Por que os “efeitos adversos muito raros” associados à vacina da AstraZeneca são esperados, mas imprevisíveis
Processo de desenvolvimento de medicamentos e ausência de biomarcadores de risco limitam a detecção antecipada das consequências que se dão em menos de um caso a cada 10.000 pessoas
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A bula de qualquer remédio, até de um banal paracetamol, inclui uma lista de possíveis efeitos secundários que é mais longa que a das próprias indicações do princípio ativo. São classificados segundo a gravidade e incidência: dos “muito frequentes”, observados em um 1 de cada 10 pacientes, aos “muito raros”, detectados em um em cada 10.000 ou mais. Entre estes últimos se encontram os 222 casos de trombose notificados até a passada semana na Europa após a vacinação de 34 milhões de pessoas com o fármaco da AstraZeneca (2,2 casos por 340.000 imunizados). A pesquisa farmacológica parte do princípio de que estas consequências “muito raras” são esperáveis e, em muitos casos, imprevisíveis e inevitáveis por causa dos procedimentos do desenvolvimento dos compostos e pela falta de biomarcadores de um risco potencial. Mas os benefícios compensam.
“Há mais chances de sofrer um acidente de trânsito do que de sofrer um efeito adverso grave com as vacinas”, observa Jesús Rodríguez Baño, pesquisador da Universidade de Sevilha (Espanha) e membro da Agência Europeia de Medicamentos (EMA, na sigla em inglês) que avaliou a segurança da vacina. Encarnación Blanco, especialista em Farmacologia Clínica da também espanhola Universidade de Málaga, acrescenta: “Os efeitos secundários adversos da maioria dos medicamentos são superiores aos detectados nas vacinas, e o risco de trombose em doentes de covid-19 também é maior que nos vacinados”. Segundo a Sociedade Espanhola de Trombose e Hemostasia, nos pacientes em UTI está em 20% e 25 % dos casos; nos não críticos, em 5%; e entre os doentes leves, é de 1%.
A desconfiança em relação à vacina da AstraZeneca tem levado governos ao redor do mundo a evitar o imunizante ou a interromper sua utilização, neste último caso principalmente na Europa. A última decisão veio da França, que aplicará vacinas Pfizer ou Moderna em menores de 55 anos que já receberam uma dose de AstraZeneca ―cerca de 500.000 pessoas, em sua maioria profissionais de saúde. O Governo francês responde ao parecer da Agência Europeia de Medicamentos (EMA, em sua sigla em inglês), que confirmou nesta quarta-feira as ligações do medicamento com casos muito raros de trombos, embora reitere que os benefícios da imunização superam em muito os riscos.
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Os efeitos adversos são levados em conta desde as primeiras fases da pesquisa, mas, apesar de todas as precauções, alguns são inevitáveis. Um medicamento é uma complexíssima receita bioquímica cuja composição não tem como ser universalmente inócua. “Não existe nenhum que não tenha efeitos secundários, exceto os compostos homeopáticos, que não servem para nada”, explica Rodríguez Baño, também pesquisador do Instituto da Biomedicina de Sevilha. A razão é que cada organismo é um mundo circunstancial e reage de forma particular aos fármacos.
Neste sentido, todas as doses de qualquer fórmula de imunização acarretam possíveis consequências raras e pouco frequentes. “As declarações de efeitos adversos são mais numerosas com outras vacinas do que com a da AstraZeneca”, diz o pesquisador de Sevilha. Mas, prossegue, “o benefício é muito superior ao risco dos efeitos adversos”. Um exemplo da importância de levar em conta esta relação entre potenciais riscos e vantagens é a vacina contra a varíola. De cada milhão de pessoas às quais se administra, entre 14 e 52 podem ter uma reação que põe a vida em risco. Entretanto, a generalização deste medicamento permitiu que a Organização Mundial da Saúde declarasse a erradicação da doença.
Imprevisíveis
Os efeitos dos compostos são levados em conta desde o início do seu desenvolvimento, mas Blanco adverte que é “impossível prever todos eles”. Na fase de estudo pré-clínico, se analisa a toxicidade em animais que, conforme explica a farmacologista, “é boa e dá pistas, mas não permite estabelecer uma regra. Isso sim, ajuda a descartar, e milhares de moléculas caem nesta fase”.
