‘Vidas negras importam’ chacoalha brasileiros entorpecidos pela rotina de violência racista
Movimento negro cobra adesão permanente da população branca ao debate racial, inspirada nos protestos antirracistas que reverberam dos Estados Unidos
Foi preciso uma onda de protestos antirracistas nos Estados Unidos para despertar parte da sociedade branca que fecha os olhos diante da violência policial, se acostumou a banalizar o genocídio de jovens negros nas favelas ou a ser complacente com a ausência de representatividade em posições de destaque no Brasil. Muita gente aderiu à versão brasileira de Black Lives Matter (Vidas negras importam), espalhando nas redes sociais hashtags como a #blackouttuesday, mas, além das campanhas de ocasião, o engajamento permanente pela causa antirracista ainda segue restrito às vozes do movimento negro.
“Acredito que ainda falta muita empatia com mortes de pessoas negras por parte de quem está afastado dessa realidade no Brasil”, observa o advogado Thiago Amparo, professor de políticas de diversidade na Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP). “Sempre há protestos de familiares, vizinhos da comunidade e atores de movimentos negros, mas pouca solidariedade de pessoas brancas participando desses atos e, principalmente, utilizando seus espaços de privilégios para mudar a situação. Ativismo digital é importante, desde que a gente também se manifeste de maneira mais contundente em nossas áreas de atuação, como cobrar das instituições jurídicas o controle da polícia ou que a imprensa cubra a dinâmica a das mortes de pessoas negras não só quando elas eclodem. Isso significa mostrar que vidas negras efetivamente importam.”
Em que pesem as campanhas pontuais pela internet, ativistas negros ressaltam que suas reivindicações históricas por meio da resiliência ao longo de décadas não podem ser interpretadas como efeito do que acontece nos Estados Unidos. “As pessoas estão dizendo que finalmente ‘os negros abriram os olhos’. Isso é de um grau de racismo e crueldade absurdo”, afirma Mônica Oliveira, membro da Coordenação da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco. “A luta do movimento negro no Brasil vem de séculos atrás. Se nós não tivéssemos nos organizado, jamais teríamos sobrevivido neste país que, desde a escravidão, opera um projeto sistemático de eliminação da população negra.” Neste domingo, 7 de junho, há manifestações antirracistas em defesa das vidas negras programadas para ocorrer em São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, entre outras.
Militante há 32 anos, Mônica diz que nunca viveu um momento tão “difícil e perigoso” no enfrentamento ao racismo, citando, ainda emocionada, o caso do menino Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, que, na última terça-feira caiu do 9º andar de um prédio em Recife. O garoto negro era filho da empregada doméstica Mirtes Renata, que havia deixado a criança sob os cuidados da patroa branca, Sarí Corte Real, esposa de Sérgio Hacker, prefeito de Tamandaré, no litoral de Pernambuco, enquanto levava o cachorro da família para passear. A empregadora, flagrada por câmeras de segurança deixando o menino sozinho no elevador, foi autuada por homicídio culposo (quando não se considera intencional) e liberada após pagar fiança de 20.000 reais. “Se fosse uma mulher negra acusada de matar uma criança branca por negligência, o rosto dela estaria estampado em todas as capas de jornais no mesmo dia do crime”, diz Mônica Oliveira, lembrando que o nome de Corte Real foi mantido em sigilo pela polícia pernambucana. Após três dias de silêncio, nesta sexta-feira, a empregadora pediu perdão à mãe da criança, em uma carta endereçada a ela. No mesmo dia, uma multidão se reuniu para protestar em frente ao edifício conhecido como Torres Gêmeas, onde ocorreu a tragédia.
Para a ativista, a ascensão de um político de extrema direita, com histórico de falas e atitudes racistas, expõe ainda mais a população negra às estatísticas da violência. “O presidente Bolsonaro autorizou um nível de explicitação do racismo maior do que antes e impulsiona racistas a saírem do armário.” Porém, ela aponta que, ao mesmo tempo, as ações de resistência se fortalecem para evitar retrocessos, a exemplo da Coalizão Negra por Direitos, que reúne mais de 150 organizações. “Estamos provando que nós, ativistas negros e negras, temos capacidade de transformar nossa solidariedade em atitude concreta.”
No ano passado, Bolsonaro nomeou Sérgio Camargo para presidir a Fundação Palmares, responsável por promover a cultura negra no país. Assim como o presidente, Camargo se posiciona contra a existência do Dia da Consciência Negra (20 de novembro), além de defender que a escravidão teria sido benéfica para os descendentes de africanos escravizados e que “racismo existe nos Estados Unidos, não no Brasil”. Recentemente, em um áudio vazado, ele aparece tachando o movimento negro de “escória maldita”. Em novembro, a Justiça Federal havia suspendido sua nomeação por entender que Camargo “ofende a população negra, a quem deveria defender”, mas, em fevereiro deste ano, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) derrubou a decisão e o reconduziu ao cargo. Nesta quarta, a Defensoria Pública da União entrou com pedido para afastar Camargo enquanto o STJ não julgar o caso em definitivo.
“Pela primeira vez, os racistas brasileiros estão se revelando na integralidade, a começar pela principal autoridade do país”, diz Zulu Araújo, ex-presidente da Fundação Palmares e atual presidente da Fundação Pedro Calmon, vinculada à Secretaria de Cultura da Bahia. O ativista baiano defende a formação de uma frente ampla contra o racismo, inspirada na mobilização dos Estados Unidos, para rebater as medidas ultraconservadoras do Governo. “Temos a oportunidade histórica de juntar pretos e brancos antirracistas nessa luta, algo que, depois de muito esforço, o movimento negro norte-americano conseguiu alcançar.”
