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Ricardo Piglia: “A experiência da doença é a da injustiça em estado puro”

Escritor argentino fala da esclerose lateral amiotrófica e de seu refúgio na leitura 'Los diarios de Emilio Renzi' foi escolhido o livro do ano pelos colaboradores de Babelia

Ricardo Piglia em uma imagem de 2014.
Ricardo Piglia em uma imagem de 2014.Mariana Eliano
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“Muitas vezes, ao longo do tempo, me pus a copiá-lo à máquina, é um trabalho brutal. Mas acredito que vou tentar publicar. Não vou deixá-lo como livro póstumo, não é?”. Nesse ponto da gravação se ouve a risada de Ricardo Piglia, uma risada seca e gozosa, modelada pelo hábito recorrente de zombar de si mesmo, como quem diz “não me levem muito a sério”. Era o dia 11 de agosto de 2010 e Piglia acabava de publicar o romance Blanco Nocturno (Anagrama). Em seu estúdio, um apartamento num andar alto do Bairro Norte, apesar de ser inverno, fazia calor e ele tinha comprado uvas. Do seu diário se conhecia, até então, pouco. Pílulas, pequenos linhas reproduzidas em seu livro Prisão Perpétua que foram ampliados com a publicação, a partir de 2011, de fragmentos mais longos em Babelia. Supunha-se que tinha começado a escrevê-lo em 1957, mas a pergunta sobre o diário persistia: esses mais de 50 anos de escrita tinham existência real, seriam publicados em algum momento? Naquela tarde, quase como um teste irônico, Piglia meteu a mão em uma das caixas de papelão que enchiam a sala (talvez por ser um canhoto que na escola foi forçado a escrever com a direita, as mãos de Piglia sempre tiveram uma gestualidade magnética, uma mistura de força e inépcia, como se fossem de um boxeador que controla seus movimentos para não destruir nada). Dali ele pegou, ao acaso, uma caderneta preta da marca Congreso. Abriu-a e leu algumas frases em voz alta, repetindo: “O que diz aqui?”. Essas cadernetas eram vendidas, segundo ele, em uma única livraria de Buenos Aires: “Quando acabarem eu não escrevo mais, mas não o diário, nada mais. Seria ótimo, não? Acabam os cadernos e acaba tudo”, disse.

As cadernetas já não se acham para comprar, mas cinco anos depois daquela tarde, Piglia continua escrevendo e em setembro 2015 publicou o primeiro volume –dois outros são esperados– desse diário de características lendárias. Intitula-se Los diarios de Emilio Renzi. Años de formación., abrange uma década –de 1957, quando tinha 16 anos, até 1967–, foi eleito pelos colaboradores do Babelia como o melhor livro de 2015 e é uma aproximação selvagem do processo pelo qual alguém se torna escritor e como, para consegui-lo, se transforma antes num um leitor bestial, passando por todas as instâncias de perplexidade, dúvida, epifania e desânimo que atravessa qualquer artista jovem.

O nome completo é Ricardo Piglia é Ricardo Emilio Piglia Renzi. Emilio Renzi, o personagem que aparece repetidamente em seus livros, é o seu alter ego: um escritor e jornalista que gosta de ruivas. O documentário, 327 cuadernos, dirigido pelo argentino Andrés Di Tella, foi lançado neste ano, mas começou a ser filmado em 2010. Já então Piglia expressava seu desejo de publicar o diário assinado por Emilio Renzi: “Não sei se terei coragem”, dizia. Finalmente, foi isso o que fez: atribuir o diário ao personagem que também é ele.

Continuo lendo e escrevendo. Estou com bom ânimo porque continuo dando pouca atenção à realidade

– “Pareceu-me mais verdadeiro e mais sincero fazer esse deslocamento, mudar de lugar e evitar o peso da escrita pessoal”– responde Piglia por e-mail no dia 7 de dezembro de 2015. Um nome falso, sempre gostei desse jogo. Não sou o que sou. Quem enuncia? Aí está o problema da literatura. Todo o material é meu, trata-se da minha vida, mas contada como se fosse a de outro. Não gosto de confissões, é preciso dar uma reviravolta irônica às intimidades, acredito.

