Do beisebol à política, o detetive da alma cubana
O escritor Leonardo Padura, que publica novo romance em 2018, conversou com o EL PAÍS em São Paulo
No beisebol, ao contrário do que acontece no futebol ou no basquete, o objetivo nunca é conquistar, mas retornar. A jogada perfeita, home run, define bem o espírito da coisa. Simplificando, o rebatedor usa seu taco para mandar a bola arremessada pelo adversário o mais longe que puder, depois faz carreira por três bases e, se não for interceptado no meio do caminho, volta para sua casa, seu local de partida, pontuando. O esporte, segundo o escritor Leonardo Padura – que gostaria de ter sido jogador e se autoproclama um dos maiores conhecedores da matéria em Cuba –, é, ao lado da música, parte inseparável da cultura do país caribenho. E, apesar de nunca ter sido o tema principal do autor, serve também como metáfora para sua obra.
É que no cerne de seu trabalho como escritor está sempre o regresso, a casa, a busca por um sentido qualquer de pertencimento. Em uma palavra em espanhol, pertenencia, uma espécie de mantra que o escritor repete em quase toda entrevista que dá – segundo seus cálculos, são 250 por ano. Isso porque, invariavelmente, o entrevistador lhe perguntará: “por que, durante todos esses anos, você não saiu do país?”. Aí, então, Padura responderá algo como: “Tenho um sentido de pertencimento [pertenencia] muito forte a uma cultura, a uma forma de ser, a uma maneira de se expressar. Interessa-me muito também os conflitos dos cubanos através da história, mas sobretudo no presente. Por isso, a conexão com Cuba é tão importante para mim”.
Depois do sucesso mundial dos romances O Homem Que Amava os Cachorros e Hereges e da recente adaptação da quadrilogia policial Quatro Estações em Havana para uma série na Netflix – em que participou como roteirista –, Padura lançará seu novo romance, La Transparencia del Tiempo, no ano que vem na Espanha e em 2019 por aqui – no Brasil, todos os títulos do autor são publicados pela editora Boitempo; na Espanha, saem pela Tusquets. De passagem pela capital paulista para uma série de palestras e entrevistas, ele conversou com o EL PAÍS em um dos locais que possivelmente lhe inspiram menos pertenencia: o skyline de um hotel internacional, ao lado de um dos metros quadrados mais caros de São Paulo, mas que poderia muito bem ser em Abu Dhabi, Pequim ou Madri.
Contudo, em algum momento da conversa, seja pelo leve aroma de charuto que o escritor exalava, seja pela paixão com que fala de sua literatura, foi possível esquecer o ambiente impessoal e imaginar que ali, abaixo daquele prédio altíssimo, estendia-se ruidoso el Malecón, a avenida mais famosa de Havana – eventual cenário de muitos dos romances policiais do escritor, que revelam uma Cuba atual e cheia de contradições. É curioso. Durante boa parte dos anos 1970 e 1980, o Governo cubano incentivou a produção de romances policiais que idealizassem a imagem dos detetives, retratando-os como heróis. E isso foi praticamente tudo que foi escrito nessa época. Padura subverteu a lógica: faz romances policiais com personagens imperfeitos, convivendo em um mundo cheio de rachaduras.
Acredito que Cuba pode contar sua história sem falar de seus escritores, de seus pintores, ou de sua culinária, mas não pode fazê-lo sem falar de seus músicos e de seus jogadores de beisebol
— Mero acaso?
— Esse romance policial era algo de baixa qualidade estética e com um caráter propagandístico e oficial muito forte. Eu decidi, quando parei de trabalhar como jornalista, fazer um romance policial cubano que fosse muito cubano, mas que não parecesse com o que já existia. Minha intenção era jogar, através desse gênero, um olhar diferente sobre a sociedade cubana. A chave de tudo foi a criação do investigador Mario Conde, que não é propriamente um anti-herói, mas que é um herói cheio de questões, que está em conflito com tudo, com a sociedade, com o passado, com ele mesmo, mas que, sobretudo, tem uma visão crítica para a sociedade cubana a partir de dentro dela.
— Mario Conde aparece em outros livros sempre se chocando com o presente. Ele também tem a sua mesma faixa etária. É um retrato de uma geração de cubanos?
