Os fura-filas da vacinação contra a covid-19 mostram a nefasta versão 2.0 do jeitinho brasileiro
Fenômeno é reflexo da perda de valores sociais de coletividade e é potencializado, segundo especialistas, pela polarização política. Punição de infratores não deveria paralisar imunização, como em Manaus
No grande festival fura-fila que se tornou a vacinação contra a covid-19 em vários Estados brasileiros, juízes federais do Rio Grande do Sul tentam encomendar doses do imunizante Covaxin, fabricada pela empresa indiana Bharat Biontech, pelo preço de 800 reais por duas doses. Essa vacina ainda não foi aprovada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e sua precificação é ilegal, já que não foi definida na Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED). Mas esse é apenas o exemplo mais recente de como o processo de vacinação durante a pandemia escancara a crise moral que assola o país e que, segundo diferentes especialistas, é potencializada pela polarização política dos afetos.
O Ministério Público do Amazonas pediu a prisão preventiva do prefeito de Manaus, David Almeida (Avante), e da secretária municipal de Saúde, Shadia Fraxe, por suposta fraude no processo de vacinação. Eles são acusados de desviar recursos de saúde para “atender a interesses particulares” e imunizar pessoas com “ligações políticas e econômico-financeiras” com Almeida. Em Pires do Rio (GO), o agora ex-secretário de Saúde Assis Silva Filho incluiu a si própria e a sua mulher na lista de vacinação antes dos grupos prioritários. Denunciado pelo Ministério Público (MP) do Estado, ele fez acordo para pagar 50.000 reais de multa e deixou o cargo.
Também é notório o caso do caso da enfermeira Nathanna Faria Ceschim, da Santa Casa de Misericórdia de Vitória (ES), que publicou nas redes sociais um vídeo questionando a eficácia da Coronavac e, dias depois, fez outra publicação dizendo que tinha se vacinado apenas para viajar. Ela foi demitida na última segunda-feira (25/01). Já na quinta-feira, uma técnica de enfermagem foi afastada após ter simulado aplicar a vacina em uma idosa de 97 anos, em Maceió. A cuidadora da nonagenária filmou o momento e denunciou a prática da profissional.
“Estamos vivendo a versão 2.0 do jeitinho brasileiro, que se aproveita do desespero dos demais para tirar vantagem”, lamenta Renato Meirelles, fundador e presidente do Instituto Locomotiva. Em junho de 2020, o Instituto publicou uma pesquisa mostrando que um terço das classes A e B usufruiu do auxílio emergencial criado para a população socioeconomicamente vulnerável. “A fraude é transversal a todas as classes econômicas, mas ela foi acentuada pelas narrativas de disputa política. Vivemos um enfrentamento entre o campo da ação civilizatória e o da barbárie”, explica. Já não se trata de uma disputa “entre direita e esquerda”, mas de uma oposição entre aqueles que sabem que a Terra é redonda e os que acreditam no terraplanismo.
“A noção deles de liberdade não é a favor, é sempre contra os outros. É a liberdade de fazer os outros morrerem”, avalia Renato Janine Ribeiro, filósofo e professor de Ética na USP (Universidade de São Paulo). Ele concorda com a chanceler alemã, Angela Merkel, que disse que a pandemia de covid-19 é o maior desafio da humanidade desde a Segunda Guerra Mundial. “E o mais grave é que a pandemia chegou em um período de racha no mundo, desde a crise de 2008, quando a extrema direita se ergueu e construiu governos antissolidários, com agendas de destruição e não de construção”, acrescenta.
E, no Brasil, como lembra Meirelles, a narrativa do que é certo ou errado depende, historicamente, das circunstâncias. “É um país onde as elites consideram o privilégio um direito adquirido e impera o lema farinha pouca, meu pirão primeiro. Não teria nenhum problema, por exemplo, as pessoas quererem comprar vacina, se têm dinheiro para isso, caso houvesse uma abundância de imunizantes, mas há uma escassez”, argumenta.
Ambos especialistas consideram que as infrações individuais no processo de imunização são espelho das falhas institucionais de um Governo que, inicialmente, negou a gravidade da pandemia, e depois recusou-se a montar estratégias para prevenir o avanço do contágio e preparar uma imunização com insumos e capilaridade suficientes. “Se a situação política fosse outra, não perderíamos tempo discutindo fatos e já teríamos entendido, como sociedade, que o uso da máscara é para proteger o outro, para proteger a vida em sociedade, um princípio que rege também a proibição de fumar em local fechado, por exemplo”, diz Meirelles.
