Zé Gotinha, do ostracismo sob Bolsonaro ao vexame de fuzil na mão
Personagem ajudou a erradicar a polio e se tornou símbolo do até então elogiado Programa Nacional de Imunizações. No atual Governo, porém, aposta em propaganda contra a covid-19 e pela vacinação ainda é tímido. Agora, filho do presidente desvirtua mascote no Twitter
Aviso aos leitores: o EL PAÍS mantém abertas as informações essenciais sobre o coronavírus durante a crise. Se você quer apoiar nosso jornalismo, clique aqui para assinar.
“Cadê o Zé Gotinha?”, indagou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em discurso realizado na quarta-feira na sede do Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo —o primeiro após ter seus direitos políticos restituídos pelo ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal. “Cadê o Zé Gotinha? Cadê o nosso querido Zé Gotinha? O Bolsonaro mandou embora porque pensou que ele era petista (...) E cadê o Zé Gotinha? Acabou”, afirmou. Com o país batendo recordes sucessivos de mortos pela covid-19, o mascote, no melhor estilo Arnold Schwarzenegger no filme O Exterminador do Futuro (“I’ll be back”, ou “eu voltarei”) apareceu: e de fuzil na mão.
O deputado federal Eduardo Bolsonaro foi o responsável por disseminar em suas redes sociais a nova versão do personagem, criado em 1986 pelo artista plástico Darlan Rosa para fortalecer a campanha de vacinação contra a poliomielite. A versão repaginada do Zé Gotinha carrega fuzil M-16, um dos favoritos do Exército israelense, cujo corpo é uma seringa. A bandeira do Brasil como capa completa o figurino, numa tentativa de associação às bandeiras pró-armas do Governo de ultradireita. Em sua conta no Twitter, o filho 03 escreveu na legenda da ilustração que “a nossa arma é a vacina”. Marcelo Freixo (PSOL-RJ), ironizou a transformação do personagem e a mudança de opinião do Governo quanto à imunização: “Depois de sabotar a vacinação e mandar os brasileiros ‘enfiarem a máscara no rabo’, Eduardo Bolsonaro agora transformou o Zé Gotinha em miliciano”. À Folha, o próprio criador Darlan Rosa protestou: “É tudo o que eu não penso. Ele foi concebido como personagem educativo. Não há nada de educativo numa arma”.
Este Zé Gotinha maquinado é mais um capítulo no errático esforço do Governo Bolsonaro de reverter os prejuízos políticos, sanitários e econômicos provocados por um ano de negacionismo com relação à pandemia. Em um momento no qual o país bate recordes sucessivos de mortos pela covid-19, a economia está em parafuso e os índices de popularidade do presidente seguem caindo segundo as últimas pesquisas Atlas e XP/Ipespe, o Planalto avaliou que para continuar com o apoio de parte do empresariado —e manter alguma chance eleitoral em 2022— é preciso vacinar. O problema é que agora o país ainda luta no mercado mundial para conseguir os imunizantes.
O ostracismo vivido por Zé Gotinha até esta semana se traduz em números: de acordo com dados obtidos via Lei de Acesso à Informação pela agência de dados Fiquem Sabendo, o investimento em campanhas de imunização feitas pelo Governo caiu 36% em dois anos. Em 2018 foi gasto 71,5 milhões de reais, no ano seguinte foram 58 milhões de reais e, no ano passado, 45,7 milhões de reais. Correndo contra o tempo, o Planalto contratou em janeiro uma agência para produzir vídeos publicitários sobre a vacinação contra a covid-19. O material, que ainda está sendo elaborado, deve custar 50 milhões e contar com o mascote Zé Gotinha.
A relação de Bolsonaro com o mascote não é das melhores. Desde o início da pandemia, em março de 2020, o mandatário sempre deixou claro o seu desprezo pelas vacinas, em especial a Coronavac, chamada por ele de forma preconceituosa de “vacina chinesa”, produzida no Instituto Butantan com a chancela de seu rival político João Doria, governador de São Paulo. Antes do retorno do Zé Gotinha de fuzil, alguns internautas tentaram emplacar um novo mascote, o Capitão Cloroquino, personagem que —assim como o presidente fez— defende o uso de medicamentos sem comprovação científica contra a covid-19. Não vingou.
