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Dalcolmo: “Em vez de perder tempo com vacina privada, Brasil precisa de diplomacia para comprá-las”

Pesquisadora da Fiocruz diz que país precisa fechar e vacinar 150 milhões até o meio do ano para não inviabilizar imunidade coletiva. “Perderemos muitos jovens, mesmo sem comorbidades”

Margareth Dalcolmo
A médica Margareth Dalcolmo, pneumologista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).PETER ILICCIEV (Fiocruz)

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A médica pneumologista Margareth Dalcolmo (Espírito Santo, 1955) está na linha de frente do combate à covid-19 no Brasil desde o início da pandemia de coronavírus, tornando-se uma das principais vozes de referência sobre o assunto. Pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ela prevê um mês de abril “realmente trágico” para o Brasil, com uma transmissão “extremamente alta” e uma vacinação “aquém do desejável”. O país registrou um recorde de 4.195 mortes em 24 horas nesta terça-feira. A especialista explica, em entrevista por telefone, que o Programa Nacional de Imunizações (PNI) precisa vacinar 150 milhões de pessoas até o meio do semestre “para que consigamos ter uma imunidade comunitária adequada”. Até o momento, pouco mais de 20 milhões de brasileiros, cerca de 10% da população, recebeu a primeira dose do imunizante.

A isso se soma a necessidade de o país promover um confinamento rígido por duas ou três semanas, no mínimo. “Mesmo que estivéssemos neste momento imprimindo um ritmo de vacinação ideal de duas milhões de doses por dia, ainda assim seria necessário mantermos medidas de distanciamento social. A vacina sozinha não é um milagre”, destaca. Para isso, ela diz, se faz necessário também um auxílio emergencial suficiente para que as pessoas fiquem em casa. “Tem que parar com essa conversa falsa, essa dicotomia, que auxílio emergencial é uma questão da economia. Não é, é da saúde pública.”

Pergunta. Março registrou mais de 60.000 mortes por covid-19. O que podemos esperar para o mês de abril?

Resposta. Podemos esperar um mês de abril muito triste, muito grave. A taxa de transmissão está extremamente alta. E quem está causando doenças são as novas variantes, o que significa que muita gente jovem está adoecendo, e não necessariamente com comorbidades. Mudou o perfil de pessoas que demandam assistência e a pressão no sistema hospitalar segue muito alta. Isso é muito grave, porque vamos ter morte numa faixa etária mais jovem, numa fase muito produtiva das vidas. Acho que o mês de abril será realmente trágico para o Brasil, porque isso se acompanha de um ritmo de vacinação ainda aquém do desejável.

P. É razoável pensar num cenário de 5.000 mortes diárias?

R. Matematicamente é possível. O que propiciaria isso ocorrer? Manter uma transmissão muita alta, sem fechamento de nada, todo mundo circulando, transporte coletivo funcionando... Nesse caso podemos chegar, sim, porque há um exaurimento do sistema saúde. Há também outras doenças que não estão sendo tratadas adequadamente. Estão sendo negligenciadas. Muita gente vai morrer e não é de covid-19, mas sim de outras doenças. Por isso a situação no Brasil é muito trágica.

P. Uma pesquisa diz que três semanas de confinamento rígido é o tempo necessário para que comece a existir um efeito significativo e se reduza as mortes pela doença. Afinal, o que precisa ser feito?

R. O Brasil precisa fechar por duas semanas pelo menos, ou três, para diminuir a circulação do vírus. Quando disse isso pela primeira vez, as pessoas disseram que eu estava fazendo apocalipse, mas não, eu estou sendo realista. Os epidemiologistas nos ensinam muito bem. Uma doença que se transmite com a facilidade com que a covid-19 se transmite, que não é de uma pessoa para outra, mas de uma pessoa para várias outras mesmo estando assintomático, é muito séria. E temos que realmente vacinar muita gente e muito rápido. Há estudos recentes mostrando que quanto mais gente vacinada, você consegue influenciar a transmissão inclusive nos não-vacinados, suavizando a taxa de transmissão na comunidade. Isso é muito interessante. Mas, para isso, precisaríamos ter vacina, e nós não temos vacina. E tem outras coisas que parecem detalhes, mas não são. O uso de máscaras... As máscaras precisam ser adequadas, não podem ser essas máscaras que não filtram nada e que as pessoas estão usando.

