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Direitos do coletivo LGBTI+ estão ameaçados em metade da Europa

Ativistas denunciam perseguições à comunidade por parte de altos dirigentes políticos e dos meios de comunicação nos países do Leste, especialmente Polônia e Hungria

Protesto contra a lei homotransfóbica da Hungria, em 14 de junho, em Budapeste.
Protesto contra a lei homotransfóbica da Hungria, em 14 de junho, em Budapeste.MARTON MONUS (Reuters)
Lluís Pellicer
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Ivett Ördög despertou com um grito angustiante na manhã de 16 de junho. “Não é que eu tenha tido um pesadelo”, conta. Na véspera, uma votação no Parlamento do seu país a havia devolvido aos mesmos traumas que julgava já ter superado. O presidente húngaro, Viktor Orbán, havia conseguido proibir por lei a difusão de qualquer conteúdo LGBTI+ (relativo a lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, intersexuais e outras minorias) que possa ser acessado por menores de idade. As ONGs europeias denunciam um retrocesso das liberdades LGBTI+ na metade oriental da Europa.

A ILGA-Europe, organização que reúne dezenas dessas entidades, pediu às instituições e governos da UE que adotem medidas para frear “os crescentes ataques aos direitos” dessa comunidade. Sua última análise da situação do coletivo em cada país desenha duas Europas. Em uma delas — na qual estão Malta, Bélgica e Espanha, por exemplo —, as instituições continuam protegendo a igualdade dos seus cidadãos. Na outra, a organização aponta que o caminho rumo à igualdade não só se tornou mais lento como houve inclusive retrocessos no reconhecimento legal das pessoas trans, ataques à sociedade civil e à liberdade de reunião e um discurso de ódio mais incisivo por parte de políticos e meios de comunicação, o que pode levar a agressões. Nesse grupo estão a Polônia e a Hungria, mas também Letônia, Bulgária, Romênia e Eslováquia.

Ördög não está mais em Budapeste. Cansada de precisar ser outra pessoa, já tinha feito as malas e ido embora para Berlim no dia em que Orbán decidiu pôr fim ao reconhecimento legal das pessoas transexuais. Na Alemanha, sente-se segura. Mas naquela manhã lhe veio à cabeça o clima asfixiante que deixou para trás. “Igualaram a pedofilia a ser homossexual ou transgênero. O que vem depois? Ter que portar algum tipo de identificação?”

Em Berlim, conta Ördög, ela encontrou uma comunidade LGBTI+ húngara que tomou a mesma decisão que ela. “Mudaram-se para cá ao longo das diversas etapas do pesadelo”, relata. Orbán vem há três anos promulgando leis e impondo multas para apagar o coletivo da esfera pública. O golpe mais recente contra esses cidadãos indignou a maioria de seus sócios europeus. Na semana passada, 17 chefes de Estado ou de Governo confrontaram o premiê húngaro para que revogue essas leis homofóbicas. Outros nove, entretanto, decidiram não estampar sua assinatura em uma carta promovida pela Espanha e Luxemburgo para reivindicar os direitos LGBTI+. A Polônia, que também está impondo uma contrarreforma conservadora, cerrou fileiras com Orbán. Mas também há outros países do Leste Europeu cujos governos, conforme temem ativistas dos direitos civis, podem seguir os passos de Budapeste e Varsóvia.

A ativista Ivett Ördög em Berlim, cidade onde se instalou devido à perseguição ao coletivo LGTB+ na Hungria. / @IVETTDEVILL
A ativista Ivett Ördög em Berlim, cidade onde se instalou devido à perseguição ao coletivo LGTB+ na Hungria. / @IVETTDEVILL @ivettdevill

A lei de Orbán fez disparar os alarmes dentro do clube comunitário por suas semelhanças com a norma aprovada em 2013 na Rússia proibindo a “propaganda homossexual” nos âmbitos em que houvesse menores de idade. A ONG Human Rights Watch já apontou os efeitos perniciosos dessa norma sobre os menores LGBTI+, que desde então sofrem mais agressões e carecem do apoio inclusivo que é imprescindível para eles em ambientes hostis. O cientista político belga Rémy Bonny, diretor-executivo da ONG Forbidden Colours, afirma que “as disposições da Hungria são uma cópia das da Rússia. E vão além dos meios de comunicação e escolas, pois proíbem difundir conteúdo LGBTI+ em qualquer lugar onde possa haver menores. Isso pode significar de cinemas e teatros à própria rua”, explica.

