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Pandemia de coronavírus
Crônica
Texto informativo com interpretação

Um cordel para a vacina

Médico da família, plantonista em hospitais e autor de cordeis sobre saúde, meu pai Sávio Pinheiro foi um dos três imunizados pela Coronavac no posto onde trabalha na zona rural do Ceará. “A gente tem que se orgulhar do SUS”

O médico da família Sávio Pinheiro recebe a primeira dose da Coronavac no interior do Ceará.
O médico da família Sávio Pinheiro recebe a primeira dose da Coronavac no interior do Ceará.Divulgação
Beatriz Jucá

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Acordei mais cedo nesta quinta-feira (21) e vesti uma camiseta do Zé Gotinha para acompanhar pelo celular um grande momento da minha família durante a pandemia: ver a vacina contra a covid-19 chegar ao braço do meu pai, Sávio Pinheiro. Médico da família, plantonista em hospitais, paciente cardíaco e com mais de 60 anos, ele tem sido uma das minhas maiores preocupações durante toda a crise sanitária. Há meses tento acompanhar mais de perto sua saúde e sua rotina. Embora não trabalhe nas UTIs ―onde estão os casos mais graves―, está todos os dias na porta de entrada para os casos suspeitos de coronavírus. E é o típico médico itinerante do interior do Ceará: trabalha fixo no posto de saúde de uma cidade, mas dá plantões durante algumas noites e fins de semana em pelo menos três cidades diferentes.

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Posso escolher qual vacina tomar? Quando serei imunizado contra a covid-19? O que se sabe até agora

“Estou no plantão. Atendi seis pacientes com covid-19 durante o dia e um à noite”, me escreveu há alguns dias. Informes assim se tornaram comuns entre nós. É como um termômetro de como a pandemia avança pelos grotões do interior do Ceará, o berço da minha família e lugar em que leitos de UTI são historicamente escassos. Por lá, a força da saúde pública está no postinho e no acompanhamento feito por médicos, enfermeiros e agentes comunitários. Pois foi a gigante capilaridade do SUS ―onde meu pai atua desde a sua criação, há 30 anos― que fez com que a vacina chegasse a ele numa quinta-feira, quatro dias depois de a Anvisa liberar o uso emergencial do imunizante no país de um local bem distante dali, em Brasília. Não tive como não me emocionar: por ele e pela potência do nosso sistema de saúde, que tem sofrido uma desidratação de recursos nos últimos anos.

Chegaram apenas três doses no único posto de saúde do Caipu, um distrito da zona rural na cidade de Cariús, a mais de 450 quilômetros da capital Fortaleza. Somente meu pai, a enfermeira e um técnico de enfermagem puderam receber a primeira dose na comunidade neste momento. Cerca de outros nove trabalhadores do posto ―incluindo cozinheira, farmacêutico e agentes de saúde― ainda esperam sua vez. O Brasil tem poucas vacinas disponíveis, e neste momento só estão sendo vacinados os prioritários dos prioritários. “Participei durante toda a minha vida de médico do processo de vacinação. Sempre fui defensor”, ele me disse, depois de ser vacinado, em um áudio no Whatsapp. Lembrou então do drama da paralisia infantil que viveu quando era criança e da esperança que foi a chegada das “gotinhas do Sabin”. Também falou de quando se vacinou contra a meningite no Recife, onde cursou medicina, com aquelas pistolas antigas, que eu mesma só vi em fotografia. “Tenho meu cartão de vacinação em dia”, orgulha-se. Não tem ano que ele deixe de tomar a vacina de Influenza, por exemplo.

A história da medicina na vida do meu pai é um pouco da história do SUS. No ano em que se formou médico, em meados dos anos 1980, já começou a participar das reuniões preparatórias para estruturar um dos maiores sistemas de saúde pública do mundo. Viu a criação dos agentes comunitários de saúde, que percorrem as residências mais longínquas do país para acompanhar pacientes com doenças crônicas e orientar medidas preventivas da saúde. Integrou as primeiras equipes de Saúde da Família, em diferentes cidades do interior cearense. Hoje, sua equipe acompanha cerca de 905 famílias ―aplicando vacinas, cuidando de crianças, fazendo pré-natal de gestantes e o acompanhamento dos idosos.

Uma vez por ano, quando estou de férias, viajo para encontrá-lo e o acompanho em pelo menos um dia de trabalho, da sala de espera do posto muito simples de Caipu. Gosto de ouvir as histórias das pacientes que vieram ao mundo pelas mãos dele, que agora acompanha seu pré-natal. Neste ano, a pandemia não deixou. Nos encontramos uma vez durante a crise, sem abraços nem visitas ao trabalho. Por saber que nos postos de saúde dos rincões do Brasil falta recurso e estrutura, tenho muito orgulho do trabalho que meu pai realiza todos os dias. E de como segue atuando nesta pandemia, com tanta responsabilidade. Muito antes do primeiro caso ser detectado no Brasil, ele já me falava com preocupação sobre o vírus que ameaçava o sistema de saúde chinês. E lia o que podia sobre isso. Nos últimos dez meses, fez o que pôde para rastrear casos e contatos na sua comunidade. Chegou a ser praticamente cancelado nas redes sociais por pedir um exame RT-PCR (o mais preciso para detectar a doença) para uma paciente que não acreditava estar infectada, apesar de relatar sintomas. O exame deu positivo. “Isso é pelo estigma da doença”, acredita meu pai. “Quem faz saúde pública não pode se chatear, tem que orientar”.

Meu pai não trabalha só no posto de saúde. E nem só nas visitas domiciliares ―que minha memória afetiva da infância leva diretamente às galinhas e doces de gergelim que ele ganhava de presente. Costuma dar palestras de educação em saúde nas escolas e usa seu talento de poeta ―ele também é membro da Academia Brasileira de Literatura de Cordel― para ajudar a população a se prevenir de doenças. Já escreveu cordéis sobre a hanseníase, o SUS, a tuberculose. Chegou ao ponto de aparecer na televisão local cantando uma marchinha de Carnaval que ele mesmo escreveu para lembrar a população dos cuidados contra a dengue. E agora está aí, em plena pandemia, preparando-se para conversar e tentar convencer as famílias sobre a importância de tomar a vacina contra a covid-19, tão logo o Plano Nacional de Imunizações (PNI) garanta doses para elas. É, aliás, o que ele faz a vida toda. “A gente tem que se orgulhar de ter o SUS”, ele me repetiu pela enésima vez nesta quinta-feira. “Mesmo sem dinheiro, a logística é impressionante. É muito rápido”. Que o Governo seja rápido também em garantir doses para toda a população. E que este tempo corra rápido pra gente voltar a se abraçar, pai. Na toada de um cordel sobre a Coronavac, que o senhor já começou a escrever.

Vírus, cocos e bacilos,

doenças, dores, mazelas,

mentes férteis, sapiência,

bom controle sobre elas.

No mundo em evolução

mostra-se a vacinação

para vencer as sequelas.


Os anticorpos seguros,

o esforço da medicina,

o caminhar da ciência,

a esperança que fascina.

Para o povo, a sanidade,

só virá com a imunidade

oriunda da vacina.

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