Com cartuchos de munição e número 38, Bolsonaro lança partido à sua medida
No dia do lançamento da Aliança, presidente envia a Congresso novo projeto para isentar policiais e militares de punição por homicídio. Nova sigla dificilmente poderá disputar nas municipais de 2020
Um locutor que faz piadas preconceituosas. Um quadro com cartuchos de munição com o nome do futuro partido. Militantes que intimidam jornalistas e vestem camisetas em homenagem ao torturador da ditadura militar Carlos Alberto Brilhante Ustra. Um presidente que diz que “ladrão de celular tem de ir pro pau” e lança um grito de guerra como se fosse um narrador de rodeios. Assim foi, nesta quinta-feira, no hotel Royal Tulip de Brasília, a primeira convenção nacional da Aliança pelo Brasil, o partido de extrema direita que Jair Bolsonaro pretende criar.
Antes do lançamento do partido, Bolsonaro havia anunciado que encaminhou ao Congresso Nacional um projeto que amplia o conceito de excludente de ilicitude previsto no Código Penal. O projeto complementaria, segundo o presidente, o pacote anticrime proposto pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, já que o excludente de ilicitude proposto pelo ex-juiz foi rejeita da pela Câmara. “Vamos depender agora, meus parlamentares, deputados e senadores, de aprovar isso lá. Será uma grande guinada no combate à violência no Brasil. Nós temos como realmente diminuir, e muito, o número de mortes por 100 mil habitantes no Brasil. Sergio Moro vem fazendo seu trabalho. Em grande parte a violência tem diminuído pelo exemplo das autoridades do Brasil”, disse o presidente.
No anfiteatro onde ocorreu o evento de lançamento do Aliança pelo Brasil, apenas 17 jornalistas puderam acompanhar a cerimônia. Os outros, quase 40, ficaram no jardim do lado de fora, de onde assistiram a tudo por um telão ao lado de pouco mais duas centenas de ativistas — vários deles chamando repórteres de esgoto e provocando a Rede Globo, que chamavam de “globolixo”.
Foi mais tarde, nesse palco do jardim, ladeado pelo presidente Bolsonaro, que o locutor Cuiabano Lima fez uma brincadeira de mau gosto citando duas cidades paranaenses e arrancou risada de boa parte do público. “As meninas de Campo Largo saem com os rapazes de Ponta Grossa”. Antes, Bolsonaro disse que estavam cobrando dele um grito de guerra da legenda. E emendou: “Irrrrrruuuuuu!”. Depois dele, ao menos outros cinco oradores usaram o microfone para tentar imitá-lo.
Durante quase duas horas de evento, a plateia cantou os hinos nacional e da bandeira, entoou cânticos comuns em protestos da direita (“a nossa bandeira jamais será vermelha” e “eu sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor”) e cobrou que fossem distribuídas fichas de filiação — algo impossível de ocorrer, já que para ser criado o partido ainda precisa recolher 500.000 assinaturas em pelo menos nove unidades da federação e ter essas firmas reconhecidas pelo Tribunal Superior Eleitoral. Com a sinalização da Corte de que assinaturas digitais não serão aceitas, Bolsonaro já trabalha com a possibilidade de não ter o partido criado a tempo de disputar as eleições municipais de 2020. Para conseguir esse feito, teria menos de cinco meses para reunir as firmas reconhecidas por cartórios.
Entre os que queriam assinar a ficha de filiação ou ao menos a carta de apoio para a criação da legenda — que também não foi apresentada — estava o pastor evangélico e servidor público Edson Xavier, de 54 anos. Ele disse que foi ao evento para dar suporte ao presidente e por acreditar que esse partido “fala a língua do povo”. “Se o povo for de extrema direita, então o partido também é. Ele está com o povo”, afirmou ao EL PAÍS.
As amigas Maura Santos, 58, Giselda Pinto, 63, e Denilse de Melo, 59, todas aposentadas, também estavam nesse grupo. “Estamos aqui por acreditar que o partido pode combater a corrupção”, afirmou Maura. “Elegemos nosso presidente com fé e esperança e temos de apoiá-lo aonde ele for agora”, completou Giselda.