As provas seguintes, com um número baixo de voluntários saudáveis, oferecem novos dados, mas tampouco permitem determinar os efeitos em pessoas com certas patologias ou com circunstâncias de vida específicas. É a partir das fases seguintes, com mais pessoas de diferentes características, que um mapa mais preciso vai se traçando.
No caso de alguns fármacos oncológicos, diz Blanco, o efeito é mais previsível, porque sua toxicidade já é conhecida, mas são usados em doentes que não responderam a outros tratamentos.
Prováveis
A chave está na quarta fase do desenvolvimento dos medicamentos, quando, no caso das vacinas contra a covid-19, a imunização alcança milhões de pessoas. Neste momento, a fórmula de detecção é manter em alerta os mecanismos de farmacovigilância, o sistema de notificação de eventos adversos pós-imunização (Adverse Events Following Inmunisation). Este protocolo prevê, segundo Rodríguez Baño, “que os médicos devem comunicar qualquer efeito, até um tropeço, esteja ou não relacionado com a vacina”. Inclusive os próprios pacientes podem notificar um sintoma por sua conta, acrescenta Blanco.
O acúmulo de declarações pode indicar se houver uma vinculação causal (um efeito provocado pelo fármaco) ou apenas temporal, ou seja, que ocorrem ao mesmo tempo, mas sem relação direta. Esta análise permite observar se a taxa de aparição de um determinado sintoma é similar à que se dava antes da aplicação generalizada da vacina, algo difícil de monitorar durante as fases anteriores dos ensaios clínicos, porque o número de vacinados é insuficiente para obter uma imagem precisa da recorrência.
Os efeitos muito raros, aqueles registrados em um entre cada 10.000 pacientes, são difíceis de detectar na fase três pela insuficiência da amostra. No caso da AstraZeneca, neste período foram estudadas 11.636 pessoas, e somaram-se dados de outras 23.745 imunizadas durante quatro provas realizadas no Reino Unido, Brasil e África do Sul.
Ausência de biomarcadores
Tanto Blanco como Rodríguez Baño concordam em que não existem biomarcadores de risco, substâncias que antecipem uma incompatibilidade biológica ou um processo fisiológico inesperado. “Mas ocorrem sinais a vigiar”, esclarece a farmacologista.
Até depois da aplicação do tratamento é difícil estabelecer, por exemplo, uma relação entre um efeito adverso e condicionantes genéticos. É o caso do metamizol, a popular dipirona, à qual se detectou uma especial sensibilidade entre pessoas de origem britânica e escandinava.
A partir de determinar a relação causal entre um efeito e a administração de um medicamento, investiga-se a explicação patológica e como evitar a consequência adversa.
Sistema de vigilância
Apesar das condições que tornam imprevisíveis e inevitáveis os esperáveis efeitos secundários muito raros, todos os cientistas concordam em apontar que o sistema de monitoramento funciona. Na Espanha, cada uma das 17 comunidades autônomas conta com um centro de farmacovigilância em permanente contato com a Agência Espanhola do Medicamento, que, por sua vez, se comunica com a EMA. “Está muito bem articulado”, afirma Blanco.
A singularidade da pandemia fez algo habitual, como um efeito secundário, se tornar um episódio relevante que alterou a estratégia de imunização de todo o mundo. Somou-se a isso a peculiaridade dos casos detectados em pessoas menores de 60 anos, especialmente mulheres, sem fatores de risco associados. A EMA mantém o alerta, mas não há alarme. “Continuará a ser investigado e monitorado”, diz Rodríguez Baño.
Ian Douglas, professor da Farmacoepidemiologia da London School of Hygiene and Tropical Medicine, concorda: “É impressionante ver os sistemas de vigilância da segurança das vacinas em toda a Europa funcionando a tal velocidade, com grande rigor e transparência”. “Continuaremos descobrindo mais sobre estes coágulos raros [a trombose associada à vacina da AstraZeneca] e é possível que vejamos novos alertas de segurança com qualquer uma das vacinas. Esta é a natureza de todos os medicamentos eficazes; seus efeitos secundários mais raros só emergem quando os usamos em grande escala”, conclui em uma declaração ao Science Media Centre.
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