Flamengo, bem cotado nos gramados e à sombra da maior tragédia de sua história
Apesar do time vencedor e rentável, clube é cobrado pelos familiares de garotos mortos em incêndio do Ninho do Urubu, em fevereiro
Duas realidades opostas se chocam ao expressar as emoções de 2019 para o Flamengo. De um lado, o time avassalador que investiu mais de 200 milhões de reais em reforços pode se sagrar campeão brasileiro e da América neste fim de semana e, com os cofres turbinados por premiações, bater o recorde de faturamento em sua história. Do outro, a instituição abalada pelas repercussões do incêndio que matou 10 jovens em seu centro de treinamento, no início de fevereiro. Apesar do sucesso da equipe de Jorge Jesus, Gabigol e companhia, a sombra da tragédia não se descola da imagem do clube nem da cúpula rubro-negra.
Na última segunda-feira, familiares de Samuel Thomas Rosa, lateral-direito de 15 anos que foi uma das vítimas que morreram no incêndio, fizeram um protesto em frente ao Ninho do Urubu reivindicando que o clube não se esqueça dos garotos. Em uma faixa exposta na portaria, também desejaram sorte à equipe na final da Libertadores, contra o River Plate. Até o momento, a diretoria do Flamengo acertou o pagamento de indenizações às famílias de todos os 16 jogadores sobreviventes, reincorporados às categorias de base, e de quatro meninos que não resistiram às queimaduras —em uma delas, apenas o pai, que é separado da mãe, aceitou a proposta.
O impasse com as outras famílias, no entanto, deve se encaminhar para uma longa batalha nos tribunais. A maioria dos pais e responsáveis que não entraram em acordo com o clube aguarda a conclusão do inquérito para dar seguimento aos processos na Justiça. A primeira versão liberada pela Polícia Civil determinava o indiciamento de oito pessoas por homicídio doloso (quando se assume o risco de matar), incluindo dois engenheiros do Flamengo e o ex-presidente Eduardo Bandeira de Mello. O Ministério Público pediu a realização de novas investigações, mas a versão final do documento, prevista para o fim de agosto, ainda não ficou pronta.
Após o incêndio, dirigentes do Flamengo recusaram um acordo extrajudicial mediado pelo Ministério Público do Trabalho e a Defensoria do Rio para indenização conjunta dos familiares. Pela proposta, o clube pagaria 2 milhões de reais a cada família e uma pensão de 10.000 reais mensais até a data em que as vítimas completariam 45 anos. As indenizações somariam um montante de 20 milhões de reais, equivalente ao que o clube gastou para trazer da Europa os defensores Filipe Luís, Pablo Marí e Rafinha, contratados no meio do ano.
Em outubro, o Flamengo venceu uma ação que solicitava o bloqueio de 100 milhões de reais de suas contas a fim de garantir o pagamento das indenizações em processos futuros. O juiz Ricardo Georges Affonso Miguel argumentou que avaliar casos relacionados a categorias de base não é competência da Justiça do Trabalho, por entender que a formação de jogadores em clubes de futebol possui “caráter recreativo”. Autor da ação de bloqueio, o Ministério Público do Trabalho recorre da decisão, mas teme que a sentença do juiz abra um precedente para que a Justiça desconsidere as relações trabalhistas inerentes ao processo de iniciação esportiva.
“Quer dizer, então, que meu filho estava se divertindo?”, questiona Cristiano Esmério, pai do goleiro Christian, que morreu aos 15 anos. “No Flamengo, ele era cobrado como um trabalhador. Se chegasse atrasado aos treinos, recebia punição.” Sua família é uma das que aguardam a conclusão do inquérito para cobrar indenização do clube na Justiça. Esmério, porém, salienta o receio de que a tragédia caia no esquecimento e os responsáveis por negligências no CT do Ninho do Urubu apontadas pelas autoridades não sejam punidos. O bom momento do time nos gramados contrasta com o sentimento ambíguo de um pai em luto que, ao mesmo tempo, é torcedor.
“Toda nossa família é rubro-negra. Mas, depois que perdi o Christian, não tenho mais aquele ímpeto de ir ao Maracanã. Não tenho força pra isso”, diz Esmério, que continua torcendo para que o clube conquiste títulos, apesar do litígio com a diretoria encabeçada pelo presidente Rodolfo Landim. “O maior descaso vem dos cartolas. A instituição não tem culpa, mas sim quem a dirige. O Flamengo pode ganhar o Brasileiro e a Libertadores, mas nada vai apagar a mancha que ficará pra sempre na história: o incêndio que matou 10 garotos, um deles meu filho.”
