Fiasco na distribuição da vacina da AstraZeneca compromete estratégia da UE contra a covid-19
Comissão Europeia esperava distribuir 160 milhões de doses de imunizantes no primeiro trimestre, mas até agora apenas 70 milhões foram repartidas, enquanto 154 milhões chegaram aos EUA
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Oxford, temos um problema. Um problema grave. A vacina contra a covid-19 desenvolvida pela prestigiada universidade britânica e fabricada pela empresa farmacêutica anglo-sueca AstraZeneca tornou-se uma dor de cabeça para a União Europeia. O fiasco da produção da AstraZeneca desarranjou os calendários de vacinação da maioria das autoridades de saúde europeias. Mas o impacto de repetidos atrasos na distribuição do imunizante e as dúvidas surgidas sobre seus efeitos colaterais têm ramificações muito mais perigosas do que o mero adiamento de uma punção. O desastre ameaça frustrar a estratégia da UE para superar a crise sanitária e econômica, que se baseava em uma rápida campanha de vacinação em massa para conseguir, a partir de junho, a recuperação do setor de serviços e uma mobilidade quase normal.
O espectro de uma segunda primavera sombria percorre a Europa e o nervosismo se espalha entre os governos europeus que, um ano após o confinamento do primeiro semestre do ano passado, esperavam oferecer à população um sinal de alívio sanitário, social e econômico. A realidade é mais dura do que o previsto e todos os objetivos de saúde e econômicos da Comissão Europeia estão no ar após o tropeço das campanhas de vacinação neste primeiro trimestre e o risco de novos contratempos no segundo.
“A Comissão Europeia estará em xeque durante as quatro semanas de abril”, avisa o eurodeputado socialista Nicolás González Casares, membro da Comissão da Indústria do Parlamento, um dos responsáveis pelo acompanhamento da estratégia vacinal. “Se a distribuição das doses não for acelerada no início do segundo trimestre, a Comissão enfrentará uma situação política explosiva, com uma onda de contágios em ascensão, uma população cada vez mais farta e governos que vão transferir a responsabilidade pelo desastre para Bruxelas”, prevê González.
A comissária europeia para a Saúde, Stella Kyriakides, não esconde a decepção com o laboratório anglo-sueco. “Com a AstraZeneca tem havido problemas contínuos”, lamentou Kyriakides na última quarta-feira, durante uma conversa com EL PAÍS e outros órgãos da mídia europeia. “Com a Pfizer-BioNTech, por outro lado, no início tivemos dificuldades, mas eles conseguiram aumentar sua capacidade de produção e têm sido muito mais confiáveis”, acrescentou a comissária.
A tensão é cada vez maior na capital do bloco europeu e surgem as primeiras fissuras na estratégia comum entre o grupo de países da UE —com a Áustria à frente—, que optou pela vacina da AstraZeneca e comprou poucas doses da produzida pela BioNTech. Os governos da Áustria e outros reivindicam a redistribuição das doses adquiridas, pedido rejeitado categoricamente pelos demais.
O confronto entre os parceiros da comunidade ameaça azedar a cúpula europeia que se realizará na próxima quinta e sexta-feira. O encontro pretendia repensar o futuro geoestratégico da UE (especialmente em relação à Rússia e à Turquia), mas fontes diplomáticas reconhecem que está a caminho de se tornar um gabinete de crise para tentar salvar as campanhas de vacinação.
A Comissão Europeia confiava na distribuição de cerca de 160 milhões de doses durante o primeiro trimestre, ou seja, o suficiente para injetar as duas doses necessárias a 22% da população adulta do bloco europeu. E esperava uma avalanche de doses no segundo trimestre, de até 380 milhões, o que elevaria a taxa de vacinação para mais de 60%. A imunização viria acompanhada por um relaxamento das restrições de movimento e das medidas de confinamento. E iria propiciar este ano a retomada do crescimento econômico durante o primeiro trimestre (já descartado) e uma forte decolagem durante o segundo.
Mas o sonho de uma rápida recuperação se desvaneceu e a UE chega ao final do primeiro trimestre com menos de 70 milhões de doses distribuídas (em comparação com 154 milhões nos EUA) e apenas 4,2% da população com as duas doses aplicadas de alguma das vacinas autorizadas até o momento (Pfizer-BioNTech, Moderna, AstraZeneca e Janssen). Neste primeiro semestre, a AstraZeneca planeja agora entregar 100 milhões de doses à UE, ou seja, 170 milhões a menos do que o prometido. Um total de 85 milhões de pessoas a menos do que o esperado (cada vacina requer duas doses).
