Thelma, a médica que contrariou prognósticos para vencer o BBB
Desbancando o favoritismo de influenciadores digitais, Thelma se consagra campeã da edição mais assistida do programa como um símbolo de representatividade
Mulher, negra, médica e feminista. As credenciais de Thelma Assis, 35, eram visíveis desde seus primeiros passos na edição comemorativa de duas décadas do Big Brother Brasil. Ao longo dos três meses de confinamento, a anestesiologista paulistana também mostrou ao público outras versões de uma personagem cativante e jogadora fiel às afinidades que surgiram na casa. Bailarina, passista de samba da Mocidade Alegre, ela, que se define como uma “médica aparecida”, venceu nesta segunda-feira a edição mais comentada do reality show global, contrariando prognósticos e, novamente, as estatísticas. “Eu cresci e, para lutar contra a desigualdade, quero puxar mais gente junto comigo”, disse Thelminha, que, além de milionária, se tornou um símbolo de representatividade.
Antes de entrar para o BBB, ela abandonou o emprego no hospital onde chefiava um curso de residência, em São Bernardo do Campo, e se jogou de cabeça no processo seletivo do programa, assim como havia feito ao se dedicar a uma carreira improvável. “Eu sempre quis ser médica”, contou. Foi abandonada pela mãe biológica com apenas três dias de vida e, aos sete anos, descobriu que era adotada após receber uma ligação anônima. A família que a acolheu, porém, nunca deixou de incentivar seu sonho. Thelma estudou em colégios particulares e recorreu a um cursinho popular até passar, na terceira tentativa, no vestibular de medicina da PUC, de Sorocaba. Com bolsa integral do Prouni, era a única negra entre os 100 alunos de sua turma.
“Eu tinha capacidade, mas, sem oportunidade, meu caminho teria sido bem mais difícil”, afirmou em uma conversa com participantes do programa ao defender a política de cotas raciais nas universidades. “As coisas são complicadas quando se é mulher, preta e de classe social desfavorecida. Dar o direito à educação significa garantir mudanças para toda uma geração. Eu tive bolsa. Vou mudar a geração dos meus filhos, dos meus netos.” A ajuda de custo de 300 reais que recebia do Governo raramente era suficiente para bancar as despesas do curso de medicina. Para conseguir se formar, precisou fazer bicos como distribuir panfletos nas ruas. Uma rara médica negra no ambiente hospitalar, ainda há quem a confunda com auxiliares de limpeza ou de enfermagem durante os plantões.
No BBB, a discriminação racial a acompanhou dentro e fora da casa. “Torcer pela Thelma é racismo. Todo mundo está votando nela porque ela é negra coitada”, disse o guia turístico de celebridades, Rodrigo Branco, ao compará-la com a apresentadora Maju Coutinho, a quem subjugou como “péssima”. Os comentários ofensivos e racistas instigaram outros ataques nas redes sociais. A médica foi tachada de “mucama” pela amizade com participantes brancas. “Thelma é atacada inclusive por pessoas negras que acabam reproduzindo um comportamento discriminatório. Quando se fala sobre a solidão da mulher negra é disso que —também— se trata. Por que a chamam de escrava de branca?”, rebateram administradores de seus perfis nas redes.
Dentro da casa, colegas de confinamento debochavam de sua base de maquiagem para pele negra, comparando o cosmético a barro. Ao rechaçar o racismo direcionado à médica, Ivy disse que não era racista por gostar de “ficar preta” tomando sol. Mari, por sua vez, desmereceu Thelma ao insinuar que teria concedido a liderança à paulistana desistindo da disputa de resistência após 26 horas de prova. Flayslane a declarou como inimiga de jogo por considerá-la uma “planta” na casa. Depois de ser indicada por Flay, Thelma venceu o paredão, virou líder e devolveu a indicação com uma resposta incisiva: “Planta não sai do jogo, planta também volta”. Flay acabou eliminada na semana seguinte.