No entanto, Cristiano Esmério recrimina manifestações clubistas por parte de torcedores rivais que utilizam a tragédia para provocar flamenguistas. No começo do mês, se indignou ao perceber que sua foto, registrada para uma matéria do EL PAÍS, havia sido impressa em cartazes pregados por uma ala da torcida do Botafogo no estádio Nilton Santos às vésperas do clássico com o Flamengo, acompanhada da mensagem “Não é por rivalidade, é por justiça!”. “Não aprovo esse tipo de atitude, ainda mais em um momento inoportuno, perto de um clássico decisivo”, afirma o pai de Christian. “Infelizmente, algumas pessoas transformaram nossa dor em clubismo.”
Torcedores do Vasco também recorreram à falta de acordo por reparação aos garotos mortos com intuito de depreciar o clube rubro-negro. Chegaram a espalhar adesivos pelo Maracanã que exibiam a frase “Paguem as indenizações às famílias” e, no último clássico entre as equipes, parte da torcida entoou cânticos provocativos em alusão à tragédia. “Ao fazer protestos motivados por rivalidade, esse tipo de torcedor está ofendendo a gente, não o time rival”, diz Alba Valéria, mãe do volante Jorge Eduardo, que era capitão da equipe sub-15 do Flamengo.
Em Além Paraíba, interior de Minas Gerais, de onde o filho saiu para tentar realizar o sonho no Rio, a cozinheira trabalha em uma escola pública enquanto tenta se confortar na lembrança do menino que a chamava de “minha rainha”. “Mesmo jogando num clube grande, o Jorge nunca esqueceu suas raízes. Era querido por toda a cidade.” Alba ressalta que não guarda mágoas da instituição, mas, assim como Cristiano Esmério, lamenta o afastamento dos dirigentes desde que o acordo proposto por órgãos públicos foi rejeitado. “As pessoas acham que a gente só quer dinheiro. E eu digo que a luta é para que a morte dos nossos filhos não seja tratada como algo normal. Se não tivesse acontecido o incêndio, nada teria mudado nas condições do centro de treinamento. Eu sentia medo quando o Jorge ia viajar, pegar a estrada para jogar campeonatos. Mas nunca imaginei que meu filho poderia morrer dentro de um alojamento.”
O grito da torcida por memória e justiça
As pressões para que a diretoria defina os pagamentos e entre em acordo com as famílias que ainda não acertaram os valores de indenização também partem de torcedores do clube. O movimento Flamengo da Gente, que reúne sócios e conselheiros rubro-negros, lançou em agosto, no dia em que a tragédia completou seis meses, uma campanha intitulada “Nós não esquecemos”, exigindo, além da reparação aos familiares, investigações internas para a determinação dos responsáveis pelo incêndio. O grupo tem levado cartazes de divulgação da campanha aos jogos no Maracanã.
Durante uma participação no programa Encontro com Fátima Bernardes, da Globo, o ator Cauã Reymond, que é torcedor rubro-negro, criticou a diretoria pela demora em resolver a situação. “É triste ver o Flamengo nesse momento tão bonito e ainda não ter chegado a um acordo com todas as famílias das vítimas da tragédia no Ninho do Urubu. Eu me sinto envergonhado. O clube atualmente tem recursos [para pagar indenizações].” Esmério conta que se emocionou com o desabafo do ator. “Mostrou que ele, antes de torcedor, é um pai que se coloca em meu lugar. Uma manifestação importante, já que muita gente se esqueceu rápido da tragédia.”
Advogados das famílias que não fecharam acordo com o Flamengo julgam improvável uma reviravolta no impasse e admitem que, diante das negociações arrastadas, o valor reivindicado na Justiça deve ser superior ao proposto inicialmente por Defensoria e Ministério Público. Por sua vez, a diretoria rubro-negra informa que mantém o pagamento da ajuda de custo prometida aos familiares, no valor de 5.000 reais por mês, enquanto não houver definição das indenizações. Em relação ao ganho de causa na ação que impediu o bloqueio das contas, avalia que “a justiça foi feita”, por considerar “uma ação exagerada” a penhora de recursos proposta pelo MPT.
Caso o Flamengo vença o Brasileiro e a Libertadores, jogadores e funcionários pretendem dedicar as conquistas aos garotos do Ninho. Atletas do elenco principal, inclusive, mantêm contato frequente com alguns familiares. O volante Willian Arão já homenageou o volante Jorge Eduardo, que, por jogar na mesma posição, o tinha como ídolo. Já o goleiro Diego Alves enviou uma camisa à família de Cristiano Esmério, que, embora comovido pelo carinho de jogadores e ex-companheiros do filho, diz não ter motivos para comemorar o desfecho de temporada do seu time de coração. “Toda lembrança aos meninos é válida. São gestos que nos trazem felicidade, mas também uma tristeza, porque a pessoa morta não vê homenagem.”
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