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‘Marighella’, na zona cinzenta entre cortes, problemas na Ancine e censura sob Bolsonaro

Produtores informam que longa não tem data de lançamento após negação de verba pública para distribuição e Carlos Bolsonaro celebra. Centralização decisória em agência de cinema acende alerta

Seu Jorge e Wagner Moura durante filmagens de 'Marighella'.
Seu Jorge e Wagner Moura durante filmagens de 'Marighella'.Ariela Bueno (Divulgação)

O cancelamento da estreia do filme Marighella, dirigido por Wagner Moura e estrelado por Seu Jorge, anunciado na quinta-feira por seus produtores, pôs mais combustível na crise da indústria audiovisual brasileira. No comunicado, os profissionais da O2 Filmes explicaram que a cinebiografia do guerrilheiro comunista Carlos Marighella "não conseguiu cumprir a tempo todos os trâmites exigidos pela Ancine (Agência Nacional do Cinema)" para conseguir uma verba pública para distribuição. Tanto a distribuidora do filme, Paris Filmes, quanto fontes da Ancine ouvidas pelo EL PAÍS afirmam que a produção, até o momento, não sofreu "pressões políticas" e que sua trajetória na agência transcorreu com normalidade, ainda que dificultada pela morosidade devido às turbulências administrativas na própria entidade. Somada às conversas com outros envolvidos no entorno do filme, Marighella surge preso em uma zona cinzenta em que se misturam medo, cortes, problemas na Ancine e a ameaça de censura do Governo Bolsonaro.

Exibido no Festival de Berlim em fevereiro, o longa é uma produção inspirada na biografia de Marighella escrita pelo jornalista Mário Magalhães, que acompanha os últimos cinco anos de vida do guerrilheiro, do golpe militar de 1964 ao seu assassinato, em 1969. O cancelamento da estreia do filme acontece em meio os movimentos de Jair Bolsonaro para aumentar o controle sobre a Ancine e de críticas explícitas a produções culturais sobre temas que desagradam o Governo ultraconservador. Em julho, Bolsonaro chegou a cogitar a extinção da agência caso não pudesse criar um "filtro de conteúdo", visto como desejo claro de censura pelo setor audiovisual. Também criticou publicamente um edital destinado a TVs públicas para financiamento de filmes com a temática LGBT, que, logo depois, foi suspenso pelo Ministério da Cidadania. Nesta sexta, veio à tona que a Embaixada do Brasil em Montevidéu havia, no mínimo, recomendado a não exibição de um filme sobre Chico Buarque em um festival no Uruguai com apoio do Governo brasileiro.

No caso específico de Marighella, e, apesar de negada pelos produtores do filme, a narrativa de censura e a insinuação de que a produção descumpre regras é estimulada mesmo por pessoas próximas ao Governo, como o vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente, que, no fim de agosto, comemorou a decisão da Ancine negando recursos ao filme: "Noutros tempos, o desfecho seria outro, certamente com prejuízo aos cofres públicos", escreveu no Twitter.

O diretor Wagner Moura criticou a alusão de que havia "algo de errado" com a solicitação do filme e aventou a possibilidade de contaminação política na decisão da Ancine. "Não há nada de errado na deliberação da Ancine, mas acredito que, se o ambiente político fosse outro, a decisão da agência talvez tivesse sido outra", disse, segundo a revista Época. "De repente, a história ganhou uma outra dimensão. Os filhos de Bolsonaro tuitaram a respeito. É impossível não pensar que existe uma articulação política para criar esse tipo de ambiente", completou.

Em maio, Mário Magalhães já havia criticado a demora da estreia do filme (que foi rodado no início de 2018, antes das eleições) nas salas brasileiras, ao afirmar nas redes sociais que a produção pode estar sendo alvo de "obscurantismo dos novos censores". Na quinta-feira, com a confirmação do cancelamento da estreia prevista para 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, o biógrafo voltou a criticar a situação. "Este é filme que não consegue estrear no Brasil", escreveu, ao postar o trailer da produção.

Marighella —com cerca 2h40 de duração e orçado em 10 milhões de reais— recebeu investimento do FSA (Fundo Setorial do Audiovisual, administrado pela Ancine) de cerca de 3 milhões de reais, apoio que obriga os produtores a informar à agência a data de lançamento com pelo menos 90 dias de antecedência, para que a FSA possa custear também parte da distribuição no circuito comercial. A O2 Filmes diz que não comunicou essa data dentro do prazo porque o contrato com o FSA ainda não havia sido formalizado. A produtora solicitou, então, que a Ancine antecipasse a verba para comercialização, mesmo sem a assinatura do contrato. O pedido foi negado porque, de acordo com fontes da Ancine, a produtora possui pendências relativas a pedidos de prorrogação de prazos em outros projetos.

Fontes que acompanharam Marighella contaram ao EL PAÍS que os produtores e a distribuidora "estavam com o pé atrás" em relação ao longa, com receio de fechar portas com a Ancine e que haviam considerado um "lançamento médio", em cerca de 200 salas. Vera Zaverucha, ex-diretora da Ancine, não vê, a princípio, uma questão de censura. "Neste caso, não acredito em censura [por parte da Ancine]. Havia, sim, desde o princípio, um receio por parte dos próprios distribuidores em levar ao circuito comercial um filme como esse no atual contexto político do Brasil", comenta Zaverucha.

A O2 Filmes, no entanto, nega. “Os produtores haviam escolhido o mês de novembro, que marca os 50 anos de morte de Carlos Marighella, e o dia 20, da Consciência Negra, para a estreia. (...) Marighella segue sendo apresentado com muitos sucesso em vários festivais de cinema no mundo. Nosso objetivo principal sempre foi a estreia no Brasil. Os produtores e a distribuidora Paris Filmes vão seguir trabalhando para que isso aconteça", explicam em nota.

Mudanças na Ancine complicam cenário

Faz parte do quadro a situação da própria Ancine, que desde agosto está sem presidente. Christian de Castro, diretor-presidente da agência, foi afastado por ordem da Justiça Federal do Rio, porque é réu num processo que o acusa de usar informações sigilosas em uma guerra interna na entidade —ele nega irregularidades. A agência também sofreu cortes orçamentários e revisão de procedimentos para atender às demandas do TCU (Tribunal de Contas da União). O tribunal de controle exigiu, em maio, mudanças na prestação de contas da Ancine. "A Ancine é meio lesma, os processos são demorados e, ultimamente, com as trocas na direção, em que cada um imprime um ritmo, essa demora aumenta", comenta Vera Zaverucha.

Pessoas ligadas à Ancine consultados pela reportagem sob condição de anonimato explicam que os problemas burocráticos que acometeram o longa de Wagner Moura são comuns a outras produções maiores. Como exemplo, citam as produções infantis Turma da Mônica: Laços ou Detetives do Prédio Azul

As mesmas fontes explicam, no entanto, que mudanças recentes na agência reguladora podem aumentar ainda mais a fila de espera para receber fomento e dilatar os trâmites. Na última segunda-feira, 9 de setembro, os dois diretores em exercício, Alex Braga Muniz, diretor-presidente substituto, e Débora Ivanov determinaram que a análise de projetos inscritos em editais do FSA e em outras subvenções deve passar pela diretoria da Ancine —até então, essa análise era feita com autonomia pelos departamentos técnicos—. Para uma das fontes que conhece o processo na agência, a mudança, vai concentrar em apenas um dia da semana o que era deliberado todos os dias, com a "possibilidade de aplicação de 'filtros ideológicos' na seleção das produções que devem receber fomentos".

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