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A imunidade humana resiste às novas variantes do coronavírus

As mutações da África do Sul e do Brasil escapam dos anticorpos das pessoas vacinadas, mas a possibilidade de que escapem de todas as defesas do sistema imunológico é muito pequena

Homem recebe a vacina em Schiltigheim, no leste da França.
Homem recebe a vacina em Schiltigheim, no leste da França.Jean-Francois Badias (AP)
Nuño Domínguez

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A batalha decisiva entre a humanidade e o novo coronavírus começou com a vacinação em massa da população. Os humanos possuem uma arma implacável ―seu sistema imunológico estimulado por vacinas com até 95% de eficácia. O vírus usa as armas que a própria natureza lhe dá: sua capacidade de sofrer mutações de forma totalmente aleatória, fenômeno que pode dar origem a novas versões de si mesmo que tenham vantagens para escapar da vacina.

Nos últimos dias, vários estudos preliminares mostraram que as vacinas podem não funcionar tão bem com duas das novas variantes detectadas: a da África do Sul e a do Brasil. Um trabalho realizado no país africano mostrou que os anticorpos ―proteínas do sistema imunológico capazes de bloquear a entrada do SARS-CoV-2 nas células― de pessoas que já passaram pela infecção têm entre seis e 200 vezes menos potência contra a nova variante detectada. Outro trabalho dirigido pelo microbiologista David Ho, da Universidade Columbia, nos EUA, mostra que os anticorpos das pessoas que receberam vacinas de RNA são entre seis e oito vezes menos eficazes contra essa mesma variante.

A versão do vírus detectada no Brasil compartilha com a sul-africana duas mutações que provavelmente são responsáveis por esses efeitos. São apenas duas mudanças de uma letra por outra no genoma do coronavírus, que tem um total de 30.000 letras. Mas essas mudanças estão justamente na proteína S que o vírus usa para se ancorar nas células humanas, entrar nelas e usar sua maquinaria biológica para se reproduzir. Essas alterações fazem com que os anticorpos não se acoplem perfeitamente ao vírus e isso pode significar que eles perdem parte de sua capacidade de impedir que entre nas células.

A empresa Moderna confirmou que, de acordo com seus próprios estudos, as pessoas que receberam sua vacina geram anticorpos cerca de seis vezes menos eficazes na neutralização da nova variante do vírus. A boa notícia é que, mesmo assim, a vacina continua sendo eficaz e provavelmente impedirá o coronavírus de causar a doença. A empresa anunciou que já está desenvolvendo uma nova versão de sua vacina projetada especificamente para neutralizar as novas variantes. A BioNTech/Pfizer observou que pode desenvolver novas variantes de sua própria vacina em menos de dois meses. Ambas as empresas demonstraram que a variante do Reino Unido, a terceira preocupante por ser mais contagiosa, responde igualmente bem às vacinas.

“No final o SARS-CoV-2 terá evoluído tanto que as vacinas atuais já não serão eficazes”, explica Paul Beniasz, virologista da Universidade Rockefeller e coautor de um dos estudos sobre as novas variantes. “Mas esse processo”, adverte, “provavelmente levará anos”. “À medida que as pessoas forem sendo imunizadas com a vacina ou com a infecção, haverá menos casos graves nos hospitais. Isso não significa que o vírus mude. É altamente improvável que evolua para se tornar mais ou menos virulento. No final acabaremos em uma situação em que todo mundo será infectado desde criança e voltará a se infectar mais tarde, mas com sintomas muito leves ou inexistentes”, explica.

O importante é que a população que pode morrer de covid-19 já estará vacinada. É importante entender que isso provavelmente a salvará do coronavírus, mas pode não impedir que o vírus entre em seus corpos e que possam transmiti-lo. Daí a suposição de que o SARS-CoV-2 nunca desaparecerá, mas se tornará um vírus endêmico.

Outro trabalho recente baseado em um modelo matemático estima que com as vacinas atuais será impossível ou inviável obter a imunidade de grupo. A proteção relativamente imperfeita proporcionada pelas vacinas ―que possuem uma eficácia entre 70 e 95%― e a chegada de novas variantes farão com que o vírus continue circulando, a menos que 89% da população seja vacinada. Com a nova variante do Reino Unido, esse percentual chega a impossíveis 130% da população, segundo explica Paul Hunter, virologista da Universidade de East Anglia (Reino Unido) e coautor do trabalho. “Nossa conclusão é que não é necessário alcançar a imunidade de grupo”, afirma. “Enquanto pudermos evitar que as pessoas morram de covid-19 é o suficiente e, para garantir isso, as vacinas atuais bastam”, acrescenta.

