Avanço da vacinação abre debate sobre os privilégios a serem dados aos imunizados
Quem tiver concluído o processo tem a perspectiva de poder viajar e relaxar o uso da máscara. Mas, durante alguns meses, a população que não tiver sido inoculada permanecerá excluída dessas vantagens
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As vacinas acenderam a luz no fim do túnel pandêmico. Mas ainda resta uma etapa do caminho para sair da escuridão: uma pessoa imunizada está protegida contra as formas graves da doença, mas pode contrair o vírus e, até o momento, não se sabe qual é sua capacidade de infectar os outros ― embora se suponha que seja baixíssima. No Brasil, até esta terça-feira (9), 8.736.891 brasileiros receberam pelo menos uma dose de vacina, o equivalente a 4,13% da população nacional e os vacinados precisam continuar seguindo as regras, mesmo que apenas por solidariedade. Não podem violar as restrições nem ignorar medidas de segurança como o uso da máscara ― ao menos por enquanto. Porém, alguns países já abriram as portas a um novo mundo para os vacinados: os Estados Unidos, por exemplo, permitem que eles se reúnam em ambientes internos sem máscara, seja entre si ou com pessoas de baixo risco. A União Europeia, por sua vez, avança para a criação de um certificado de vacinação, como já fizeram Israel e a China, que facilitará a mobilidade dos imunizados e estimulará a recuperação da economia. As vozes mais críticas a esses passes, entretanto, alertam para a falta de evidência científica sobre a eliminação do risco de transmissão depois da imunização e advertem de que estes certificados acabarão por dividir a sociedade entre vacinados e não vacinados, sobretudo quando o acesso às vacinas é limitado.
Não há até agora estudos concludentes que provem que os vacinados não são capazes de espalhar o vírus, embora os dados epidemiológicos coletados até agora sugiram que a transmissão, se houver, é baixa. Um ensaio com profissionais da saúde no Reino Unido constatou que a vacinação previne a infecção sintomática ou assintomática, mas este estudo ainda não foi publicado em nenhuma revista científica nem foi revisto por pares. “Cientificamente não se pode dizer que uma pessoa imunizada não transmite [a covid-19]. Não está demonstrado o risco zero”, alerta Carmen Cámara, secretária-geral da Sociedade Espanhola de Imunologia.
Diante da dúvida, os especialistas e as autoridades sanitárias aplicaram “o princípio de prudência”. Sobretudo quando a imensa maioria da população ainda não está vacinada e continua desprotegida. Por isso, os imunizados não podem fazer muito mais do que já podiam. Na Espanha, no máximo os idosos nos asilos, onde já houve vacinação maciça, podem flexibilizar um pouco suas restrições (muito mais duras devido à sua natural situação de vulnerabilidade) e igualá-las às da população geral. Há duas semanas, por exemplo, um grupo de idosos foi ao teatro em Madri, uma atividade que já era permitida para o resto da população. Daniel López Acuña, ex-diretor de Emergências da Organização Mundial da Saúde (OMS), esclarece que “a vacina não é um seguro de vida para qualquer contingência. É o seguro para não morrer, mas não para não se infectar. Mais vale cuidar de si mesmo e dos demais”.
Alguns países, porém, já abriram as portas a uma flexibilização das restrições aos vacinados. O Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos autorizou na segunda-feira que as pessoas que completaram a imunização se reúnam em ambientes internos sem máscara nem distância de segurança. Essas reuniões podem incluir também pessoas não imunizadas, desde que sejam indivíduos de baixo risco. E, além disso, os vacinados não terão que fazer quarentena nem exames se entrarem em contato com um positivo, a não ser que tenham sintomas ou vivam em ambientes com muita gente. Em público, entretanto, terão que continuar mantendo as medidas de proteção e evitar aglomerações.
