A espiral bizarra que dá a Bolsonaro o controle da agenda pública
Nos últimos dias, Executivo Federal apostou por nomes na Cultura com posicionamentos extremados que atraíram os holofotes, como a nomeação de Sérgio Nascimento de Camargo como presidente da Fundação Palmares. Juiz federal do Ceará suspendeu nomeação por ofensas ao movimento negro
Dante Mantovani, o presidente da Fundação Nacional das Artes que liga o rock ao aborto e ao satanismo e acredita que os Beatles surgiram para implantar o comunismo. Sérgio Nascimento de Camargo, o nome para a Fundação Palmares, entidade responsável por promover a cultura de matriz africana, que ataca o movimento negro e não acredita que o racismo estrutural seja um problema. Rafael Nogueira, o escolhido para comandar a Biblioteca Nacional que é seguidor de Olavo de Carvalho e associa o compositor Caetano Veloso ao analfabetismo. Roberto Alvim, o novo secretário da Cultura que, apesar de ser diretor de teatro, afirma que a classe teatral é “podre” e afirma chama atriz Fernanda Montenegro de sórdida.
Jair Bolsonaro, o presidente da República que acusa o ator norte-americano Leonardo DiCaprio de financiar ONGs que, segundo suas palavras, promovem as queimadas na Amazônia.
O bombardeio de nomeações controversas e declarações infundadas ― e na maioria das vezes bizarras ― dão a tônica do noticiário brasileiro há mais de 12 meses, num looping em que imprensa e classe política ainda tateiam como reagir. Nesta quarta-feira, o juiz Emanuel José Matias Guerra, da Justiça Federal do Ceará, acatou um pedido de ação popular e suspendeu a nomeação de Camargo, sob o argumento de que suas declarações ofendem a população negra, justamente a que seu órgão deve proteger. Autoproclamado “negro de direita”, chegou a dizer nas redes sociais que o racismo no Brasil é “nutella” e que a escravidão foi benéfica para os descendentes dos negros escravizados. Uma declaração que, após permear os meios de comunicação no fim da última semana, voltou à televisão e páginas de jornais após a decisão da Justiça. É um bombardeio que disputa os holofotes dos acontecimentos que impactam a vida da população. A notícia da morte de nove jovens da favela de Paraisópolis, em São Paulo, vítimas da truculência policial durante operação num baile funk, dividiu as atenções no fim de semana com expressões como “terrabolismo” e “racismo nutella”, lançadas por Mantovani e Camargo, respectivamente, e que viralizaram nas redes sociais. Ao menos dessa vez não foram páreo, aparentemente, para a comoção gerada após a morte dos garotos.
O mais grave é que ainda falta elementos para saber o quadro completo de o quanto, além de domínio da agenda pública, a ofensiva de declarações e radicalização já se reflete no dia a dia das instituições e nas políticas públicas. No caso da Cultura, há relatos de mudança de protocolo que resvalam em censura direta, sem falar no estímulo a autocensura de empresários e empresas ligadas ao setor. Na Funai e no Ibama, a desmoralização dos quadros também é patente.
O controle da agenda pública tem método e estratégia, acusou nesta quarta-feira a deputada federal Joice Hasselmann (PSL) na CPMI das Fake News no Congresso. Joice, eleita pelo PSL e ela própria difusora de boatos e fake news durante a campanha, agora rompeu com os filhos do presidente. Embora se diga paradoxalmente fiel ao Planalto, afirma querer contar o que sabe sobre a estratégia para redes de ataques, inclusive sugerindo que há uso de dinheiro público. “De onde vem esse dinheiro? Não estamos falando de trocado, estamos falando de milhões", lançou. “Eu quero crer que o presidente não sabe disso.” Segundo afirmou, os perfis do presidente Bolsonaro e do deputado federal Eduardo Bolsonaro no Twitter contam com quase dois milhões de perfis falsos ― robôs ― que começam a propagar de forma massiva informações falsas e linchamentos a figuras públicas. A ordem para que isso aconteça parte de um grupo de assessores ― o chamado “gabinete do ódio” ― que trabalham dentro do Palácio do Planalto. Entre os que autoriza a propagação de falsidades está outro filho do presidente, o vereador Carlos Bolsonaro, a quem ela ainda acusou de ter planejado criar uma “Abin paralela.”