“No caso da variante sul-africana, e provavelmente também da brasileira, por compartilharem a mesma mutação, todos os dados obtidos sobre anticorpos estão criando consenso sobre uma diminuição parcial da capacidade neutralizante em torno de 25%”, explica Carmen Cámara, da Sociedade Espanhola de Imunologia. “Ou seja, nosso nível de proteção cairá de 95% para cerca de 70%, percentual ainda muito alto”, acrescenta.

Uma das maiores carências de todos os estudos sobre as novas variantes é que contam apenas uma pequena parte da história. Esses trabalhos se baseiam na medição da potência dos anticorpos neutralizantes e o fazem em laboratório, não estudando o que acontece no organismo de pessoas infectadas ou vacinadas. Há um mundo de diferença.

Nós, seres humanos, estariam perdidos se só confiássemos nossa sobrevivência ao vírus nos anticorpos. O sistema imunológico possui muitos tipos diferentes de células altamente especializadas. Entre todas elas se destacam diferentes tipos de linfócitos T, glóbulos brancos que recebem um retrato muito detalhado de diferentes partes do vírus e que juntos funcionam como uma tropa de elite que é quase impossível que o vírus engane com uma ou mais mutações.

“Se você me perguntar se prefiro ter muitos anticorpos ou muitos linfócitos T, com certeza diria os segundos”, explica Antonio Bertoletti, da Universidade Duke. “Eles podem não evitar a infecção, mas impedirão a propagação do vírus de forma que você terá apenas um resfriado”, enfatiza. O imunologista publicou um estudo que mostra que depois de uma infecção ―e provavelmente também depois da vacinação― uma pessoa gera dezenas de linfócitos diferentes. Cada um ataca uma parte muito específica do vírus, impedindo-o de escapar.

“Começamos a estudar os linfócitos em pessoas que receberam vacinas de RNA. A boa notícia é que 10 dias depois da vacinação já existe uma boa resposta nesse sentido. Agora estamos estudando se algumas mutações podem afetar os linfócitos T, mas a maioria dos epítopos [fragmentos de vírus] que esses linfócitos reconhecem está fora do domínio de ligação ao receptor [a proteína S], portanto não serão afetados pelas mutações nas novas variantes. É possível que encontremos uma ou duas pessoas com mutações preocupantes, mas é muito duvidoso que seja essa a norma”, destaca Bertoletti.

Na Espanha, imunologistas de vários hospitais de Madri, Barcelona e Cantábria estão fazendo os mesmos estudos e constataram algo muito semelhante. “Dez dias depois já vemos uma resposta de linfócitos muito forte e isso antes de os anticorpos terem se desenvolvido. Essa resposta provavelmente é protetora contra o vírus”, explica Jordi Ochando, pesquisador do Instituto de Saúde Carlos III em Madri e coordenador do estudo.

Aplicando o que se sabe sobre o sistema imunológico e o que já foi visto com este vírus, o lógico é pensar que as novas variantes não conseguirão escapar da imunidade mediada pelos linfócitos. Existe um tipo específico dessas células que tem memória e é capaz de se lembrar de um vírus durante meses e até anos. “Há estudos que já demonstraram que pessoas que não desenvolvem anticorpos, no entanto, têm imunidade ao coronavírus. A resposta está obviamente nos linfócitos”, explica Manel Juan, imunologista do Hospital Clínic de Barcelona.

A equipe de Jordi Ochando está aplicando na Espanha o teste de linfócitos desenvolvido pela equipe de Antonio Bertoletti nos EUA. É uma prova que exige um pouco mais de logística do que o PCR e os antígenos. Uma amostra de sangue é retirada, fragmentos do vírus são adicionados a ela e se espera para ver se os linfócitos de memória reagem. Demora cerca de 24 horas para obter os resultados. A equipe da Ochando já analisou 250 pessoas. Seu objetivo é realizar um amplo estudo em pessoas vacinadas, infectadas na primeira e na segunda onda, pessoas imunodeprimidas e controles saudáveis para conhecer a potência e a duração real da imunidade contra o coronavírus mediada por linfócitos. De acordo com os dados mais recentes, esta dura ao menos oito meses. Um estudo recente publicado pelo centro de Doenças Infecciosas de La Jolla (EUA), referência mundial em imunidade, acaba de mostrar que a resposta celular é eficaz inclusive contra as novas variantes do vírus. O número de linfócitos diferentes é tão alto que as mutações afetam apenas 8% deles, de forma que ainda há 92% para poder localizar e destruir as células infectadas.

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