No diário, Piglia anota: “Às vezes penso que tinha que publicar o livro com outro nome, cortando assim todos os laços com o meu pai, contra o qual, de fato, escrevi esse livro e escreverei os seguintes. Deixar de lado o sobrenome dele seria a prova mais eloquente da minha distância e do meu rancor”; e “é o meu avô Emilio quem vai me pagar a faculdade porque rompi com meu pai, que me ameaçou de uma maneira absurda quando soube que eu não queria estudar medicina como ele”. Quando Piglia tinha 16 anos, seu pai, um médico peronista perseguido pelo antiperonismo, decidiu deixar Adrogué, um subúrbio da cidade de Buenos Aires, e se mudou com a família para Mar del Plata. O primeiro efeito dessa mudança sobre Piglia (um adolescente que preferia frequentar bilhares a ir à escola e tinha lido muito pouco: apenas A Peste, de Camus, para conquistar uma garota) foi o impulso de começar um diário. De fato, a primeira entrada, de 1957, é a seguinte: “Nos vemos depois de amanhã. Decidi não me despedir de ninguém. Despedir-se das pessoas me parece ridículo. Cumprimenta-se quem chega, quem se encontra, não quem se deixa de ver (...). Tudo que faço me parece que faço pela última vez”. Los diarios de Emilio Renzi, no entanto, não começam com essa entrada, mas com uma nota do autor em que o autor do diário se refere ao autor do diário –que é, por sua vez, o alter ego do autor do diário– em terceira pessoa, estabelecendo um jogo de espelhos que atravessará o livro em histórias ou ensaios intercalados de ano para ano. “Tinha começado a escrever um diário no final de 1957”, diz a nota, “e ainda continuava a escrevê-lo. Muitas coisas mudaram desde então, mas ele permaneceu fiel a essa mania (...)”. Muitas coisas mudaram desde então, e uma delas é o fato de que há algum tempo Piglia está, para usar suas palavras, “zombando da saúde” (ele nunca diz “doente”), afetado pela esclerose lateral amiotrófica, e escreve com ajuda. Mas todo o resto –a escrita, a leitura, ele como frontão onde ricocheteia o humor de uma inteligência arrepiante– permanece igual.

– A saúde não interfere no seu ânimo para produzir?

– Continuei trabalhando, com ajuda. Há muitas coisas que não posso mais fazer, mas posso continuar a ler e escrever como sempre, sem que isso seja um juízo de valor. Estou com bom ânimo porque continuo dando pouca atenção à realidade.

Ricardo Piglia em uma imagem de 2014.
Ricardo Piglia em uma imagem de 2014.Mariana Eliano

Quando em setembro passado ele recebeu o Prêmio Formentor de Literatura, seu editor, Jorge Herralde, leu um texto que lembrava: “Em outubro de 2000 tive fisicamente em minhas mãos o primeiro livro que publicamos de Ricardo Piglia: Formas Breves (...). Quando esse meteorito inesperado aterrissou aqui, Ricardo Piglia era um escritor quase desconhecido na Espanha”. No início do século, Piglia não era conhecido na Espanha, mas do outro lado do oceano já era um autor muito importante. Depois de dois livros de contos (A Invasão e Nome Falso), ele havia publicado o romance Respiração Artificial, em 1982, que o colocou em uma posição-chave, e a isso se seguiram os ensaios de Crítica y ficción (1986), a nouvelle Prisão Perpétua (1988), o romance Dinheiro Queimado (1997), entre outros. Se desde Dinheiro Queimado até Blanco Nocturno passou 13 anos sem publicar um romance, apenas três depois daquele último publicou outro: El Camino de Ida. Desde então, sua capacidade de produção se multiplicou: deu palestras na televisão –Borges por Piglia, em 2013–, publicou dois livros –Antología Personal (2014) e La Forma Inicial (2015)– e adaptou Os Sete Loucos, de Roberto Arlt, para a televisão. Agora, além de continuar revendo os diários, escreve histórias protagonizadas pelo comissário Croce, seu personagem de Blanco Nocturno.

– Já escrevi vários e espero fazer mais cinco ou seis para completar um volume que inclua todos os casos de Croce.

— Continua escrevendo o diário?

– Sim, mas com outra dinâmica, agora é um diário de trabalho. No terceiro volume cheguei ao presente, mas com desvios e elipses. Um diário da maturidade, digamos, com saltos e coisas implícitas.