Impor velhas palavras no debate público
Se em 2018 a “mamadeira de piroca” invadiu o noticiário, algo ainda surpreso com a ousadia e o alcance das mentiras, 2019 se mostrou o ano em que a extrema direita, no poder, testou e forçou os limites do aceitável no debate público. Nos doze meses que se encerram no dia 31, recuperou-se o Ato Institucional de número 5 (AI-5) não como um termo histórico, mas como num hipotético e ameaçador exercício de futuro. O decreto que, em dezembro 1968, radicalizou a ditadura militar brasileira (1964-1985) e institucionalizou o terror promovido pelo Estado, já foi mencionado publicamente duas vezes por autoridades importantes. O primeiro foi Eduardo Bolsonaro, deputado federal por São Paulo e o filho zero três do presidente. “Se a esquerda radicalizar a esse ponto, a gente vai precisar ter uma resposta. E uma resposta pode ser via um novo AI-5, pode ser via uma legislação aprovada através de um plebiscito como ocorreu na Itália. Alguma resposta vai ter que ser dada”, disse em uma entrevista no final de outubro, ao ser questionado sobre o risco de que os protestos no Chile se repetissem no Brasil.
O último a mencionar essa possibilidade foi o ministro da Economia Paulo Guedes. Em coletiva de imprensa em Washington na semana passada, repetiu a ameaça de um novo AI-5 em caso de protestos nas ruas contra as medidas econômicas do Governo. “Não se assustem então se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente? Levando o povo para a rua para quebrar tudo. Isso é estúpido, é burro, não está à altura da nossa tradição democrática”. Em seguida, afirmou que Bolsonaro não está com medo de que a soltura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva seja um obstáculo às reformas. “Ele só pediu o excludente de ilicitude. Não está com medo nenhum, coloca um excludente de ilicitude. Vam’bora".
Nesta quarta-feira, o ministro da Justiça, Sergio Moro, afirmou, em evento dos jornais O Globo e Valor Econômico, que houve reação desproporcional à fala de Guedes. Assim, discussões até pouco tempo impensáveis acabam se normalizando na arena pública, sendo usadas sem problema até pela pessoa mais popular do país, enquanto Rodrigo Maia, presidente da Câmara, tenta atuar como um frágil muro de contenção, brandindo condenações.
A campanha aberta pelo AI-5 e os saudosismos antidemocráticos, além de distrair e ultrajar parte da elite intelectual, também se torna caldo de cultura da normalização de medidas concretas propostas pelo Governo. Dados indicam que a violência policial cresce em todo o país. Especialmente no Rio de Janeiro, onde até outubro os policiais já haviam matado mais que em qualquer ano desde 1998, quando a contagem oficial começou. Paralelamente a isso o Governo tenta emplacar no Congresso o aumento do excludente de ilicitude ― algo que especialistas vem apontando como licença para matar ― para militares e agentes agindo sob decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Por sua vez, Moro tenta convencer os deputados a voltarem a incluir em seu pacote anticrime trechos retirados na Comissão de Segurança Pública da Câmara. Entre eles, a parte que também aumenta a brecha para que policiais que matam ou cometem excessos fiquem impunes.
A situação brasileira não chega a ser nenhuma novidade e, por isso mesmo, soa tão desanimadora. Os Estados Unidos começam a embarcar em uma nova campanha eleitoral na qual Donald Trump concorrerá à reeleição e, lá, a imprensa, mesmo a crítica ao presidente, não conseguiu se livrar da armadilha de discutir por dias a fio o desejo do norte-americano de comprar a Groelândia...
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