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De ‘fake news’ à desigualdade, o que leva brasileiros a não voltarem para tomar a segunda dose da vacina

Cidades que calculam mal segunda aplicação e falhas estratégicas e desinformação contribuem para o abandono vacinal e podem comprometer proteção coletiva na campanha brasileira de imunização, dizem especialistas

Enfermeira se prepara para aplicar a vacina contra a covid-19 no Rio de Janeiro.
Enfermeira se prepara para aplicar a vacina contra a covid-19 no Rio de Janeiro.Andre Coelho (EFE)
Beatriz Jucá

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Ao menos 6% dos brasileiros que tomaram a primeira dose da vacina contra a covid-19 não receberam a segunda e, portanto, não podem ser considerados imunizados contra o coronavírus. Falta de doses nos postos de saúde, falhas na própria estratégia brasileira e até fake news sobre os imunizantes são algumas das causas apontadas por especialistas para o abandono vacinal no país ―um problema que já vinha causando preocupação em outras campanhas nos últimos anos e aumentou na pandemia. Isso porque a proteção coletiva contra o coronavírus exige que uma parcela maior da população complete o esquema de duas doses de vacina para que as taxas de eficácia menores dos imunizantes disponíveis possam proteger a população como um todo. “A vacinação é uma estratégia coletiva. Sem as duas doses, muitas pessoas não ficam imunizadas e acabamos colocando a estratégia em risco”, explica a epidemiologista Ethel Maciel. Outro problema que permeia a imunização brasileira é a desigualdade. Em São Paulo, por exemplo, idosos de bairros mais pobres têm sido proporcionalmente menos vacinados que os que vivem nos bairros com maior poder aquisitivo.

Os motivos do abandono vacinal no país vão além do esquecimento ou da resistência da população. Há cidades em que usuários até estão retornando para receber o reforço, mas não conseguem porque não há vacina nos postos. Foi o que aconteceu nesta semana em Natal. Como as doses da Coronavac acabaram na última segunda-feira (12), quem precisava receber a segunda dose não conseguiu concluir o esquema vacinal na data prevista, mesmo peregrinando por várias unidades de saúde. Uma nova remessa só chegou quatro dias depois, na sexta. Diante de várias tentativas sem sucesso, muitos acabam desistindo. “Os municípios precisam ir atrás dessas pessoas”, aponta Maciel. Ao menos 1.426 cidades brasileiras não têm reservado vacinas para garantir a segunda dose ―quase a metade de um total de 2.938 que responderam à pesquisa da Confederação Nacional dos Municípios. Se continuarem assim, elas correm o risco de não ter vacinas para complementar o esquema vacinal em parte da sua população, já que o país segue sem um cronograma de entregas estável. Em março, o Ministério da Saúde chegou a orientar que as cidades usassem todos os estoques para vacinar mais pessoas com a primeira dose, mas voltou atrás neste mês após não conseguir cumprir as entregas que esperava.

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As cifras de quem não volta para tomar a segunda dose também incluem pessoas que adoeceram de covid-19 após a primeira dose e, por orientação do próprio Ministério da Saúde, precisam esperar um prazo maior, de 30 dias após os sintomas, para completar a vacinação. Pesquisas mostram que uma dose da vacina já dá alguma resposta imunológica, mas não protege a pessoa de contrair o vírus. “Como a transmissão está muito acelerada, muita gente está adoecendo”, explica Maciel. É o caso, por exemplo, da enfermeira Patrícia Carvalho de Oliveira, de 33 anos. Ela conta que tomou a primeira dose da Coronavac em Águas Lindas, em Goiás, no dia 25 de fevereiro. Mas, dois dias antes de receber o reforço, testou positivo para o coronavírus. “Por conta disso não pude tomar a segunda dose. A médica me pediu que esperasse 30 dias depois do teste positivo, então só vou conseguir tomar nesta semana. Imagino que não vou ter problemas para conseguir”, conta.

Um levantamento do Ministério da Saúde divulgado na semana passada apontou que 1,51 milhão de pessoas que tomaram a primeira dose não retornaram para a administração do reforço. “Quem atrasou e não conseguiu ir com 28 dias [da segunda dose da Coronavac] ou 84 dias da AstraZeneca deve comparecer [aos locais de vacinação]”, orienta a coordenadora do PNI (Programa Nacional de Imunizações), Francieli Fontana. O abandono vacinal tem preocupado a pasta, que diz estudar com secretários municipais e estaduais da saúde novas estratégias para identificar quem não voltou para tomar a segunda dose e orientá-las a completar a imunização. Na chamada busca ativa ―realizada historicamente no país por meio da Estratégia Saúde da Família―, agentes de saúde ligam para os usuários ou mesmo vão até suas casas para recordar sobre a segunda aplicação. “A gente sempre fez a busca ativa muito bem pelo SUS, mas como você faz isso sem as doses para garantir?”, questiona Maciel. No final desta semana, o Ministério da Saúde distribuiu mais 6,3 milhões de vacinas aos Estados.