Já um dos que vestiam uma camiseta em homenagem a Ustra, o policial aposentado Antônio Carlos Ferreira, 62, disse que estava no evento para apoiar uma legenda que vai acabar com as legendas de esquerda. “Torço para que esse partido tenha o número 38. Aí, podemos usar o ‘três oitão’ para exterminar a esquerda do país”, afirmou. O 38 é o calibre de um dos mais comuns revólveres. O pedido de Ferreira acabou sendo atendido. Bolsonaro afirmou pela manhã que escolheu o número 80, por representar "o símbolo do infinito, duas alianças e é fácil de digitar”. À noite, em sua live no Facebook, disse que optou pelo 38.
No evento, a advogada de Jair Bolsonaro, Karina Kufa, leu o programa da legenda. Disse que ela será antiabortista e a favor da legítima defesa. “O partido se compromete a lutar incansavelmente até que todos os brasileiros possam ter plenamente garantido o seu direito inalienável de possuir e portar armas para a sua defesa e dos seus”, afirmou. Segundo Kufa, a legenda “vai se esforçar para divulgar verdades sobre crimes do movimento revolucionário, como comunismo, nazifascismo e o globalismo”. Ela ressaltou também que os aliados, como querem se chamar os futuros filiados da sigla, lutarão para reduzir e, quando possível, eliminar “os controles e as interferência estatais sobre a economia”.
Críticas a Witzel e estreia de Jair Renan
Em seu discurso, Bolsonaro queixou-se dos políticos que foram eleitos em seu vácuo e acabaram deixando-o de lado — a plateia os chamou de traidores. O público citou nominalmente o deputado federal Alexandre Frota, eleito pelo PSL e que agora está no PSDB. O presidente também acusou o PSL, sua antiga legenda, de tentar negociar tempo de televisão e se vender para futuras coligações. “Em parte o problema que tivemos com o partido que deixei agora foi isso. Negociar legenda, vender tempo de TV”. Prometeu que fará coligações com políticos de direita nas eleições do ano que vem. E, se seu partido não for formado, não se importa de receber prefeitos de outras siglas com vistas ao pleito de 2022.
Em tom raivoso,Bolsonaro não poupou críticas ao seu antigo aliado governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC). Disse que apesar de ele ter sido ajudado por Flávio Bolsonaro para se eleger, atualmente, usa parte da Polícia Civil para persegui-lo com vistas à eleição presidencial. “Querem destruir a reputação da família Bolsonaro. A minha virou um inferno depois das eleições do Witzel”.
A queixa refere-se à investigação sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) e de seu motorista Anderson Gomes. Em um primeiro depoimento, um porteiro do condomínio em que Bolsonaro tem uma casa no Rio, disse que no dia dos homicídios um dos assassinos esteve no local e pediu para interfonar na casa do presidente (que na época era deputado federal). Uma pessoa identificada como “seu Jair” teria liberado a entrada no condomínio. Nessa data, Bolsonaro estava na Câmara dos Deputados. Na última quarta-feira, o porteiro alterou o seu depoimento e disse que anotou errado a informação. “Tenho muito carinho pelo porteiro, pode ter certeza disso”, afirmou o presidente.
O ato da Aliança pelo Brasil também serviu como palco de estreia para o quarto filho de Bolsonaro, o estudante Jair Renan, de 21 anos. Ele foi anunciado como um dos vogais da legenda a ser criada. O presidente da República também será o presidente do partido. O primeiro vice será o senador e primogênito dele, Flávio. O segundo vice-presidente será o milionário advogado de Brasília Luis Felipe Belmonte, que é suplente do senador Izalci Lucas (PSDB-DF). Os outros cargos estão distribuídos entre servidores do Palácio do Planalto, como Tércio Arnaud Tomaz (vogal), ativistas políticos, além dos advogados Karina Kufa (tesoureira) e Admar Gonzaga (secretário).
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