se vejo a mim mesmo lendo. Estou do lado de fora, distanciado, e me vejo como se eu fosse outra pessoa (sempre mais jovem). Por isso, talvez, penso agora, aquela imagem – fazer de conta que estou lendo um livro na soleira da casa da minha infância – é a primeira de uma série, e é por aí que vou começar minha autobiografia.
Claro que recordo dessas cenas depois de ter escrito meus livros, por isso poderíamos chamá-las de pré-história de uma imaginação pessoal. Por que nos dedicamos a escrever, afinal? Seguimos nessa trilha, por qual motivo? Bom, porque antes lemos… Não importa a causa, claro, importam as consequências. Muita gente deve se arrepender disso, a começar por mim, mas em qualquer bar da cidade, em qualquer McDonald’s tem um trouxa que, apesar de tudo, quer escrever… Na realidade, não é que ele queira escrever, quer é ser escritor e quer ser lido. Um escritor se autonomeia e se autopropõe no mercado persa, mas por que ele resolve assumir essa postura?
A ilusão é uma forma perfeita. Não é um erro, não deve ser confundida com um equívoco involuntário. Trata-se de uma construção deliberada, pensada para enganar a própria pessoa que a constrói. É uma forma pura, talvez a mais pura das formas existentes. A ilusão como romance privado, como autobiografia futura.
No início, afirmou depois de uma pausa, somos como o Monsieur Teste de Valéry: cultivamos a literatura não empírica. É uma arte secreta cuja forma exige não ser descoberta. Imaginamos o que pretendemos fazer e vivemos nessa ilusão… Em suma, são as histórias que cada um conta a si mesmo para sobreviver. Impressões que não estão em condições de ser entendidas por estranhos. Mas é possível uma ficção privada? Ou é preciso que haja mais de uma pessoa? Às vezes, os momentos perfeitos só têm por testemunha a própria pessoa que os vive. Podemos chamar esse murmúrio – ilusório, ideal, incerto – de história pessoal.
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