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Clique aquiOutros Governos também trabalham para criar certificados de vacinação ou imunidade que deem mais margem de manobra aos seus cidadãos, seja para cruzar fronteiras ou para ter acesso a determinados lugares no próprio país. É o caso de Israel, onde mais de metade da população já está vacinada e que implantou uma espécie de passaporte digital que dá acesso a academias de ginástica, espetáculos ou aulas presenciais nas universidades, exclusivamente para pessoas imunizadas. Mesmo nos bares, que abriram após seis meses de interrupção, há regras diferenciadas: só os vacinados poderão usar as mesas internas, e os demais precisarão ser atendidos nos espaços ao ar livre. A China também lançou um certificado com dados de vacinação e de exames de diagnóstico que autoriza o portador a fazer viagens internacionais.
Passaporte de vacinação
A União Europeia, por sua vez, acelera a criação de um passaporte de vacinação que facilitaria a mobilidade entre os Estados membros. Depois de uma primeira discussão com os países, a Comissão Europeia estuda incluir pessoas com o PCR negativo ou que já tiverem tido covid-19, embora a proposta formal só deva ser anunciada na semana que vem. Sob esta última premissa, a UE volta a pôr sobre a mesa uma proposta que já tinha sido sugerida em abril de 2020 por Quim Torra, então presidente da Catalunha, dentro de seu plano de desescalada. Como ocorreu naquela época, a medida esbarrou nas críticas de parte da comunidade científica e inclusive da OMS ― que naquele momento a rejeitava devido à falta de respostas sobre como funcionava a imunidade dos já infectados ―, e especialistas consultados voltam a alertar agora que dar um certificado a uma pessoa que passou pela doença pode estimular a população a se infectar de propósito para ter acesso aos privilégios garantidos por esse documento.
Mas essa não é a única desconfiança despertada por esses passes digitais. López-Acuña explica que esse documento “nos oferece uma falsa segurança, porque o risco de infecção, mesmo para quem estiver vacinado, existe. Para termos segurança sanitária plena e evitar a importação desta doença, o passaporte não serve”. Já Cámara opina que “do ponto de vista ético, acho uma barbaridade quando não há acesso universal à vacina”. Segundo o Centro Europeu de Controle de Doenças (ECDC, na sigla em inglês), a UE administrou quase 38,5 milhões de doses até agora, mas a população com a pauta completa (a maioria das vacinas precisa de duas doses) está aquém de 6% em todos os países.
Há muitas pontas soltas, insistem as vozes críticas. O presidente da Associação Espanhola da Vacinologia, Amós García, questiona: “Uma coisa é que fique um registro no prontuário clínico, que se tenha uma carteira de vacinação, e outra é um passaporte imunitário quando não sabemos se [a vacina] evita a infecção. E, em todo caso, quem terá acesso a esse passaporte? Cidadãos de países ricos. Porque as vacinas ainda não chegaram a muitos territórios em vias de desenvolvimento, e isto fará aumentar a disparidade entre os países. E, por outro lado, o que fazemos com os menores de 18 [para os quais estas vacinas ainda não estão indicadas]?”. A maioria dos países da África, por exemplo, ainda não começou a vacinar. Nesta linha, o diretor-executivo do Programa de Emergências da Organização Mundial da Saúde (OMS), Michael Ryan, também não concorda com a possibilidade de os países exigirem um certificado de vacinação para viajantes, porque isso criará “mais desigualdades”, justificou.
A Comissão Europeia pretende apresentar seu certificado digital em 17 de março. Com os olhares voltados para salvar a campanha turística do verão europeu, o organismo ainda não esclareceu, entretanto, quais serão seus usos definitivos―possivelmente, servirá para entrar em um país, como ocorre com a vacinação contra a febre amarela em zonas onde essa doença é endêmica― ou as condições para obtê-lo (o que acontecerá com menores de idade ou com as pessoas para quem a vacina for contraindicada). Além disso, há divergências entre os Estados membros da UE: enquanto a Espanha e Grécia, duas potências do turismo, defendem o chamado “passe digital verde”, a França e Luxemburgo o rejeitam, por temerem que surjam cidadãos de primeira e de segunda classe, dependendo de estarem ou não vacinados.