— Sim. Todo meu trabalho literário tem uma perspectiva muito geracional. Acredito que em tudo que faço, inclusive nos roteiros de cinema, há um olhar a partir da minha geração do que foi o processo social cubano. Minha geração cresceu em meio à revolução, participou, trabalhou, mas assim que chegou ao seu momento de madurez, de colher frutos, no começo dos anos 1990, viu a União Soviética cair e as coisas desmoronarem com a economia cubana perto de zero. A esse processo também se somou a possibilidade de termos acesso a uma informação que não tínhamos antes e tudo isso gerou uma comoção que pude levar para meus romances, mas sempre partindo de dentro, da interioridade dos personagens.
— Sua geração cresceu com o ideal do novo homem do socialismo e encontrou um mundo bem diferente do prometido na vida adulta.
— Esse é um projeto de uma sociedade que mira que todas as pessoas sejam iguais, que tenham iguais possibilidades e que possam realizar as coisas de acordo com sua inteligência, educação. O trágico era que, para ser um homem novo, te obrigavam a ser novo. Em Hereges, por exemplo, Mario Conde olha para uns garotos emos e lembra da época em que, para construir o homem novo, os homens não podiam ter o cabelo longo, usar calças apertadas, ouvir Beatles ou ler determinados autores. Eu acredito que o homem novo deve ser criado a partir do espaço de liberdade concedido a uma pessoa em uma sociedade em que ela sinta que sua realização é parte da realização coletiva.
As cáries de Rembrandt
A partir de O Homem Que Amava os Cachorros, romance histórico sobre Ramón Mercader, o assassino de Leon Trotsky, inimigo político de Josef Stalin, houve uma clara mudança na obra do escritor. Antes, seus livros eram mais policiais, centrados nas observações que Mario Conde fazia da sociedade cubana atual. Agora, jogam luz sobre o presente através de investigações, mas também sobre aspectos desconhecidos e nebulosos da história. Trotsky, por exemplo, foi leitura censurada durante todo o período soviético em Cuba. Em Hereges, seu último livro, investiga a história dos judeus na ilha. Padura concorda que embarcou em uma nova fase, mais ambiciosa, mas diz que ela teve início com La Novela de Mi Vida, de 2001, que será publicado no Brasil no ano que vem. “Vou ao passado como forma de entender o presente”, comenta.
— E com quais olhos você olha para a História?
— O romancista é um contador de mentiras que tem que convencer seu leitor de que o que conta é verdade. Para fazer isso, tenho que buscar elementos que deem vida à história e, às vezes, são pequeníssimos elementos, que não têm importância para um historiador. Para um biógrafo do poeta José Heredia [retratado na La Novela de Mi Vida], por exemplo, pouco importa que ele gostava de um guisado de quimbombó [variação do quiabo], mas para mim é fundamental. Em uma carta que ele escreveu à mãe, quando estava regressando do exílio, diz que “seguramente, com o guisado de quimbombó que você prepara, vou melhorar”. Ao ler isso, dei-me conta até que ponto Heredia e eu nos parecemos, porque eu gosto muito desse guisado também. Foi aí que percebi que esse poeta já era cubano e eu sou cubano e, assim, temos uma conexão.
— Em Hereges você também criou uma conexão da mesma natureza para explicar como Rembrandt e o estado brasileiro de Pernambuco estão conectados...
— Ao que parece, uma das características de Rembrandt é o que os espanhóis chamam de tener mala leche [ser mau-humorado] e, por isso, tratava seus discípulos com muita rispidez. Eu fiquei pensando qual poderia ser a origem de seu mau humor e cheguei na dor de dente. Uma pessoa com dor de dente sempre tem o pior humor do mundo. Tudo isso, no final, está relacionado, nada mais, nada menos, do que com a colonização da América. A causa da dor de dente de Rembrandt, e de seu subsequente mau-humor, devia-se aos doces de caramelo que saiam do açúcar produzido em Pernambuco e eram moda na Holanda. Esses são pequenos detalhes que não têm nada a ver com a obra de Rembrandt ou Heredia, mas que são fundamentais para o romancista.
Um cubano está obrigado a falar de política, porque em Cuba todas as discussões têm origem política, é como o oxigênio para nós
Em Cuba, tudo é política
Padura tem um semblante quase monástico, inabalável. Ao sorrir – seus sorrisos são tão fáceis quanto seu jeito de conversar –, seus olhos se contraem e, por um momento, ele chega mesmo a lembrar um monge chinês de pele escura. Mas um traço de contrariedade surge entre suas sobrancelhas toda vez que o assunto de uma conversa deixa de ser literatura e passa a versar exclusivamente sobre política ou achismos. Em uma entrevista recente no programa Roda Viva, da TV Cultura, ele reagiu com calma (mas incomodado) ao ser perguntado sobre a situação social cubana. “Em Cuba, é verdade que há pobreza, não posso negar, mas ninguém morre de fome. Há mais gente na rua em uma quadra daqui de São Paulo do que em toda a Cuba”, disse ao recomendar que as pessoas evitem falar de uma realidade que conhecem apenas como visitante – voltando, mais uma vez, para seu mantra sobre a pertenencia.