A recuperação econômica prognosticada pela Comissão para o segundo trimestre também corre perigo, já que há aumento dos contágios em grande parte da Europa e o retorno dos confinamentos em países como a França e a Itália. A partir deste sábado, 21 milhões de pessoas, um terço da população francesa, estarão sujeitas a medidas de confinamento por pelo menos quatro semanas. A medida força o fechamento de 110.000 estabelecimentos comerciais, segundo dados do Governo francês, mais da metade deles na região de Paris.
Além do mais, paira a sombra da dúvida sobre as vacinas, provocada nas últimas semanas pelos vaivéns das autoridades europeias com o imunizante da AstraZeneca. Mais da metade dos Estados-Membros, incluindo a Espanha, resolveu suspender a campanha de vacinação no início da semana passada até que a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) se pronunciasse sobre vários incidentes de trombose em pessoas vacinadas com o produto da AstraZeneca. “É seguro e eficaz”, reiterou finalmente o órgão regulador na última quinta-feira, embora sem descartar a possibilidade de ligação com riscos isolados, o que deverá constar dos prospectos.
A distribuição foi retomada neste final da semana na Alemanha, França e Itália, e alguns líderes, com a chanceler alemã, Angela Merkel, à frente, anunciaram a intenção de serem vacinados com a AstraZeneca. Mas resta saber se essa operação de imagem elimina o estigma da vacina anglo-sueca.
Suerie Moon, codiretora do Centro de Saúde Global do Instituto de Estudos Internacionais e de Desenvolvimento de Genebra, acredita que o susto da AstraZeneca está dentro do esperado. “Quando você escala o número de pessoas que recebem uma vacina de dezenas de milhares para milhões, o raro se torna menos raro”, diz. Mas ela considera que as dúvidas causadas podem se espalhar para os demais laboratórios. “O golpe pode potencialmente prejudicar a confiança”, observa.
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Na França, apenas 20% da população confia na vacina da AstraZeneca, segundo pesquisa da rede de televisão BFMTV, realizada após a suspensão temporária do uso desse produto. A confiança na BioNTech é mais do que o dobro (52%). A queda da AstraZeneca é muito significativa até para um país como a França, onde, em fevereiro, antes das primeiras dúvidas, apenas 44% da população estava disposta a ser vacinada, em comparação com 66% na Itália, 58% na Espanha e 56% na Alemanha.
A eurodeputada francesa Véronique Trillet-Lenoir, do grupo liberal Renew e integrante da comissão de Saúde e Meio Ambiente, que fiscaliza a estratégia de vacinação, acredita que a suspensão temporária da AstraZeneca pode acabar sendo positiva porque mostrou à opinião pública que cada vida conta. Trillet-Lenoir aplaude tanto a suspensão como o retorno da vacinação após o parecer favorável da EMA. Mas reconhece que em países como o seu, onde os movimentos antivacina têm forte penetração, talvez sejam necessárias campanhas com rostos famosos e jovens sendo vacinados.
O desastre levou a presidenta da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, a endurecer o tom nos últimos dias. Nos corredores, as pessoas começam a falar em dispensas e demissões. “A Comissão quis ser responsável pela estratégia de vacinação sem ter aptidão para isso e, mesmo quando os Estados-Membros concordaram em atendê-la, tem sido incapaz de organizá-la”, disse uma fonte da comunidade europeia. O Parlamento Europeu, que até agora cerrou fileiras com Von der Leyen, está começando a perder a paciência e pode exigir a apuração de responsabilidades se a estratégia europeia também der errado no segundo trimestre.
Diante do risco de que as vacinas se transformem em um bumerangue que ponha em risco sua gestão, Von der Leyen se colocou em pé de guerra comercial com o Reino Unido, onde as fábricas da AstraZeneca não produziram uma única dose destinada à UE. A presidenta da UE alertou na quarta-feira que não está descartando “nada” para garantir o abastecimento, incluindo a proibição das exportações de vacinas para o Reino Unido, que recebeu 10 milhões de doses do continente (principalmente da Pfizer-BioNTech), enquanto nenhum frasco cruzou o Canal da Mancha na direção oposta.
Trillet-Lenoir acredita que é hora de “mostrar os dentes, ameaçar a AstraZeneca e, por meio dela, o Reino Unido”, afirma. Em sua opinião, o confronto com esta empresa exigirá uma solução em duas frentes: uma contratual, que pode chegar aos tribunais, e outra diplomática, perante o Governo britânico. “Mas a experiência do Brexit nos indica que não será fácil.”
A Comissão já prepara o primeiro passo para esta possível batalha judicial: pretende enviar uma carta à empresa nos próximos dias para iniciar uma arbitragem, mecanismo de conciliação previsto no contrato com a farmacêutica. Se a resolução amigável do litígio não funcionar, o contrato prevê que a disputa seja resolvida nos tribunais de justiça belgas.
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