Censura, um efeito cascata que corrói a arte no Brasil de Bolsonaro
Discurso contra financiamento público de obras com temática de gênero, cortes de recursos e polêmicos cancelamentos de espetáculos alimentam o receio de intervenção em meio à classe artística
Faltavam cinco minutos para a entrada do público que assistiria à apresentação das 18h do espetáculo teatral Abrazo, na Caixa Cultural do Recife, quando a companhia Clowns de Shakespeare foi avisada de que a sessão estava cancelada. A peça, que aborda temas como repressão e censura, foi banida pela instituição sem qualquer diálogo. Montada em 2014 na onda da efeméride dos 50 anos do golpe militar brasileiro, o espetáculo já havia circulado por cerca de 20 Estados nos últimos cinco anos. A apresentação cancelada seria a segunda daquele mesmo dia, 7 de setembro. Clowns de Shakespeare havia fechado um contrato com a Caixa para fazer uma temporada de oito apresentações da peça no Recife e em Curitiba, pelas quais receberia 220.000 reais. O mesmo edital também previa rodas de conversa e uma oficina.
Naquela tarde, após a primeira apresentação, o grupo realizou com o público o bate papo acordado. Respondeu a perguntas que iam de questões técnicas relacionadas à obra a reflexões sobre a atual conjuntura brasileira. "Conversamos sobre o golpe [se refere ao impeachment da ex-presidenta Dilma], sobre um Governo eleito pelo voto, mas que opera no território do preconceito. Debatemos questões políticas, mas foi um bate papo corriqueiro", conta o diretor artístico do grupo, Fernando Yamamoto. Alguns dias depois, a companhia foi informada de que o contrato estava cancelado. Nenhuma das sete apresentações previstas poderiam acontecer. O motivo, segundo a Caixa: o grupo havia infringido uma cláusula do contrato, que proibia que se falasse de forma negativa dos patrocinadores.
A decisão da Caixa Cultural em cancelar o espetáculo Abrazo se soma a outro caso que tem alimentado uma narrativa do medo da volta da censura no Brasil, difundida principalmente nas redes sociais. A Companhia Dos à Deux ganhou um edital semelhante para mostrar seu repertório —desta vez na sede da Caixa em Brasília, entre 18 e 22 de setembro. A companhia acordou, em 13 de agosto, que seriam encenados os espetáculos Aux Pieds de la Lettre, uma produção sobre a loucura, e Gritos, peça na qual uma personagem travesti aparece nua em uma das cenas. O grupo de teatro enviou previamente todos os documentos para a contratação das obras, assim como os materiais de divulgação. No início de setembro, a Caixa Cultural solicitou especificamente a sinopse de Gritos e, ao recebê-la, pediu mais detalhes sobre o espetáculo, algo que não ocorreu naquele momento com o outro espetáculo. Dias depois, pediu vídeos completos das duas obras e, em seguida, sugeriu a substituição de Gritos. Sem explicar o porquê.
A Companhia Dos à Deux afirma que se viu "obrigada a excluir o espetáculo do projeto". Como não havia tempo hábil e recursos logísticos para a substituição, os dois lados decidiram que apenas Aux Pieds de la Lettre seria levado aos palcos e que um workshop e uma roda de conversa compensariam a retirada da segunda obra. Após o acordo, a companhia foi avisada de que o contrato só poderia ser assinado quando houvesse aprovação do superintendente da instituição. A Caixa Econômica Federal é dirigida por Pedro Guimarães, presente na equipe do presidente Jair Bolsonaro desde o período de transição de Governo.
As duas companhias de teatro que tiveram suas obras questionadas afirmam que em algum momento do diálogo envolvendo o edital houve a participação de superiores do banco. Em nota, a Caixa Cultural, que reforçou seu o apoio cultural em todas as temáticas e o investimento de 17 milhões de reais em 150 projetos somente no edital que contemplou as duas companhias, disse que o processo de seleção do programa "envolve etapas de avaliação por consultores externos com reconhecimento no meio cultural e por empregados da Caixa Cultural, os quais são empregados de carreira do banco e seguem as mesmas políticas e diretrizes da instituição."
O temor da censura velada
As suspensões e cancelamentos de espetáculos teatrais nas últimas semanas têm servido de combustível para alimentar um temor de instalação de uma censura velada em um contexto já turbulento para a cultura brasileira. O setor, que já vinha sofrendo sucessivos cortes de recursos nas gestões anteriores, contabiliza expressivas perdas no Governo Bolsonaro. O presidente extinguiu o Ministério da Cultura. Recentemente, incluiu na esteira de cortes orçamentários em distintas áreas o cancelamento de um edital de fomento de séries LGBT para TV pública e de programas de apoio à ida de realizadores brasileiros a festivais internacionais de cinema. O ultradireitista, que costuma ser incisivo nas declarações contra o que chama de "ideologia de gênero" e em defesa da ditadura militar, chegou a ameaçar extinguir a Agência Nacional de Cinema (Ancine) no último mês de julho, caso não pudesse filtrar as obras a serem financiadas pelo órgão público.