“Nenhuma intervenção está isenta de efeitos colaterais. Há efeitos indesejados em qualquer intervenção comunitária”, observa o infectologista Oriol Mitjà, impulsionador da proposta do passaporte imunitário na Catalunha quase um ano atrás. O médico admite que não é possível garantir o risco zero de transmissão entre os vacinados e que pode haver pessoas que desejem se infectar para conseguir o passe verde, mas são riscos “que podem ser considerados e mitigados”, comenta. Por exemplo, mantendo as medidas preventivas de proteção, como a máscara. “A alternativa ao passe verde é fechar para todos. Mas não pode ser abrir para todos, porque põe a saúde pública em perigo”, alega. Embora a curva epidêmica esteja em baixa, a incidência de casos ainda é muito alta em boa parte da Europa.
Cámara, por sua vez, propõe substituir o passaporte por mais exames. “É preciso reforçar os teste de diagnóstico no desembarque: exame de antígeno obrigatório no ponto de chegada para todo turista que entrar no país. Acho mais igualitário e efetivo.”
O que está claro é que, dentro de alguns meses, em muitos países conviverão uma parte da população vacinada e outra não. “A ideia inicial era manter as medidas de proteção e prudência em ambientes internos até o final de ano, mas haverá quem queira que se façam distinções. Esta pandemia é complicada, e depois veremos como evoluem as variantes, que tentarão escapar dos efeitos da vacina”, alerta Alberto Infante, professor-emérito de Saúde Internacional da Escola Nacional de Saúde do Instituto de Saúde Carlos III, em Madri. Toni Trilla, chefe de Medicina Preventiva do Hospital Clínic de Barcelona, dúvida de que a Europa replique o modelo de Israel: “Quando a maioria da população estiver vacinada, muitos problemas serão reduzidos, porque, embora as vacinas não sejam 100% efetivas para reduzir a transmissão, o fato de haver muita gente vacinada contribuirá para que o vírus circule menos. Mas, por enquanto, no âmbito público, eu, vacinado, vou fazer o mesmo que você [que não está]”. Trilla acrescenta que os passaportes “têm prazo de validade porque não se sabe quanto durará a imunidade” e será preciso ir atualizando essas eventuais vantagens conferidas pelos passes verdes.
O que persistirá por mais tempo serão as desigualdades entre países, sobretudo com aqueles em desenvolvimento, onde a vacinação irá mais devagar. “Vamos passar por alguns anos de distopia, em um mundo de vacinados e não vacinados. Será permitida a mobilidade dentro da UE, mas conviveremos por mais tempo com um mapa de restrições de acesso à África e América Latina”, admite Infante.
DIVERGÊNCIAS ENTRE ESPECIALISTAS EM BIOÉTICA
Entre os especialistas em bioética também há divergências sobre a conveniência ou não de certificados desse tipo. “Se no curto prazo já tivermos vacinados todos os grupos de população que têm um risco de mortalidade ou comorbidade grave frente à covid-19 [basicamente, os idosos], o suposto risco de transmissão que não for evitado por estar vacinado, embora certamente seja mitigado, não poria em perigo a vida e a integridade dos grupos mais vulneráveis”, justificava em um artigo no EL PAÍS o presidente do Comitê de Bioética da Espanha, Federico de Montalvo. E, embora admitisse que “sob uma dimensão deontológica o mais justo seria esperar que houvesse um acesso universal às vacinas”, acrescentava em seguida: “Convém não esquecer que é altamente provável que uma sociedade com economia pior tenha saúde pior. Os certificados e passaportes, apesar das objeções comentadas, estariam, definitivamente, protegendo a saúde da sociedade, e não só a economia”.
Já Itziar de Lecuona, subdiretora do Observatório de Bioética da Universidade de Barcelona, rejeita frontalmente qualquer tipo de certificado de imunização. “Afeta os direitos fundamentais e abre a porta à discriminação entre vacinados e não vacinados. Podem acabar pedindo-o para trabalhar, e isso seria dar privilégios a determinadas pessoas”, insiste. E observa que, em todo caso, seria necessário aprovar uma lei que regulamente dispositivos desse tipo.
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