O fundador do Instituto Locomotiva explica que o fato de o Brasil viver “uma contínua crise econômica”, que remonta a 2015, gera também uma crise de perspectiva: como os cidadãos perderam muito —financeiramente e em outros aspectos—, surge uma raiva e um sentimento antissistema que fomenta atitudes individualistas. A disputa de narrativas políticas que leva à polarização acaba provocando rupturas no tecido social. “Os atores políticos que surfaram nessa onda, entre eles [Jair] Bolsonaro, tourearam as raivas da população e foram limando um sentimento de coletividade em prol do individualismo”, argumenta.
“E a situação é agravada pelos grandes passadores de pano, que são lenientes com as atitudes do Governo Federal”, acrescenta Janine Ribeiro ao citar os mais de 60 pedidos de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro que aguardam tramitação na Câmara dos Deputados, presidida por Rodrigo Maia (DEM). O filósofo acredita, no entanto, que a sociedade brasileira ainda não chegou a um ponto de não retorno e tem chance de resgatar valores civilizatórios. Ele usa a Alemanha como exemplo ao lembrar que, décadas depois do nazismo —”que foi a pior coisa do século XX”—, o país fez um ajuste de contas com seu passado de autoritarismo e se consolidou como uma república garantista de direitos.
O desafio nesse caminho, no entanto, é que o Brasil “nunca processou sua história”, de acordo com o filósofo. “A ditadura é um exemplo disso. Cada vez que o Brasil sai de uma grande crise, ele a varre para debaixo do tapete, quando o que deveria fazer é olhá-la, fazer questionamentos, procurar os responsáveis e puni-los”, afirma.
Crime e castigo
No caso dos fura-filas da vacina contra a covid-19, o advogado Marcelo Válio, especialista em Direito Constitucional, explica que não faltam instrumentos legais para responsabilizá-los. O primeiro que cita é o Artigo 268 do Código Penal, que dispõe sobre a infração de medida sanitária preventiva. “É justamente o caso de quem passa na frente de grupos prioritários, mesmo conhecendo as determinações das autoridades de saúde”, diz. O jurista também cita a Lei 13.869 de 2019, que atribui crime de responsabilidade a prefeitos que desviem “bens [no caso, as vacinas], rendas ou serviços públicos” para benefício próprio ou de terceiros.
Válio salienta que, pelo menos nos casos citados nesta reportagem, também há corrupção passiva e ativa e que, de modo geral, não deveria existir dificuldade para a punição dos infratores. “Os Ministérios Públicos Estaduais têm competência para denunciar essas pessoas. No caso de secretários de saúde [como o que vacinou a esposa como uma declaração de amor], o MP pode entrar com uma medida cautelar de suspensão do exercício de função pública [previsto no Artigo 319 do Código de Processamento Penal]”.
O epidemiologista Antonio Lima, especialista em saúde pública, considera, no entanto, que o país deve ter outras prioridades antes de voltar-se para a punição dos infratores. “Claro que eles devem ser punidos no rigor da lei, mas, para que isso seja feito, não podemos permitir que as investigações travem a campanha de vacinação, como aconteceu em Manaus”, pondera. A vacinação na capital amazonense foi suspensa no dia 22 de janeiro, após a suspeita de fraude na distribuição e aplicação das doses, e só foi retomada quatro dias depois. Na terça-feira (26/01), a juíza federal Jaiza Fraxe suspendeu a distribuição das vacinas de Oxford (produzidas em parceria com a AstraZeneca) em Manaus para garantir total transparência na programação e critérios de vacinação.
“É perigoso travar a campanha de imunização, temos é que correr, ainda mais quando não há previsão de insumos imunológicos”, afirma Lima, que defende que a vacinação de profissionais de saúde deveria ocorrer concomitantemente com a imunização de idosos entre 65 e 85 anos. Segundo o epidemiologista, a média etária de maior mortalidade por covid-19 é de 72 anos.
O pesquisador espanhol, Lluis Montoliu, também argumenta que os furas-filas devem receber a segunda dose da vacina, mesmo tendo cometido uma falha inaceitável: “Estas pessoas devem receber a segunda dose, porque é maior o bem que obtemos ao vaciná-las (protegendo a elas e ao resto da população) que o dano que elas cometeram à sociedade ao se vacinarem antes da hora, ou que o dano que causaríamos à sociedade ao interromper o protocolo de vacinação e causar risco a essas pessoas e ao seu entorno”, escreveu ele.
Lima lembra que, além da escassa quantidade de doses no país, a eficácia —muito inferior aos 95% da vacina contra a influenza, por exemplo—, é “muito boa” para evitar hospitalizações e mortes, mas exige uma cobertura grande coletiva. Ou seja, trata-se de uma vacina que tem potencial para frear a pandemia e desafogar as UTIs, principalmente do SUS (Sistema Único de Saúde). Por isso, o epidemiologista tem pressa e ecoa a dúvida urgente de milhões de brasileiros: “Quanto tempo vamos levar para colocar a vacina no braço de quem precisa?”.
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