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‘Fila da xepa’ das vacinas em São Paulo mostra corrida pela sorte por sobras da Coronavac

Quem está na longa fila para tomar a “sobra” da vacina contra a covid-19 não desgruda do celular e chega a ir ao posto de saúde com medo de perder a vez e perder o lugar

O casal Wilson Neves Bezerra e Silvia Toth Bezerra se cadastra na xepa da vacina contra a covid-19.
O casal Wilson Neves Bezerra e Silvia Toth Bezerra se cadastra na xepa da vacina contra a covid-19.
Beatriz Jucá

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“Você acha que consigo ainda hoje?, pergunta uma mulher para uma profissional de saúde, enquanto estica os olhos em direção à sala de vacinação contra a covid-19. Com seus aparentes 60 anos, ela ainda não faz parte do grupo prioritário e não sabe quando chegará sua vez de ser imunizada contra o coronavírus em São Paulo, que agora contempla maiores de 69 anos. Mas nutre a expectativa de conseguir uma sobra do tão cobiçado imunizante ao final do dia de trabalho da UBS Humberto Pascale, no bairro de Santa Cecília, região central da cidade. São cinco horas da tarde de segunda-feira, 29 de março. E, além dela, começam a chegar outras pessoas com a mesma esperança: a de conseguirem algo na xepa da vacina.

Como a maioria dos frascos das vacinas disponíveis no SUS (Coronavac e AstraZeneca) tem 10 doses, cuja eficácia dura por até oito horas depois de serem abertos, todos os dias moradores da região cruzam o portão azul do posto de saúde para arriscar a sorte. A maior parte deles coloca o nome e contato em um caderno azul que marca a ordem de entrada na fila de papel. Se, ao final do dia, alguma dose sobra, funcionários do posto ligam para o primeiro nome da lista para avisar que ele poderá ser imunizado e, assim, evitar o desperdício. Assim que desligar, o felizardo tem 15 minutos para chegar ao local. Se perder a ligação ou não conseguir cumprir o tempo, perde a vez. E seu nome volta para a lista, mas no final. Por isso, há os que tentem a sorte no próprio posto para, quem sabe, conseguir a sobra da sobra, ou seja, a dose dos que não conseguiram chegar.

Pessoas de qualquer faixa etária podem se inscrever na xepa da vacina, mas os vacinadores buscam priorizar quem tem mais de 60 anos quando, raramente, sobram doses. Não se sabe ao certo quantas pessoas aguardam as tais “sobras” naquela UBS ―vacinadores falam que já são quase 4.000 enquanto a Prefeitura de São Paulo estima em 800 pessoas. Mas os nomes preenchem já quatro cadernos, três deles completos. Até agora, entretanto, apenas algumas páginas do primeiro foram contempladas na xepa. Só 30 pessoas conseguiram. Quem conseguiu tem direito a tomar a segunda dose normalmente e completar o esquema de proteção contra o vírus.

“Qual a hora que vocês costumam ligar para eu ficar de olho no celular?”, prossegue a mulher à vacinadora. “Não tem como saber, quase nunca sobra. Mas se tiver é no final do dia”, responde uma vacinadora. O aposentado Wilson Neves Bezerra, de 64 anos, conta que já espera na fila desde o começo do ano. “Coloquei meu nome há mais de um mês e até agora não consegui nada″, conta, em frente ao posto de saúde. Ele retornava ao local na segunda-feira para incluir na lista o nome da esposa, Silvia Toth Bezerra, de 62 anos. “A gente tenta porque a expectativa é grande. Quando vi que era o número 800 da fila há mais de um mês já percebi que ia demorar”, afirma. Neves acredita que só conseguirá mesmo tomar a vacina quando a campanha for aberta para o seu grupo etário, o que espera que aconteça em breve. Mesmo assim, não custa tentar antecipar. “Não estou aflito, mas estou o tempo todo com o celular e, se me ligarem, eu vou atender. Moro aqui no bairro, em dez minutos estou aqui. Tenho medo até de sair para dar uma volta de bicicleta e espairecer. Queria poder fazer isso com mais segurança né?”, justifica.