P. Temos imunizantes de eficácia mais baixa, o que exige uma cobertura de vacinação bastante ampla. Mas a vacinação ocorre lentamente. Existe o risco de inviabilizarmos a imunidade coletiva?

R. Existe. Nós temos que implementar um novo ritmo de vacinação. Precisamos vacinar muita gente e muito rápido, para que consigamos realmente interferir nessa transmissão. Não adianta levar até o fim do ano para chegar a 70% da população brasileira vacinada. E não adianta dizer que basta vacinar 70 milhões. Isso está errado. Temos que vacinar 150 milhões de pessoas no Brasil para que consigamos ter uma imunidade comunitária adequada. E nós precisamos fazer isso até a virada do semestre. Nós poderíamos fazer, porque temos condição de vacinar mais de duas milhões de pessoas por dia no Brasil. O ritmo está está muito lento. É inadmissível que postos de saúde tenham fechado no feriado e que haja tanta restrição. Deveriam estar funcionando sábados e domingos, vacinando sem parar.

P. Os Estados começam a vacinar a população da faixa de 60 anos. Em que ponto da vacinação devemos chegar para que ela comece a surtir efeito no número de mortos?

R. Para diminuir o numero de mortes, não adianta só vacinar. Tem que isolar. Vacinar sozinho não vai resolver o problema. Mesmo que estivéssemos neste momento imprimindo um ritmo de vacinação ideal de duas milhões de doses por dia, ainda assim seria necessário mantermos medidas de distanciamento social. A transmissão da nova variante é muito rápida e muito fácil. Esse entendimento precisa ser feito. A vacina sozinha não é um milagre.

P. Como enxerga a movimentação no Congresso para que facilitar a compra de vacinas pelo setor empresarial? Um empresário ligado ao Governo Bolsonaro falou que o Ministério da Saúde poderia fazer a intermediação com as farmacêuticas, que não querem vender para o setor privado. O que acha?

R. É artificial. Ainda existe alguma ética no mundo. E uma ética internacional é que os produtores não vendem para setor privado, só vendem para governos. Ao invés de perder tempo com isso, o Brasil deveria resolver as questões de gestão diplomática, administrativa, política, e resolver as compras. Os Estados Unidos têm milhões de doses da AstraZeneca guardadas, sem usar, porque não foi aprovada pelo FDA [Food and Drug Administration]. Por que não doar para o Brasil? Depende de uma gestão. Erramos muito ao recusar a primeira oferta da Pfizer, ao não negociar com a Johnson & Johnson, ao não negociar uma proporção de população brasileira com o mecanismo Covax Facility... Negociamos doses para 10% da população apenas. Poderia ser negociado, 20%, 30% ou 40%, mas não fizemos.

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P. A gente depositou muita esperança na produção da Fiocruz, que vem reduzindo a estimativa de entrega. A que isso se deve?

R. Em primeiro lugar pelo atraso da entrega do envio de IFA. Houve erro do Brasil do ponto de vista diplomático, de negociação. Agora o problema está agravado pelo fato de que a pandemia cresce muito nos países asiáticos. Então a Índia não permite que o instituto Serum, que é o maior produtor de vacinas do mundo, envie doses prontas para fora do país. Estamos pagando o preço de não termos previsto o impacto que pandemia poderia ter no Brasil. Mas nós alertamos isso muitas vezes.

Além disso, a gente teve problema na máquina recravadora, que levou alguns dias para consertar... Produção de vacina é algo complexo e lento. E o processo da Fiocruz é diferente do que faz o Butantan, que já recebe [o insumo] num processo bastante adiantado... Nós estamos fazendo desde o início. Nós recebemos o IFA bruto. Fazemos todo o processo de descongelamento, processamento, envasamento, controle de qualidade... Isso é um processo mais lento e complexo. Agora, a partir desse mês, nós imaginamos que nosso cronograma pode entrar numa situação de mais conforto. A Fiocruz vai liberar 17 milhões de doses (seriam 22 milhões, mas está sendo realista) e, a partir da segunda quinzena de abril, vai entregar um milhão de doses por dia.