Los diarios de Emilio Renzi registram a minúcia –“Recebi carta de José Antonio, de Nova York. Ele não gosta da comida, fascinado com a biblioteca”–, mas são, acima de tudo, anotações do incerto processo de formação de um escritor: “Quando releio o que tenho escrito na monografia, eu quero morrer. De onde tirei que sou um escritor?”. “Com cinquenta pesos no bolso e sem comer, viajo de trem para La Plata (...) sem encontrar a calma de que preciso para escrever. Uma calma que se define para mim como ausência de pensamentos. Não pensar para poder escrever, ou melhor, escrever para alcançar pensamentos não de todo pensados que definem sempre o estilo de um escritor”.

– Você escreve e escolhe o imaginário porque está desajustado em relação à vida– diz Piglia. Isso não implica em qualquer privilégio ou é garantia de profundidade, é uma rachadura entre a experiência e o sentido, eu não entendo como acontece e de onde vem esse pensar demais e essas ligeiras alucinações e talvez seja por isso que escrevo um diário, para manter à distância essa estranheza, mas eu só consegui confusão. É engraçado, procura-se entender o que acontece e só se consegue ficar mais perplexo.

– O tom é muito homogêneo. Estamos lendo o Piglia que escrevia aos 16 anos ou aquele que escreve agora?

Minha relação com a escrita é a mesma. São horas de grande plenitude que estão no centro da minha vida

– O essencial de um diário é que não se corrige, é o mais próximo da noção surrealista de escrita automática, você escreve no momento, se deixa levar por um impulso espontâneo quase demencial. Registra-se o que se vive sem distância, o que tende ao presente, mas ao transcrever, você já é outro. A coisa mais difícil para mim foi entender a minha letra, o que diz aqui?; então, às vezes, eu tinha que inventar, mas fui fiel ao que estava escrito. No começo você escreve bem, depois vai se arruinando.

Claro que se o diário reflete sua formação como escritor, também reflete, inevitavelmente, sua formação como leitor. Um leitor que aos 16, 18, 20 anos opina sobre as diferenças de estilo entre Salinger e Arlt e anota suas impressões sobre Dostoiévski, Faulkner, Pavese, Borges, mas também sobre os escritores de sua geração como Miguel Briante e Juan José Saer.

– Sua relação com a escrita mudou? Ocupa um lugar diferente?

– Continua sendo a mesma, são horas de grande plenitude que estão no centro da minha vida. O difícil é, como sempre, passar para o outro lado, entrar na escrita e deixar o real em suspenso.

– Há alguma coisa em sua reação a esses problemas de saúde que o surpreendeu?

– Bem, a experiência da doença é a da injustiça em estado puro: “Por que eu?”, você se pergunta, e qualquer explicação é ridícula e sem sentido. O sentimento de injustiça convida à rebelião e à luta, então você não se queixa e isso é um alívio.

O livro termina com um texto, ‘Canto rodado’, em que o distanciamento de si mesmo que Piglia se impôs alternando a primeira e a terceira pessoa chega à sua máxima expressão, com uma mobilização emocionante de recursos e de destreza narrativa. Escreve Piglia que Renzi diz: “(...) Renzi disse que parecia ter começado a desvairar um pouco, como vinha acontecendo com mais frequência desde que estava doente, não doente, ele nunca usou essa palavra, estava, para dizer como ele, ‘um pouco zombado, como dizia louco de pânico, ‘não tenho dores, apenas uma pequena perturbação na mão esquerda, que é a minha mão boa, ou melhor, era a minha mão boa porque sou canhoto (...)’. Por esse motivo teve que contratar uma assistente para ditar seu diário (...). Por isso, continuou (...), trabalho agora com minha musa mexicana (...), entende metade do que lhe digo (...), por isso, quando depois de um tempo peço para ela ler o que escrevemos, ela, com seu espanhol mais nítido, me lê algumas páginas nas quais o que eu disse é apenas uma sombra turva em meio a palavras puras e precisas com as quais ela melhorou minha leitura do que está escrito à mão há anos nos meus cadernos”.

Los diarios de Emilio Renzi são dedicados a Beba Eguía, a mulher de Piglia, e a Luisa Fernández, “a musa mexicana” que o ajuda a transcrever.

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