O presidente já esteve cara a cara com o Zé Gotinha. Foi em dezembro de 2020, durante evento de lançamento do Plano Nacional de Imunização em Brasília. De um lado, o presidente negacionista, sem máscara, cercado por seus ministros, todos sem a devida proteção. Do outro, o mascote que ajudou a vacinar gerações de brasileiros. Com máscara. Sorridente, Bolsonaro se aproxima e estende a mão. Cumprindo o protocolo sanitário da Organização Mundial de Saúde, Zé tenta dar o bom exemplo, repele o aperto de mãos e faz um sinal de positivo com o polegar para cima, mantendo assim o distanciamento social e evitando contato físico desnecessário, seguindo as melhores práticas sanitárias. O presidente não se deu por vencido, e abraçou o mascote com um dos braços.
Uma marca de sucesso
Zé Gotinha é um personagem que coleciona títulos. A caminhada rumo ao primeiro deles começou em 1986. Foram oito anos até que a vitória veio, em 1994, com o certificado de erradicação da doença responsável pela paralisia infantil —representado pelo vilão Monstro Perna de Pau nas propagandas da TV. De lá para cá o boneco alvo e sorridente, símbolo do Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde, acumulou mais vitórias do que o Canarinho amarelo da seleção brasileira de futebol: foram dezenas de campanhas de imunização ao longo de mais de três décadas, contra gripe, tétano, sarampo, rubéola... Mas aí veio 2020 e Zé Gotinha se viu enredado em disputas políticas e sem poder trabalhar por falta de vacinas contra o novo coronavírus.
Mais do que um mascote, Zé Gotinha se tornou símbolo de um programa de saúde pública forte e eficiente, um caso de sucesso que fez do país uma potência global em coordenação logística e campanhas de vacinação. Com milhares de postos de saúde espalhados pelos municípios brasileiros, a capilaridade do Sistema Único de Saúde faz com que o Brasil tenha a capacidade de vacinar até 60 milhões de pessoas por mês, segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária. O mascote chegava a aldeias remotas de Roraima, atendia comunidades ribeirinhas isoladas no Amazonas e também levava imunizantes aos menores municípios do interior cearense. Para efeito de comparação, os Estados Unidos, que começaram sua campanha de imunização contra a covid-19 em dezembro, atingiram apenas em março a marca de 82,5 milhões de vacinas aplicadas. Mas sem vacinas, o Brasil ainda engatinha: foram 8,7 milhões de pessoas imunizadas com ao menos uma dose contra o novo coronavírus até a segunda semana deste mês.
O personagem foi criado com o objetivo de aproximar o público infantil do universo das vacinas, frequentemente associado a agulhas, injeções e dor. O imunizante contra a poliomielite foi um dos primeiros a ser aplicado em gotas —daí o formato de coxinha da cabeça do Zé. Seu nome foi escolhido em concurso com crianças de todo o país. Já batizado, o personagem estrelou desenhos animados, estampou cartazes, ganhou música da Xuxa e marcou presença nos postos de vacinação e unidades básicas de saúde do país. Posteriormente ele ganhou uma família de Gotinhas em uma tentativa de ampliar o escopo de sua popularidade para outras parcelas da população, como os idosos, alvo de campanhas de imunização contra a gripe, e as gestantes.
Lula não foi o único saudoso do mascote. Em uma live em fevereiro o presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Carlos Eduardo de Oliveira Lula, foi além, e afirmou que o mandatário está “matando” o mascote, como uma metáfora para se referir à inação do Governo no combate à covid-19. “A postura do Bolsonaro vai afetar todo tipo de vacinação. Bolsonaro está matando o Zé Gotinha”, disse. Bom, agora ele está de volta. E armado até os dentes.
Apoie a produção de notícias como esta. Assine o EL PAÍS por 30 dias por 1 US$
Clique aquiInscreva-se aqui para receber a newsletter diária do EL PAÍS Brasil: reportagens, análises, entrevistas exclusivas e as principais informações do dia no seu e-mail, de segunda a sexta. Inscreva-se também para receber nossa newsletter semanal aos sábados, com os destaques da cobertura na semana.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.