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Bolsonaro precisa de apoio do Congresso para levar adiante ameaças à Ancine

Presidente fala em "filtro" para financiamento de produções e em extinguir a Agência Nacional do Cinema, mas, sozinho, ele não tem esse poder

A atriz Deborah Secco em 'Bruna Surfistinha', de 2011.
A atriz Deborah Secco em 'Bruna Surfistinha', de 2011.Divulgação

Criticar obras e políticas públicas para a Cultura sempre esteve no radar do presidente Jair Bolsonaro. Durante a campanha eleitoral, ele prometia extinguir o Ministério da Cultura e rever a Lei Rouanet. Dito e feito: eleito, subordinou a pasta ao Ministério da Cidadania, e depois reduziu o teto de captação da Lei Rouanet de 60 milhões para 1 milhão de reais. Nessa esteira, a Agência Nacional do Audiovisual (Ancine) entrou na mira do presidente, que, na semana passada, ameaçou extingui-la caso o Governo não possa impor algum “filtro” sobre as produções audiovisuais brasileiras. A ameaça veio junto à redução do Conselho Superior de Cinema e sua transferência do Ministério da Cidadania para a Casa Civil. No final, o presidente ainda ventilou a possibilidade de mudar o escritório da Ancine do Rio de Janeiro para Brasília.

Para entender como essas medidas e ameaças podem afetar uma atividade que movimenta cerca de 25 bilhões de reais ao ano, segundo estimativas do setor, é preciso separar o que é viável e só depende do presidente e o que não, apesar dos ataques do Planalto, parte da guerra cultural conservadora que é chave em sua estratégia de comunicação. A Ancine e o Conselho Superior de Cinema foram criados em 2001 por Fernando Henrique Cardoso (PSDB), por meio de uma Medida Provisória e posteriormente regulamentados por lei. Originalmente, o conselho, órgão que desenvolve as diretrizes para o audiovisual, estava vinculado à Casa Civil, mas, em 2002, sob a gestão Lula (PT), passou para o Ministério da Cultura. Era formado por sete ministros e outros nove representantes de fora do Governo, sendo seis da indústria audiovisual e três da sociedade civil. Agora, o conselho volta à Casa Civil como era na sua criação, mantendo-se os sete ministros e reduzindo os membros de fora do Governo para três.

Com a nova formação, o ministro da Casa Civil Onyx Lorenzoni será o presidente do Conselho e os demais ministros que fazem parte são: Sergio Moro (Justiça), Ernesto Araújo (Relações Exteriores), Abraham Weintraub (Educação), Osmar Terra (Cidadania), Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia) e Luiz Eduardo Ramos (da secretaria do Governo). Caberá a Onyx indicar os membros da indústria e da sociedade civil. O que muda, portanto, é que o Governo passa a ter maioria na composição.

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Essas mudanças são as únicas que de fato ocorreram até o momento. O restante anunciado pelo presidente ainda está somente no plano das ideias. Extinguir a Ancine, como ameaça o presidente, não é uma tarefa simples. Para fazê-lo, seria necessária a criação de outra Medida Provisória ou Projeto de Lei e, em ambos os casos, teria de passar pela análise e votação do Congresso. Ou seja, sozinho, o Governo não pode simplesmente extinguir nenhuma agência reguladora, seja ela a Anvisa, a Anatel ou a Ancine. E, ainda que consiga aval do Congresso para “fechar” a Ancine, como Bolsonaro diz, muitas das leis do audiovisual são anteriores à criação da agência e continuariam existindo.

E essa é uma das razões pelas quais nem mesmo enforcar o orçamento do setor é tão simples assim. Hoje, as fontes de financiamento do setor são oriundas da Lei Rouanet, Lei do Audiovisual do Fundo Setorial, de onde estima-se que venha mais da metade dos orçamentos de filmes hoje. O Fundo Setorial tem a maior parte do orçamento originária do Condecine, que é a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional, além de receitas, concessões e permissões principalmente vindas do setor de telecomunicações. O Condecine, cujo orçamento previsto para este ano é de 724 milhões de reais, também é regulamentado por uma lei própria. Ou seja, mais uma vez, o Congresso seria necessário para alteração desta lei. Procurada, a Ancine não quis se pronunciar sobre as declarações do presidente.

Mudar a sede e censura

A Ancine, cujas atribuições são o fomento, a regulação e a fiscalização do mercado do cinema e do audiovisual no Brasil, tem sede no Distrito Federal, escritório central no Rio de Janeiro e um escritório regional em São Paulo. Transferir sua sede para Brasília, como propôs o presidente, implica os custos que a transferência dos servidores vai acarretar e, na prática, muda pouca coisa. Vera Zaverucha, ex-diretora da Ancine e que participou da sua criação, explica o que isso pode significar. “Na prática, o presidente está dizendo que os diretores têm que estar em Brasília. Porque a sede da Ancine já é lá, então dizendo isso, ele está sinalizando que quer que a direção fique perto dele”.

Já a cineasta Laís Bodanzky, diretora-presidente da SPCine e diretora de longas como Bicho de Sete Cabeças e Como nossos pais, afirma que questões como o endereço do escritório central são pequenas diante do que pode estar por vir. “Mudança de endereço não é prioridade para um setor tão importante que movimenta recursos e empregos neste país”, diz. “Isso tudo é um desvio de foco do que é mais importante, que é: qual é o projeto do Governo para o audiovisual?”, questiona. Kleber Mendonça, diretor de Aquarius e Bacurau, recentemente premiado no Festival de Cannes, se pronunciou por meio do Twitter, afirmando, em inglês, que Bolsonaro anunciou o plano de acabar com a agência brasileira de cinema no dia seguinte ao que quatro filmes foram selecionados para o festival internacional de cinema de Locarno. O diretor também lembra que este é um ano notável para o cinema brasileiro com seleções no festival de Sundance, Rotterdam, Berlim e Cannes. E que o anúncio do presidente é porque ele "não está feliz com os filmes que estão sendo financiados".

Por ora, o único projeto sinalizado pelo presidente para o setor é o de instituir o que ele chama de “filtro” nas produções. “Não posso admitir filmes como Bruna Surfistinha com dinheiro público”, afirmou Bolsonaro na semana passada, criticando o financiamento do longa de 2011 de Marcus Baldini que narra a história real de uma adolescente de classe média que vira garota de programa. "Se não puder ter filtro, extinguiremos a Ancine. Não pode é dinheiro público sendo usado para filme pornográfico".

Mas, na realidade, a produção audiovisual brasileira nada tem a ver com o gosto dos presidentes em exercício. “Hoje para a aprovação de um filme é analisado o tipo de conteúdo e se o orçamento condiz com o que o produtor diz que vai fazer”, diz Vera Zaverucha. E essa análise não passa pela presidência. Ela explica que, na prática, esse “filtro” de Bolsonaro não tem vias para ser instituído. “Como você vai dizer que não pode fazer determinado filme? Seria censura, não teria como. Ele teria que editar um decreto explicitando o que não pode. E ele não pode fazer isso, porque a Constituição proíbe a censura”.

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