P. A Pfizer concluiu que sua vacina garante uma imunização por pelo menos seis meses. Está dentro do esperado? Seremos capazes de atualizar a vacinação caso necessário?

R. Não sei, acho que vai ser muito complexo. Não sabemos o quanto as vacinas que estamos usando serão eficientes para proteger e por quanto tempo, sobretudo com as novas variantes. Não sabemos responder a isso. Precisaremos de estudos de fase 4, de vigilância epidemiológica. Além disso, precisará ser feito estudo de vigilância genômica. Precisamos monitorar as cepas circulantes, quem são elas, se houve novas mutações, se são patogênicas ou não e se as vacinas serão capazes de cobri-las.

P. A senhora foi a primeira a alertar que a pandemia poderia rejuvenescer no país. Hoje, as novas variantes estão atingindo mais jovens. Qual será o saldo da pandemia no Brasil?

R. O saldo será muito trágico. Vamos perder muitos brasileiros em fases muito produtivas de suas vidas, e jovens, independentemente de ter comorbidades. Apenas pelo excesso de exposição, pela falta de distanciamento social e pela falta de cuidados individuais e coletivos. Quando você vê essas festas todas correndo aí, é realmente algo inacreditável.

P. A senhora está na linha de frente desde o começo. Imaginou que chegaríamos a esse cenário?

R. A gente sabia que a pandemia seria muito pesada. Já dava para prever que poderia haver uma segunda onda, como toda virose, e como foi com a gripe espanhola. Mas não que poderíamos ter uma segunda onda mais infectante, mais letal, como foi a gripe espanhola. E nós hoje já podemos prever inclusive a terceira onda. Os Estados Unidos já estão na quarta. Aqui estamos no pico da segunda onda. No norte já passou esse pico, Manaus já começa a declinar. Hoje, nossa grande preocupação é o resultado de tudo isso. A pessoa ou morre ou fica com muitas sequelas. Isso vai exigir um custo para o sistema de saúde muito grande. Tem muita gente precisando de reabilitação motora, neurológica, pulmonar... O custo disso vai ser muito grande no Brasil. A recuperação pós-covid é quase que uma especialidade médica.

P. Quais foram os momentos da pandemia de mais esperança e também de desesperança para a senhora?

R. De mais esperança foi quando vimos os resultados dos estudos de fase 3 das vacinas em tempo recorde, um feito humano extraordinário, sendo publicados. Isso deu uma enorme esperança. Sabíamos que uma virose respiratória não se resolve com remédio, mas com vacina. Sempre foi assim e possivelmente sempre será. O momento de maior desesperança é o que estamos vivendo agora. O Brasil empobreceu muito. Essa exclusão social toda tem feito muito mal a nós. Ela não nos desencoraja, seguimos mantendo o mesmo compromisso como profissionais da saúde, como professores, mas ela nos entristece muito. jovens Neste momento, estou engajada para manter as pessoas em casa, mas precisamos ter assistência financeira, comida. Tem que parar com essa conversa falsa, essa dicotomia, que auxílio emergencial é uma questão da economia. Não é, é da saúde pública. Enquanto essa dicotomia perdurar, seguiremos perdendo vidas. Precisamos assistir as pessoas para que elas possam aderir às normas sanitárias.

P. Alguns países, como o Reino Unido, já começaram um processo de reabertura segura. Na atual situação do Brasil, podemos ter esperança de uma volta à normalidade no segundo semestre?

R. Temos que ver o que chamamos de volta à normalidade. É muito difícil. A gente se refere a dezembro de 2019 quase como se fosse uma outra era. O ano de 2021 ainda será muito difícil no Brasil. É possível que no segundo semestre, se tivermos alcançado uma taxa de cobertura vacinal muito alta, nós consigamos abrir as escolas normalmente. Precisamos abrir as escolas, não podemos perder mais um ano letivo. Tenho defendido com muita veemência que os profissionais da educação precisam ser vacinados logo. São um grupo de alta prioridade.

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