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A poucos metros dali, uma mulher de cerca de 50 anos ergue o celular e mostra, ao fundo, um cartaz com a frase “Vacinação aqui”. Sem fones de ouvido, participa de uma reunião de trabalho por videoconferência e, ao mesmo tempo, segue presencialmente na fila da xepa. “Olhem só onde estou!”, diz aos colegas, animada. “Vai se vacinar já?”, pergunta alguém. “Vou tentar né?” Ela conta que já colocou o nome duas vezes no caderno da fila nas últimas semanas, mas, como nunca recebeu a famigerada ligação da sobra de doses, resolveu ir ao posto e esperar presencialmente. “Vou ficar até o final para ver se consigo.” Ela insiste em aguardar lá fora mesmo ouvindo repetidamente das funcionárias que raramente sobra vacina e que, caso isso ocorra, serão chamadas as pessoas pela ordem do caderno. “Não adianta ficar esperando. O risco de se infectar aqui é maior. A vez do senhor já deve chegar em abril”, diz uma das trabalhadoras do posto a um senhor de 64 anos, que também perguntava pelas sobras.

As palavras dela não parecem surtir qualquer efeito. Uma hora antes do fim do expediente, por volta das seis horas da tarde, mais três pessoas chegam. Não há aglomeração. A unidade de saúde é ampla e está relativamente vazia. Os últimos a chegar se somam a outras cinco pessoas que estavam sentadas em cadeiras no corredor lateral. Elas mantêm distanciamento na maior parte do tempo, exceto quando alguns se aproximam de uma vez só da porta da sala de vacinação para tentar pescar informações de quantas doses ainda há no último frasco aberto. São rapidamente advertidos pelos funcionários para voltar a manter distância entre si. O tempo todo, vacinadores tentam explicar que não adianta permanecer ali. “A gente não prioriza quem está aqui. Tem gente que colocou o nome em janeiro e ainda não conseguiu”, explica uma profissional de saúde. Em vão.

Minutos depois, uma funcionária avisa que só resta uma dose no frasco e ainda há meia hora para chegar alguém do grupo prioritário e usá-la. “Não vai sobrar vacina”, diz a todos, mas ninguém ensaia ir embora. São 18h30, faz muito calor e a expectativa só cresce. Agora há 12 pessoas esperando. Elas tentam criar uma fila paralela por ordem de chegada enquanto fazem uma matemática para convencer-se de que ainda há chance de conseguir vacina naquele dia. “Se chegarem mais duas pessoas, vão sobrar nove doses”, contabiliza uma moça de aproximadamente 30 anos. Mais uma vez, uma funcionária do posto explica que eles têm alguns frascos de dose única e que, caso apareça mais alguém, não será aberta mais nenhuma ampola com dez doses. A gestão municipal organiza a logística das vacinas com o objetivo de que, de fato, não sobrem doses ao final do dia. A ideia é seguir o Plano Nacional de Imunizações e, assim, usar as doses disponíveis para proteger ao máximo as pessoas mais vulneráveis, que formam os grupos prioritários. Quem tenta a sorte na xepa diz não ter intenção de furar fila, mas de buscar alguma esperança no pior momento da pandemia.

“Depois que começou a segunda onda e muita gente mais jovem começou a morrer, fiquei com medo. Sempre fui a favor das vacinas, então resolvi tentar para ficar tranquila e me proteger”, diz Ilana Wurcelman, de 44 anos. Ela conta que resolveu colocar seu nome no caderno da xepa após uma vizinha conseguir se vacinar há duas semanas. Como não foi chamada, dias depois resolveu tentar a sorte pessoalmente na unidade de saúde. Ficou lá por mais de uma hora. Colocou novamente o nome na lista, andou de um lado para outro, inquieta. Esperou, esperou. Nada. Quando os portões do posto de saúde foram fechados ao final do expediente, às sete horas da noite, encheu-se de frustração. “A gente cria a esperança de que vai conseguir se vacinar e acaba saindo frustrada, chateada. Não vou mais arriscar. Como não deu hoje, não vou mais voltar.”

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