Os posicionamentos da médica, no entanto, contradiziam o estereótipo de “planta”. Ainda no primeiro mês de programa, Thelma protagonizou um de seus momentos altos ao chamar o fisioterapeuta Lucas Gallina de “macho escroto” por se recusar a contribuir com a comida na casa. Ele foi indicado ao paredão e saiu do jogo. Feminista declarada, ela se aliou à também médica Marcela, “por identificação profissional”, e ajudou a derrubar, um por um, o grupo de homens marcados por atitudes machistas. Mas, ao perceber que não era aceita como as outras, se descolou da intitulada “comunidade hippie” e preferiu associar-se a outro grupo, mais inclinada às influenciadoras Manu Gavassi e Rafa Kalimann e ao ator Babu Santana, o quarteto que chegou à reta final. “Sou muito leal às amizades, mas percebi que não era recíproco”, justificou.
Ao lado de Babu, ela ainda compartilhou vivências tocantes sobre as realidades das pessoas negras no país. Firmaram um pacto de não agressão, que o ator entendeu como “algo muito maior” que o programa. Ele, Thelma e Flay eram os únicos negros da casa. Por isso, Babu julgava se tratar do “BBB das bandeiras”, por abrigar debates sobre lutas feministas e antirracistas. Mesmo em lados opostos do jogo e a contragosto do grupo liderado por Marcela, ambos mantiveram uma relação de irmandade até o fim, que ficou abalada quando Thelma optou por votar em Babu para preservar a amiga Rafa. “Foi muito doloroso, mas escolhi ser coerente com minha trajetória”, desculpou-se com o ator, que não guardou mágoas. “Uma mulher preta, médica, maravilhosa. Representatividade total”, discursou Babu na despedida do programa, reafirmando que Thelma é um exemplo para sua filha, que também sonha ser médica.
Na profissão, Thelma busca lançar um olhar humanizado sobre a medicina. “Sempre penso que o paciente é o amor da vida de alguém”, afirma ao explicar por que se esforça para tratar as pessoas enfermas com empatia. Às amigas do BBB, contou a história de uma criança negra atendida por ela no fim do ano passado, que iria operar de uma hérnia. Para acalmá-la, Thelma vestiu touca e avental na boneca —negra e de cabelo black— que a menina havia levado ao hospital, como se o brinquedo também fosse uma paciente, e a entregou assim que a garota acordou da cirurgia. “Ela viu que a boneca estava com curativo e voltou a dormir.”
Thelma cresceu aos poucos no jogo e, na fase crucial, angariou apoios de peso, como o das cantoras Elza Soares, Preta Gil, Anitta, Iza, Ludmilla e Negra Li, que a ajudaram a desbancar os exércitos virtuais das favoritas Manu e Rafa. Uma de suas torcedoras mais empolgadas era a atriz Taís Araujo, que teve uma publicação em homenagem à médica replicada até mesmo pela atriz norte-americana Viola Davis. “Quando a doutora Thelminha ganha o BBB, milhares de mulheres ganham com ela”, comentou Araujo ao celebrar a vitória nesta terça. Antes, havia citado a ativista norte-americana Angela Davis: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. “Queria mostrar minha história para o Brasil”, disse Thelma em entrevista a Fátima Bernardes. “Nem quero servir como exemplo, quero servir como inspiração.”
Após embolsar o prêmio de 1,5 milhão de reais, a médica tem como plano mais ambicioso comprar um apartamento para ela e a mãe, que moram de aluguel. Em seguida, pretende retomar a carreira na medicina, disposta a colaborar na força-tarefa em combate ao coronavírus. “É o que eu amo fazer.” Ela e o marido ainda desejam entrar para a fila de adoção, como uma forma de retribuir o acolhimento que recebeu de seus pais. “Não foi fácil chegar onde eu cheguei, mas prefiro contar minha vida como uma história de superação”, diz. Não deixa de ser emblemático que, um ano depois de premiar uma participante branca notória por falas racistas, o reality show de maior audiência do Brasil agora consagre, em meio à pandemia, uma mulher negra, médica e feminista.