— Você não gosta de falar de política?
— Não é que eu não goste de falar de política. Um cubano está obrigado a falar de política porque em Cuba todas as discussões têm origem política, é como o oxigênio para nós. Mas eu não sou especialista no assunto e, por isso, vou dar respostas que poderiam ser obtidas com qualquer outra pessoa. Se falo de literatura, contudo, vou dar respostas que só eu posso dar. Mas, mais importante, quando respondo sobre literatura, todas as minhas respostas podem ter leituras políticas. Ao falar, por exemplo, que mudei a forma de escrever romances policiais, que eram marcados por uma visão política muito evidente, é uma resposta política, uma atitude política, uma ação política.
— Você tem sido bem crítico à imprensa de forma geral. Tem a ver com a questão política das entrevistas?
— Não é isso. Eu tenho a experiência no jornalismo de sofrer quando vou colaborar e me dizem que tenho 3 mil toques para meu artigo. Como eu explico um fenômeno cubano nesse espaço, porque se supõe que o leitor não lê mais que isso? Acredito que tudo se deformou nos últimos anos: o ato da análise do jornalismo, do mundo editorial, da leitura. Quer dizer, é claro que se lemos em uma tela de celular, queremos que a coisa acabe rápido. Imagino que estou soando muito retrógrado, sou um dinossauro do século XX, caminhando pelo XXI, mas sinto falta desse tipo de jornalismo que se fazia nos jornais, nas revistas. Apesar de tudo, ainda há leitores para esse tipo de jornalismo que tem espaço para narrar. Quando eu escrevo esses textos de 3 mil caracteres, o primeiro que eu tenho de fazer é tirar os adjetivos e, ao tirar os adjetivos, você está tirando a cor.
— Você acha que é possível fazer jornalismo sem amar a literatura?
— Sim. É possível fazê-lo, mas, seguramente, será ruim.
Padura queria ser Paul Auster
Em 2012, Padura publicou uma crônica bem humorada chamada Eu Queria ser Paul Auster, em que brinca com o fato de que o autor norte-americano consegue passar uma entrevista inteira falando apenas de cinema, literatura e beisebol – assuntos prediletos do próprio Padura. “Ninguém o interroga sobre os rumos da economia norte-americana, ou sobre por que ele ficou vivendo em seu país durante os anos horríveis de Bush Jr – ou se deixaria seu país em caso de uma vitória de Sarah Palin para a presidência”, brinca. “Se eu fosse Paul Auster e estivesse favorável ou contrário a Obama, Bush, ou mesmo Palin, minha posição política seria apenas uma anedota, porque eu poderia falar nessas entrevistas de assuntos amáveis, agradáveis, e inclusive capazes de me fazer parecer inteligente, coisas sobre as quais (creio) sei bastante: de beisebol, por exemplo”.
— E por que nunca escreveu um romance sobre o beisebol?
— Porque ainda não descobri como, mas quero muito. Acredito que Cuba pode contar sua história sem falar de seus escritores, de seus pintores, ou de sua culinária, mas não pode fazê-lo sem falar de seus músicos e de seus jogadores de beisebol.
— O que há no beisebol da alma cubana?
— O esporte chega muito cedo à Cuba por via dos Estados Unidos ainda no século XIX. E logo se revelou como uma maneira da juventude cubana ilustrada, primeiro, e depois da população em geral, distinguir-se dos espanhóis colonialistas. Era algo que vinha também do país modelo na época: independente, democrático e desenvolvido. Rapidamente, deixou de ser só um esporte e passou a ser uma representação da vida cubana. Ao final dos jogos se tocava música cubana e, primeiro, os jogadores eram todos brancos e os músicos eram todos negros. Mas houve um momento em que foi crescendo o número de jogadores, e não havia brancos suficientes: o resultado foi uma proximidade étnica que criou um espaço de convivência, de representação nacional e cultural, muito importante. A liga profissional cubana admitiu negros no ano 1900, enquanto, nos EUA, os negros entram para as grandes ligas só em 1948.
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