Concorda com esse diagnóstico o documentarista polonês Bart Staszewski, de 30 anos, alvo de várias investigações policiais e judiciais por seu ativismo. “Orbán está fazendo um copy-paste das leis da Rússia e seguindo os passos que a Polônia vem dando contra o coletivo”, argumenta. O novo projeto de Staszewski estendeu a todo o continente o debate sobre uma centena de municípios que se declararam “livres de ideologia LGBTI”. O ativista respondeu com uma ação que consistia em colocar cartazes na entrada do município com os mesmos termos usados nos meios oficiais: Zona Livre de LGBTs. Esses letreiros percorreram todas as capitais. Desde então, sua caixa de e-mail acumula ameaças de todo tipo, inclusive de morte. O primeiro-ministro polonês, Mateusz Morawiecki, chegou a acusá-lo de difundir boatos. “Há uma campanha do ódio contra mim. Mas vou continuar, porque não estamos reivindicando nenhum privilégio. Estamos pedindo igualdade, o mesmo que o resto dos cidadãos tem.”

O documentarista Bart Staszweski é alvo de várias investigações por causa do seu ativismo. / PRZEMYSLAW STEFANIAK
O documentarista Bart Staszweski é alvo de várias investigações por causa do seu ativismo. / PRZEMYSLAW STEFANIAKPrzemyslaw Stefaniak

Justyna Nakielska, ativista polonesa da Campanha contra a Homofobia, acredita que Orbán segue o caminho trilhado anteriormente pelo governo ultraconservador do partido Lei e Justiça antes das eleições polonesas, quando “usou o coletivo LGBTI+ em suas campanhas”. “Fez de nós um inimigo do Estado para ganhar mais votos”, afirma. Os analistas políticos veem nessas leis o caminho escolhido pelo Fidesz (o partido de Orbán) e o Lei e Justiça para fidelizar suas bases e os setores mais radicais das sociedades húngara e polonesa, respectivamente. Bonny aponta que “o papel dos lobbies ultraconservadores é muito poderoso”, e Nakielska acrescenta que “obviamente Orbán está tentando empregar essa mesma retórica”. “Mas é muito perigosa”, diz Nakielska, que detalha o preço pago por esse coletivo na Polônia: “Temos que ouvir as altas autoridades nos dizerem que nossa ideologia é pior que o comunismo, ou que quem foi à Parada do Orgulho não é normal. Tudo começa com palavras. E as palavras não são inocentes, porque abrem caminho para as agressões. As pessoas ficam com medo de andarem de mãos dadas até mesmo em Varsóvia se houver ataques homofóbicos”.

A Letônia disputa todos os anos com a Polônia o último lugar no ranking de respeito aos direitos e liberdades LGBTI+, elaborado pela organização ILGA-Europe. As ONGs do país báltico puderam recentemente saborear duas vitórias jurídicas em casos envolvendo casais homossexuais, mas esse vento de popa durou pouco tempo. “O ativismo anti-LGBTI se reforçou”, resume o ativista Kaspars Zalitis, da ONG Mozaika. O partido populista conservador Aliança Nacional, que está no governo, impulsionou emendas à Constituição para que esta consagre que um casamento só pode ser a união de um homem com uma mulher.

Em seu documentário Artigo 18, Staszewski acompanha um casal do mesmo sexo que vai a Londres para poder criar seu filho em liberdade. Muitos compatriotas deles, diz, se veem obrigados a deixar o país, como fez Ivett Ördög, que afirma sentir-se “muito mais segura na Alemanha, muito mais aceita”. “E sinto que pertenço a este lugar, o que é bastante estranho, já que ser húngara era parte da minha identidade. Votei no Fidesz quando era mais jovem. Sim, eu não via quem eles são.”

A Europa Ocidental, enquanto isso, tampouco escapa do peso da homofobia. A Itália, segundo a ILGA-Europe, continua sendo o quinto país da UE mais atrasado em direitos e liberdades do coletivo LGBTIQ+. A Igreja Católica usou pela primeira vez a via diplomática para intervir em um projeto de lei contra a homofobia e a transfobia que tramita no Senado italiano. Mas também na Bélgica, que nas últimas décadas ditou o caminho para o resto da Europa, dirigentes do partido ultradireitista Vlaams Belang — já apontado pelas pesquisas como o maior do país atualmente — respaldaram a nova lei de Orbán.

O cerceamento dos direitos desse coletivo é parte de uma agenda antiliberal muito mais ampla, que afeta também imigrantes e mulheres, resume Rémy Bonny. As ONGs olham para Bruxelas e para os sócios da UE, em especial os 17 signatários da carta. Pedem-lhes mais contundência. Mais pressão. O polonês Staszewski é taxativo. “Não podemos confiar no nosso governo. Mas declarações não bastam. A UE tem que usar todas as ferramentas ao seu alcance para defender seus valores”, reclama. Todos falam de uma situação limite, asfixiante. A perseguição, entretanto, também serviu para articular e fortalecer o movimento LGBTI+. Navielska dispara: “A estratégia do medo, a intimidação e as mentiras constantes não funcionaram tão bem como eles achavam. A solidariedade que se criou é algo que eles não poderão nos roubar”.

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