Demonstrando incômodo com a mobilização antirracista nas redes, a influenciadora Luisa Nunes comentou em seu perfil no Instagram, nesta quinta-feira, que o racismo seria algo “natural”, já que, segundo ela, a maioria dos crimes é supostamente cometida por pessoas negras. “Vai ser sempre um instinto natural de defesa da gente, normal do ser humano, ter um pouco de racismo, julgar a pessoa pela raça”, disse a seus mais de 50.000 seguidores. Depois da repercussão negativa, ela apagou os vídeos e se retratou alegando não ser racista. “Na América Latina, o pacto estabelecido pela colonização ibérica instalou o fenômeno de culpar o negro pelo crime de ser discriminado”, diz Zulu Araújo. “Nossa sociedade foi forjada na naturalização da discriminação racial, tanto que, até hoje, há muita gente defendendo que não houve escravidão ou que ela não teria sido tão lesiva à população negra.”
No último fim de semana, em reflexo das manifestações iniciadas em Minneapolis após o assassinato de George Floyd, o Rio de Janeiro teve ato em homenagem a João Pedro, garoto negro de 14 anos alvejado pelas costas por um tiro de fuzil durante operação policial na favela do Salgueiro. Em Recife, entidades de enfrentamento ao racismo organizaram um protesto em frente à sede do TJPE nesta sexta reivindicando justiça pela morte de Miguel. “A questão racial no Brasil é ainda mais grave que nos Estados Unidos”, afirma Zulu, em referência à última edição do Atlas da Violência, que, no período de uma década, registrou aumento de 33% no número de pessoas negras assassinadas (ao todo, correspondem a 75% dos homicídios) no país onde 64% dos 13 milhões de desempregados são negros. “Não podemos mais aceitar a desumanização e o extermínio de corpos negros.”
Representatividade também importa
Um programa sobre racismo protagonizado por pessoas brancas. Na terça-feira, a edição do Em Pauta, na GloboNews, gerou críticas na internet por ter apenas jornalistas e comentaristas brancos debatendo a respeito da discriminação racial no Brasil. Em gesto de mea-culpa, a produção da Globo escalou uma equipe composta somente por profissionais negros para o programa, apresentado por Heraldo Pereira. Na atração, as jornalistas Aline Midlej, Flávia Oliveira, Maju Coutinho, Lilian Ribeiro e Zileide Silva compartilharam experiências a partir de atitudes discriminatórias que vivenciaram ao longo da carreira.
“Causa estranhamento um programa feito por apresentador e comentaristas negros porque, com o racismo à brasileira, nos acostumamos a normalizar ausências e a desigualdade”, afirma Thiago Amparo. “Foi muita bem-vinda essa atitude da GloboNews, mostrando a importância de se criticar e cobrar mudanças. Não dá pra falar da questão racial sem ter pessoas negras em pé de igualdade com pessoas brancas. Mas a promoção da diversidade tem de ir além do debate racial. As pessoas negras devem falar sobre todos os temas, de política internacional à economia. E os meios de comunicação precisam ser mais parecidos com a sociedade que os consomem.”
Um jornal histórico na Globo News pic.twitter.com/u5MqWdoUWl
— virei jornalista (@VireiJornalista) June 4, 2020
No mesmo dia em que a Globo virou alvo de cobranças pelo programa essencialmente branco, a CNN Brasil foi questionada ao vivo pela jornalista e ex-consulesa da França no Brasil, Alexandra Loras, por ter escalado William Waack para comentar sobre os protestos antirracistas nos Estados Unidos. Em 2017, o apresentador acabou demitido da Globo após vazamento de um áudio em que proferia comentários racistas. No ano seguinte, em artigo publicado na Folha de S. Paulo, ele pediu desculpas pelo que chamou de “gracejo circunstanciado” e afirmou não ser racista. “Hoje vejo o William Waack, mandado embora por um episódio de racismo, debater tanto tempo sobre racismo… A CNN e toda mídia brasileira têm o poder de convidar acadêmicos negros para conversar sobre essa temática [racial]”, criticou Loras no programa CNN 360º.
Em defesa da representatividade nas universidades, perfis de redes sociais têm se mobilizado para expor fraudadores de cotas raciais, que consistem em denunciar alunos brancos que passaram no vestibular de universidades públicas inscritas em reserva de vagas para negros ou indígenas. Apesar de uma das principais contas de exposição ter sido removida pelo Twitter, o movimento gerou reação de instituições de ensino, caso da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que, em nota, explicou que, no início deste ano, substituiu a autodeclaração pela análise de uma comissão interna de heteroidentificação. A banca também é responsável por apurar fraudes no sistema de cotas.
“As redes sociais deram impulso às demandas do movimento negro, que, pelo fato de não ter muitos recursos, se aproveita bastante dessas ferramentas mais acessíveis”, diz Mônica Oliveira. “A estratégia de visibilizar fraudadores é importante para que se cumpra a lei. Por se tratar de um crime, a pessoa branca que se forma com o benefício das cotas deveria perder o diploma.” Além das ações em rede, o movimento negro brasileiro busca fomentar campanhas permanentes de apoio à causa, como a Seja Antirracista, que tem colhido assinaturas de pessoas e empresas em nome de um compromisso de longo prazo na luta contra o racismo. “Não precisamos de mais pessoas negras morrendo para ter um engajamento contínuo na pauta racial”, prega a campanha.
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