União Europeia inicia batalha contra deriva autoritária na Hungria e na Polônia
Maioria dos países europeus decide vincular repasse de recursos à manutenção do Estado de direito; Governos de Budapeste e Varsóvia são acusados de incentivar ataques a direitos civis e à independência do poder Judiciário
Bruxelas insiste em sua batalha para frear os rumos autoritários da Hungria e Polônia. Em sua primeira avaliação individualizada do Estado de direito em cada país da UE, a Comissão Europeia manifestou “graves preocupações” com a situação desses dois sócios por causa de reformas que solapam a independência judicial e da imprensa. O relatório, além disso, reabriu disputas entre os 27 países da União Europeia, que, nesta quarta-feira, decidiram por maioria vincular os recursos europeus à preservação do Estado de direito.
A Comissão Europeia (Poder Executivo da UE) deixou pela primeira registrado a situação do Estado de direito em todos os 27 países do bloco. Bruxelas apresentou um novo relatório que consiste em um minucioso exame anual por país dos quatro pilares que sustentam os princípios fundamentais europeus: independência judicial, luta contra a corrupção, liberdade de imprensa e controles democráticos do poder.
O relatório voltou a confrontar a Polônia e a Hungria a Bruxelas. Tamanho foi o mal-estar gerado, que esses dois países ameaçaram criar um instituto para analisar a situação do Estado de direito em outros países e rebater as conclusões comunitárias. Com uma linguagem quase descritiva, a Comissão expressa sua preocupação com o enfraquecimento da independência judicial nos dois países do Leste, mas também com a falta de empenho de Budapeste no combate à corrupção nas altas esferas e com os ataques de Varsóvia a organizações da sociedade civis e ao coletivo LGTBI.
“A União Europeia foi criada também como um antídoto às tendências autoritárias”, argumentou a vice-presidenta de Valores e Transparência da Comissão, Vera Jourová, que se mostrou firme depois de o líder húngaro, Viktor Orbán, exigir a demissão dela por causa de declarações à revista alemã Der Spiegel. Nelas, Jourová criticava Orbán por se gabar de estar criando um modelo de democracia antiliberal, quando na verdade, segundo ela, está criando uma “democracia doente”.
A publicação da Comissão Europeia não se limita a criticar Polônia e Hungria. Também é muito dura com a Bulgária, onde os cidadãos saíram maciçamente à rua nas últimas semanas para protestar contra os escândalos de corrupção, e com Malta, onde Joseph Muscat renunciou ao cargo de premiê após avanços nas investigações sobre o assassinato da jornalista Daphne Caruana Galizia. Bruxelas também destaca problemas com a independência da Justiça na Romênia, Croácia e Eslováquia; de falta de esforços no combate à corrupção na República Tcheca; e episódios de ataques a jornalistas na Eslovênia e Espanha.
Tempestade entre os 27
Os resultados do relatório não são uma surpresa para as capitais, que tinham tido acesso aos rascunhos para propor correções. Fontes comunitárias dizem que o texto provocou uma autêntica tempestade entre Bruxelas e certos Governos nacionais, que exigiram mudanças que o Executivo comunitário considerou inaceitáveis. E tudo isso às vésperas de uma cúpula de chefes de Governo e depois da apresentação de uma proposta de pacto migratório que, apesar de baseada no aumento das expulsões, continua motivando a rejeição dos ultraconservadores poloneses e dos nacionalistas húngaros.
As diferenças entre as capitais voltaram a ficar claras, além disso, quando a Alemanha ― que ocupa a presidência da UE neste semestre ― recebeu o aval da maioria das capitais para vincular o desembolso dos recursos europeus à preservação do Estado de direito. Segundo fontes diplomáticas, desvincularam-se do acordo, por um lado, Polônia e a Hungria, que anteveem as suas intenções; e, por outro, Holanda, Suécia, Finlândia, Dinamarca e Áustria, que exigem condições mais rigorosas à proteção do Estado de direito.
As divisões que marcaram a reta final do Conselho de julho, onde se pactuou o fundo de reconstrução, voltaram a se abrir. O alerta foi lançado pelo embaixador alemão na UE, Michael Clauss, que disse temer que o “acalorado debate” acabe bloqueando a aprovação dos recursos de reconstrução. “O calendário continua atrasado”, avisou.
Comissão vê questão catalã como “assunto interno”
A Espanha passou sem maiores contratempos pelo exame da Comissão Europeia. Como antecipou o EL PAÍS, Bruxelas destacou que a renovação do Conselho Geral do Poder Judiciário continua atolada desde 2018 e que a relação entre o Ministério Público e o Executivo cria problemas pela coincidência dos mandatos e as comunicações com o ministério da Justiça. Além disso, situou a Espanha entre os países onde houve episódios de agressões a jornalistas. E inclusive fala de um partido ―referência ao ultradireitista Vox― que nega “de forma seletiva” o acesso de jornalistas a seus atos.
Por outro lado, o relatório não dedica nenhuma linha ao movimento independentista catalão. A Comissão Europeia afirmou que não era função do relatório analisar processos judiciais específicos, e sim o funcionamento “sistêmico” do Estado de direito nos países membros. O comissário (ministro europeu) de Justiça, Didier Reynders, argumentou que a posição de Bruxelas não mudou: o conflito catalão deve ser resolvido de acordo com a Constituição espanhola. E aí Bruxelas não tem nada a dizer. “A posição da Comissão sobre a situação é conhecida: é um assunto interno da Espanha que tem que ser abordado segundo a ordem constitucional espanhola, que Bruxelas respeita integralmente, incluídas a decisões dos tribunais espanhóis”, afirmou Reynders.
Para elaborar o relatório, a Comissão consultou, além das capitais, diversas agências europeias, a sociedade civil, organizações profissionais ―de magistrados e jornalistas, por exemplo― e instituições internacionais. Ao todo, foram mais de 200 atores implicados no funcionamento do Estado de direito, com mais de 300 encontros de forma virtual. O relatório será enviado agora ao Conselho Europeu, onde será discutido pelos 27 Governos nacionais.
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