A epidemiologista também aponta a necessidade de uma campanha informativa nacional robusta para dar mais segurança à população diante do crescimento de movimentos antivacina e das fake news nas redes sociais. Segundo ela, é preciso explicar didaticamente que uma só dose não confere a proteção e mostrar os riscos e benefícios da imunização apesar das notícias sobre alguns raros efeitos adversos. “Tenho ouvido relatos de gente que tomou a primeira dose da AstraZenaca e não está querendo voltar por medo de trombose”, diz a epidemiologista. A reação foi observada em apenas 0,0001% das pessoas que receberam o imunizante. “É preciso explicar que, se a pessoa contrair a covid-19, a chance de trombose é muito maior. Só que isso não está muito compreendido. Neste momento, acredito que precisamos fazer uma campanha de informação pela vacina da AstraZeneca para minimizar este receio”, acrescenta Maciel.

A taxa por Estado

Em São Paulo, o Estado mais populoso do país, cerca de 6% dos que tomaram a primeira dose não completaram o esquema vacinal, a mesma média do Brasil. Mas no Amazonas, por exemplo, a taxa de abandono é bem maior: 13% das mais de 500.000 pessoas que receberam a primeira dose já estão com a segunda atrasada. O Estado concentra grande número de população ribeirinha e povos indígenas, que vivem muitas vezes em áreas distantes das sedes municipais e que exigem maiores desafios logísticos para a imunização. “Não é possível uma equipe de saúde vacinar uma faixa etária de uma comunidade e retornar no dia ou na semana seguinte para vacinar uma outra faixa etária e repetir isso diversas vezes até concluir a vacinação. O custo é proibitivo e isso tem dificultado o avanço da vacinação nessas áreas”, alertou o superintendente da Fundação Amazônia Sustentável, Virgilio Viana, em um artigo ao EL PAÍS. No Distrito Federal, a taxa de abandono chega a 7%. O secretário da Saúde do DF, Osnei Okumoto, chegou a fazer um apelo para que os que tomaram a primeira dose retornem aos postos de vacinação. “As pessoas acabam perdendo o prazo da próxima dose e isso prejudica o processo de imunização”, disse em uma coletiva de imprensa.

Alguns Estados têm enviado alertas por SMS e Whatsapp para os usuários enquanto outros, a exemplo do Mato Grosso do Sul, preparam também campanhas informativas focadas para que as pessoas não esqueçam de tomar a segunda dose. As vacinas de Oxford/AstraZeneca da Sinovac/Butantan são as únicas distribuídas até agora no Brasil. Ambas precisam da segunda dose para alcançar a eficácia observada nos seus estudos clínicos. Os intervalos entre elas são distintos, o que também pode confundir a população. “A gente fez no Brasil algo errado, a pessoa tinha que marcar a primeira e depois a segunda dose. Ou seja, após a primeira, a segunda não é agendada automaticamente em todos os lugares. Alguns então só estão conseguindo tomar fora do prazo”, diz Maciel.

As desigualdades da vacinação contra a covid-19 no Brasil

A campanha de vacinação brasileira contra a covid-19 também tem refletido as desigualdades sociais que assolam o país. Um levantamento do jornal Folha de S. Paulo mostra que a procura de idosos pelos imunizantes nos bairros mais pobres de São Paulo ―apesar de apresentarem mortalidade maior pela doença― tem sido proporcionalmente menor que nos bairros com maior poder aquisitivo. Segundo a reportagem, nos dez distritos com mais mortes de idosos por covid-19 na capital paulista (todos com IDH entre os mais baixos da cidade), em média 58% das pessoas com 70 anos ou mais receberam a primeira dose. Já nos distritos que apresentaram menor mortalidade (dos quais oito têm IDH muito altos), o mesmo índice chegou a 75% neste público.

No bairro Pinheiros, 91% das pessoas desta faixa etária receberam a primeira dose. Especialistas apontam que a dificuldade maior de acesso aos serviços de saúde e mesmo à informação nas regiões mais pobres são fatores que influenciam a baixa vacinação nestes locais ainda que sejam mais vulneráveis ao vírus. “Em geral, as prefeituras estão pedindo as pessoas agendarem pela internet, isso também cria barreiras para as pessoas que tem menos acesso e que não tem inclusão digital”, acrescenta Maciel. “A falta de uma campanha de comunicação intensa também atrapalha.”

Outra camada da desigualdade na imunização contra a covid-19 é a questão racial, uma situação observada também em outros países, como os Estados Unidos. O Estado de São Paulo vacinou três vezes mais pessoas que se identificam como brancas do que os que se identificam como negras nos primeiros meses de vacinação, segundo levantamento feito pela empresa de análise de dados Lagom Data para a Agência Mural. Os dados têm como base a identificação racial em apenas 43% dos imunizados. Ou seja, considera menos da metade de todos os vacinados, que foram os que tiveram estes dados preenchidos no sistema. Desta parcela, 20% se identificou como negra e 65% como branca. Seja como for, é mais um indício sobre a desigualdade na pandemia e os desafios do poder público para proteger os mais vulneráveis.

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