Como a pólio deixou de aterrorizar o mundo, e outros momentos em que a ciência venceu a morte
Da expedição de Balmis para levar a vacina da varíola para todo o mundo à fabricação maciça de penicilina na Segunda Guerra, a humanidade superou desafios como os que a covid-19 apresenta agora
Em meados do século passado, uma doença deixava os pais com medo de que seus filhos saíssem de casa, e os hospitais não davam conta de tantos pacientes com insuficiência pulmonar. A poliomielite foi o terror de várias gerações. “Os seres humanos não entendem os números, mas se um filho seu ficar paralisado, o efeito psicológico é enorme”, diz Raúl Andino, pesquisador da Universidade da Califórnia que acaba de liderar o desenvolvimento de uma nova vacina melhorada contra a pólio, um vírus que ataca a medula espinhal e provoca paralisia parcial irreversível, sobretudo nas extremidades inferiores. Antigamente não se sabia que era transmitida por restos fecais, principalmente através da água. Havia quem achasse que a culpa era de gatos de rua. Tudo mudou com a chegada da vacina de Jonas Salk (1955) e posteriormente com a do também norte-americano Albert Sabin (1962).
A humanidade já enfrentou outros grandes desafios antes da covid-19. Sempre, junto com as epidemias e o medo, havia a enorme tarefa de pôr o maquinário científico para andar em um prazo recorde, embora nunca tão rapidamente como agora. Desta vez, o desafio está naquela que será a maior campanha de vacinação da história, baseada justamente em precedentes como o da pólio. Salk levou sete anos para achar a imunização, e ainda hoje a doença não foi totalmente erradicada. Surgem casos a cada ano no Afeganistão e Paquistão. A covid-19 já possui duas vacinas em menos de um ano e não está claro se desaparecerá ou ficará como vírus sazonal.
A pólio mobilizou os maiores ensaios clínicos feitos até então. O de Salk envolveu 1,6 milhão de crianças nos Estados Unidos. Sabin, de ascendência polonesa, recorreu à União Soviética em plena Guerra Fria para testar sua vacina oral em 10 milhões de indivíduos. Dora Vargha, historiadora da ciência ligada à Universidade de Essex (Reino Unido), relata em seu livro Polio Across the Iron Curtain (“a pólio no outro lado da Cortina de Ferro”) como a luta contra esta doença levou a uma colaboração entre especialistas de ambos os lados. “No caso da covid-19, também vi muita colaboração, eliminou-se a ideia do grande gênio trancado em seu laboratório”, aponta Andino.
No primeiro ano de imunização, mais de 30 milhões de crianças norte-americanas receberam a vacina, o que fez os casos detectados caírem de 30.000 em 1955 para 5.000 em 1957. Figuras públicas como Elvis Presley receberam sua dose de forma pública para dissipar as dúvidas da população, assim como agora estão fazendo mandatários como o presidente-eleito dos Estados Unidos, Joe Biden.
Na Espanha da ditadura franquista, as primeiras doses só chegariam 10 anos depois. Segundo a pesquisa das professoras María Isabel Porras, María José Báguena e Rosa Ballester, cerca de 2.000 pessoas eram infectadas por ano no país europeu, sendo 91% delas menores de cinco anos. Ainda hoje, a eliminação da pólio continua sendo o objetivo para o qual a Organização Mundial da Saúde (OMS) destina mais dinheiro em seu orçamento anual.
O fim da varíola
A história está repleta de lutas do ser humano contra a morte. A varíola acabou com a vida de príncipes e plebeus, até que em 1980 a OMS declarou que a humanidade tinha erradicado pela primeira vez uma doença infecciosa, que provocava horríveis deformações e cuja letalidade podia alcançar 60%. O cientista Edward Jenner descobriu a vacina em 1796 ao inocular em seres humanos uma dose do vírus extraído das vacas. José Vicente Tuells, professor da Universidade de Alicante (leste da Espanha) e especialista em vacinas, conta que “no dia em que Jenner publicou seu livro os boatos começaram. Como a origem da vacina estava nos úberes das vacas, diziam que a intenção era minotaurizar a sociedade”.