Entre produtores, instaurou-se um alerta de que esses cortes pudessem estar sendo utilizados indiretamente para evitar obras que vão de encontro às ideias conservadoras do presidente, ainda que sem uma determinação expressa dele. A questão ganhou tanta relevância que a censura foi tema de audiência pública na Câmara dos Deputados, na última quarta-feira. Produtores culturais acreditam que as declarações do presidente vêm repercutindo na ponta da cadeia cultural brasileira.
Quando o edital para séries LGBT foi cancelado, Bolsonaro comemorou o corte em uma live no Facebook. Citou especificamente o projeto Afronte, dirigido por Bruno Victor e Marcus Mesquita. A série previa cinco episódios sobre jovens negros e gays do Distrito Federal. "Confesso que não dá para entender. Então, mais um filme aí que foi para o saco”, afirmou o presidente. Bruno Victor diz não saber como Bolsonaro teve acesso ao seu projeto, já que a Ancine não havia divulgado a lista de selecionados oficialmente. "Foi uma censura ao vivo", analisa.
O diretor de teatro Fernando Yamamoto conta que, desde que a Caixa Cultural rescindiu o contrato com a Companhia Clowns de Shakespeare, tem recebido mensagens privadas de artistas com receio de se manifestar publicamente e perder financiamentos públicos em um contexto de poucos recursos e piores condições de trabalho. "No mínimo, há a implantação de uma autocensura, porque muitos artistas estão com medo de sofrer uma represália", analisa.
Impasse na Justiça
O caso da Clowns de Shakespeare foi parar na Justiça, onde a companhia tenta reverter a rescisão contratual. Na decisão comunicada ao grupo de Yamamoto, a Caixa afirmou que o teor da roda de conversa havia infringido o inciso VII da Cláusula Quarta do contrato, que determina o dever do grupo contratado em “zelar pela boa imagem dos patrocinadores, não fazendo referências públicas de caráter negativo ou pejorativo”. A instituição apenas disse ao grupo que tinha provas em vídeo, sem detalhar quais declarações haviam sido interpretadas como negativas ou pejorativas. Instado pelo Ministério Público Federal, a Caixa enviou um ofício no qual reproduz parte do diálogo entre o público e os atores. O documento aponta que os atores dizem ao público ter sofrido resistência ao apresentar o projeto do espetáculo para um edital "bem recentemente". "A gente sofre pedidos muitos específicos de vídeo do espetáculo, das projeções... coisa que nunca foi solicitado assim, questões do material de espetáculos ser muito analisado", comentou uma atriz do espetáculo, segundo o ofício da Caixa.
O grupo alega que não teve a oportunidade de se defender e que a decisão foi unilateral. Na última quarta-feira, o MPF recomendou à Caixa Cultural que retomasse o contrato sob o argumento de que a Constituição garante a livre manifestação do pensamento e que o cancelamento abrupto do contrato não deu ao grupo o direito de se defender. O órgão determinou um prazo de cinco dias para que a instituição responda se vai ou não acatar a decisão, sob o risco de sofrer outras providências administrativas. A Caixa confirmou ao EL PAÍS ter recebido a notificação e diz que responderá dentro do prazo legal.
Os advogados Rodrigo Salinas, Kátia Catalano e Ana Carolina Capozzi —que trabalham em um escritório especializado na área cultural— afirmam ser comum em contratos de patrocínio cláusulas que impedem o patrocinado de ofender a imagem ou a marca do patrocinador, incluindo a atuação empresarial do Estado. Em casos de editais de fomento direto e leis de incentivo à cultura, onde a Administração Pública não é patrocinadora do projeto, essa cláusula seria ilegal. Como a Caixa é uma entidade da Administração Pública Indireta, os advogados entendem que a apuração de eventual quebra de contrato dependeria de um processo administrativo prévio, com a possibilidade de defesa pelo patrocinado antes da aplicação de qualquer sanção.
Questionada pelo EL PAÍS sobre a retirada da peça Gritos de sua programação, a Caixa se limitou a dizer que selecionou o espetáculo Aux Pieds de la Lettre dentre todo o repertório do grupo. A instituição também não comentou sobre a repercussão de que houve censura no caso dos dois grupos de teatro. "A gente está no meio dessas perguntas todas. Não estamos acusando a Caixa de ter retirado o espetáculo, estamos questionando o que determina qual obra pode ou não ser mostrada. A Caixa Cultural foi parceira para que este projeto se realizasse. E tem um trabalho cultural importante neste deserto de recursos que estamos passando", afirma Artur Luanda Ribeiro, ator e um dos diretores da Companhia Dos à Deux. Diante da repercussão do caso na imprensa e nas redes sociais, a companhia divulgou uma nota na qual afirma não ter feito nenhuma postagem referente à execução do projeto na Caixa Cultural de Brasília. Ressalta ainda não ter enfrentado qualquer intransigência dos funcionários da instituição.
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