CubaneCuir, o arquivo que busca reunir a memória LGBTI de Cuba e do exílio
Há dois anos, a cubano-americana Librada González reúne livros, vídeos, cartas, jornais, cartões postais e testemunhos da cultura ‘queer’ na ilha
Librada González Fernández é uma cubano-americana que há alguns anos começou a reunir documentos que retratam a vida da comunidade LGBTI em Cuba e no exílio. O resultado é um arquivo, batizado de CubaneCuir, que já contém 400 peças, entre livros, fotos, cartões postais, fitas de vídeo, jornais e testemunhos abrangendo seis décadas de castrismo e dos tempos de Fulgencio Batista. González explica, numa videochamada de Novas York, que deseja documentar a vida cotidiana, as conquistas e as alegrias, além da repressão. Na quarta-feira, ela participa de um debate virtual sobre arquivos LGBTI realizado pelo Instituto Moreira Salles de São Paulo, que abriga uma exposição da fotógrafa Madalena Schwartz, que nos anos setenta registrou a cena travesti da metrópole brasileira. Os debates serão transmitidos ao vivo pelo YouTube e Facebook do IMS.
González, que chegou a Miami aos 11 anos com a mãe, um irmão e um nome de homem, inspirou-se no Arquivo da Memória Trans da Argentina, que também será representado no debate virtual do IMS. “Em Cuba, aprendi a ser quem sou, e nos Estados Unidos abri os olhos para o queer”, afirma. A ideia do arquivo começou a germinar a partir de suas visitas à biblioteca pública após se mudar para Nova York. “Fiz uma busca pela Cuba queer e encontrei Antes que anoiteça, de Reinaldo Arenas, e um pouco mais”, afirma, em referência ao livro do escritor cubano expulso de sua pátria por ser homossexual que se suicidou no exílio. “Achei muito transfóbico e racista, mas adorei o livro”, diz. Surgiu então a necessidade de procurar documentos que retratassem as trans com seu próprio olhar, não com o de terceiros. O arquivo nasceu em novembro de 2019. E González decidiu chamá-lo de CubaneCuir, nome que combina seus compatriotas não binários (que não se identificam com o gênero masculino nem com o feminino) e a fonética do vocábulo queer, do inglês.
Meses antes, ela havia regressado pela primeira vez à ilha. E ali testemunhou a violenta repressão policial de 11 de maio de 2019 contra uma manifestação em defesa dos direitos LGBTI, em resposta à proibição da versão cubana do desfile do orgulho LGBT, chamada de “Conga Contra la Homofobia”. Naquela visita, ela conheceu pessoalmente muitas pessoas trans com as quais havia conversado em grupos de Facebook, Instagram e WhatsApp. A dissolução violenta do protesto incentivou novos grupos nas redes com centenas de membros, afirma.
Para González, Cuba só pode ser compreendida considerando a ilha e o exílio. Embora boa parte dos documentos tenham sido doados por cubano-americanas em Nova York, em janeiro de 2020 (pouco antes de a pandemia paralisar o mundo) ela viajou de novo a Cuba, já com a ideia de reunir mais material. Era sua segunda viagem desde que saiu de lá; a primeira havia sido um ano antes.
À medida que ela começou a coletar as peças, o sentimento agridoce foi aumentando. Algumas pessoas que ela abordou ficam surpresas com seu interesse em guardar aqueles objetos cotidianos e aquelas pequenas lembranças de glórias passadas. González explica que as fotos de Bobby de Castro, um transformista que triunfou nos anos cinquenta, feitas por Armand, um fotógrafo famoso, chegaram às suas mãos por acaso: quando o artista morreu em decorrência da aids, nos anos oitenta, sua mãe não quis conservá-las. Deu-as para uma pessoa que González prefere não identificar, que por sua vez doou para o CubaneCuir. O arquivo conta também com o “documento traumático” com o qual, em 1971, o regime oficializou a homossexualidade como uma doença no contexto do primeiro Congresso de Educação e Cultura; um boletim clandestino distribuído em Havana nos anos noventa que explica como prevenir a aids; uma publicação queer chamada Huellas (pegadas); e a única fita com uma atuação televisiva de Bernie Brandall, que fugiu de Cuba no final dos anos quarenta para brilhar como artista travesti nos EUA e em outros países.
González, que ganha a vida como vitrinista depois de estudar dança e teatro, escutou pessoas questionando por que guardaria objetos assim. Mas ela esclarece que “todas essas coisas são patrimônio, são história, e muitas dessas pessoas queer não se sentem dignas” de que seus pertences façam parte de um arquivo. Da mesma forma que algumas são generosas ao doar porque não valorizam os objetos como patrimônio, outras lhe pedem que cuide bem deles. “Algumas fazem doações para mim porque sou a única que mostra interesse. Não é que seja uma visionária, mas é tão óbvio!”, diz essa mulher trans que mantém o arquivo em caixas especiais para conservação, pastas e ar condicionado.
Atualmente, o repertório está em fase de catalogação e digitalização. González sonha com o dia em que poderá disponibilizá-lo na internet, ao alcance de todos. Enquanto isso, prepara sua próxima viagem à ilha. Dificilmente verá seu pai, pois ele não quis saber mais nada sobre ela desde que se tornou Librada —nome que adotou por suas referências à liberdade, pela santa barbuda (Santa Liberata) e em homenagem a uma professora da escola.
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