A desconfiança com a vacina contra a varíola também chegou ao Brasil, com a famosa Revolta da Vacina. A insurreição tomou as ruas do Rio de Janeiro em novembro de 1904 motivada pela lei que forçava toda a população a se vacinar, com pena de prisão para quem fugisse dos vacinadores. A então capital do país assistiu a atos de vandalismo, saques, incêndios, pancadarias, tiroteios e mortes durante seis dias ininterruptos. Documentos históricos guardados no Arquivo do Senado mostraram recentemente que interesses políticos não declarados se aproveitaram da questão de saúde pública e fustigaram os cariocas a partir com tudo para o quebra-quebra.
A logística da vacina da covid-19 exige supercongeladores, um exército de profissionais preparados e infraestruturas. Mas não será, nem de longe, o desafio mais complexo da história para levar uma vacina aos necessitados. Em 1803, o médico Francisco Javier Balmis partiu de A Coruña (noroeste da Espanha) com 22 órfãos, na que é considerada a primeira grande expedição médica da história. O método que o médico achou para que o antídoto contra a varíola chegasse ao outro lado do oceano foi inocular o vírus nas crianças ao longo de todo o trajeto, de duas em duas. Deste modo, o médico pôde extrair líquido das pústulas frescas para começar a imunizar quando alcançaram seu primeiro destino: a Venezuela. Depois, continuou pelo México e chegou até a China, passando pelas Filipinas. Todo o trajeto foi acompanhado de crianças que portavam o remédio dentro de si. “Com a eliminação, fechamos o ciclo. A varíola se propagou pelo mundo à velocidade de dromedário, o coronavírus se propaga à velocidade de um avião”, comenta Tuells, que passou madrugadas inteiras reunindo informação sobre a vida de Balmis.
Tuells fala de como os grandes avanços ocorrem em prazos cada vez mais curtos: “Jenner comunica suas descobertas em um livro; Salk, em uma entrevista coletiva um ano depois de seu ensaio clínico. Os avanços da covid são comunicados diretamente por uma nota de imprensa dos laboratórios farmacêuticos”.
A história também está repleta de façanhas que chegaram só para alguns poucos. Algo que muitos também temem que ocorra com a vacina da covid-19. Os primeiros países a injetarem as doses da Pfizer e Moderna foram o Reino Unido e os Estados Unidos, mas aqueles com menos recursos talvez só recebam as imunizações em 2022. A malária é uma doença do passado no mundo desenvolvido, mas ainda do presente nos países mais pobres. “Na década de 1950 houve uma primeira tentativa de erradicação por parte da OMS, da qual muitos países ficaram de fora. Depois houve um período em que cada país teve que se virar como podia para acabar com ela”, diz Quique Bassat, pediatra e pesquisador do Instituto de Saúde Global de Barcelona. Já na década de 2000, a OMS retomou uma estratégia mundial para combater a malária. Este plano permitiu que em 15 anos o número de mortes por essa doença caísse em 60%. Mas a falta de financiamento e vontade política afasta o objetivo —que em algum momento pareceu tão próximo— de que esta doença seja erradicada.
A Itália, que no final da década de 1940 registrava 20.000 casos anuais de malária, assumiu como tarefa estatal a produção e venda dos medicamentos contra esse mal, que podiam ser adquiridos em bancas de jornal e até misturados ao chocolate. O Governo também mapeou o país em busca das larvas dos mosquitos transmissores e criou enormes brigadas armadas com inseticida para destruí-los. O último contágio nativo ocorreu em 1965, e em 1971 a OMS declarou a Itália livre de malária.
As guerras quase sempre andam de mãos dadas com os grandes avanços científicos. Durante os conflitos do século XX, todos os governos com recursos para isso criaram planos de combate à malária. Deles saíram centenas de pesquisas e novos medicamentos. A Segunda Guerra Mundial também contribuiu para a fabricação maciça da penicilina. “Como no caso da covid, também surgiu de uma colaboração público-privada. A penicilina foi descoberta por Fleming na universidade, mas foi a Pfizer que criou grandes contêineres para produzi-la em massa nos Estados Unidos”, detalha Rafael Camarillo, da Universidade da Castela-La Mancha.
Em seis meses, a Pfizer despachou 14 contêineres de 28.500 litros de capacidade. Quando do desembarque na Normandia, em 6 de junho de 1944, os aliados dispunham de 2,3 milhões de doses de antibiótico. “No princípio, só os soldados e os ricos tinham acesso, e inclusive havia contrabando. Nos cinco anos seguintes, a produção se multiplicou por dez e foi possível abrir o consumo ao mercado”, detalha Camarillo. A penicilina foi uma autêntica arma de guerra secreta.
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