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Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

Negar favela é insulto à vocação popular do Flamengo

Torcida rubro-negra transformou termo pejorativo em saudação ao clube do povo. Deveria ser motivo de orgulho, não um pretexto para reforçar estereótipos preconceituosos

Torcida do Flamengo homenageia Adriano Imperador, cria da Vila Cruzeiro.
Torcida do Flamengo homenageia Adriano Imperador, cria da Vila Cruzeiro.Gilvan de Souza (Divulgação)
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Historicamente, torcidas rivais utilizam “favela” de forma pejorativa para zombar do Flamengo. Por ser o mais popular do país, o clube que sempre arrastou multidões ao Maracanã tem adeptos de todas as classes sociais, especialmente em comunidades e regiões pobres, não apenas no Rio de Janeiro. Esse talvez seja o maior patrimônio rubro-negro, o que os especialistas em marketing chamariam de “valor intangível da marca”. Nada tira do Flamengo a fama de representar o time do povão, algo que torcedores adversários desdenham e, por que não, invejam. Ao adotar a favela nos cânticos de arquibancada e ressignificar o termo como uma celebração da vocação democrática do clube, a torcida rubro-negra contribuiu para desmistificar a pecha de criminalidade, marginalização e violência que cerca seus moradores.

No entanto, como revelado pelo jornal Extra neste sábado, uma empresa terceirizada que cuida das redes sociais do Flamengo decidiu não usar mais a expressão #FestaNaFavela em publicações, sob a justificativa, exposta por um dos gerentes da agência, de que favela “é algo associado à violência na cidade em que moramos”. Marcelo Gorodicht, diretor da empresa, vai além ao explicar as razões de evitar o termo: “Quando o Flamengo vence ou é campeão, como esperamos que vá acontecer neste domingo [contra o Vasco, na final do Campeonato Carioca], a festa acontece em todos os lugares, em todos os recantos do Rio de Janeiro e do Brasil. Do morro ao asfalto, da Zona Norte a Zona Sul, do Leme ao Pontal como diria o saudoso Tim Maia, do Oiapoque ao Chuí”.

Ao concordar com essa restrição supostamente estratégica, que, segundo a empresa, tem aumentado o alcance de postagens do clube nas redes, a diretoria do Flamengo nega a favela como elemento indissociável de sua imagem. A favela, no caso rubro-negro, não representa um lugar, mas sim o povo pobre que nunca deixou sua paixão pelo time se abalar diante das adversidades. Uma nação de pessoas que tem sido violentada nos últimos anos pela política proibitiva do preço de ingressos, sofrendo com a elitização nos estádios e planos de sócio-torcedor nada acessíveis aos que dependem de salário mínimo – ou bem menos que isso – para sobreviver.

“A favela, no caso rubro-negro, não representa um lugar, mas sim o povo pobre que nunca deixou sua paixão pelo time se abalar diante das adversidades”

Já na reta final da gestão passada, encabeçada por Eduardo Bandeira de Mello, o Flamengo tentou se reconciliar com a parte mais expressiva de sua massa em ações pontuais, como o Projeto “Pequenos Rubro-Negros”, que levava crianças de comunidades carentes aos jogos do time. Nesse mesmo período, o clube intensificou o uso da hashtag #FestaNaFavela, exaltando o orgulho de sua representatividade entre as camadas desfavorecidas da sociedade. Agora, a gestão de Rodolfo Landim contribui para reproduzir um discurso que criminaliza as favelas, resumindo-as ao contexto de violência. Não quer a imagem do clube associada a atributos vistos como negativos pelo marketing, mas é capaz de ceder o palco da conquista de um título para palanque de parlamentar que debochou do assassinato de Marielle Franco.

Repleta de ídolos forjados nos campos de favela, como Adílio, Adriano Imperador e Vinicius Junior, que nunca renegaram suas origens, a história do Flamengo está marcada por uma conexão direta com a identidade do povo brasileiro. É o traço que distingue os clubes de massa, tal qual o Corinthians, que não se envergonha de dizer que “a favela é aqui”. Nas décadas de 60 e 70, em vez de se referir à favela, rivais chamavam flamenguistas de “urubu”. O apelido racista, claramente depreciativo, acabou se tornando mascote do clube. Sinal de que, mesmo estigmatizada pelo preconceito, a comunidade rubro-negra nunca virou as costas para seus seguidores negros, pobres e discriminados.

Para uma instituição de futebol, representar a favela significa, muito mais do que qualquer conotação do termo, levantar a bandeira em favor dos mais humildes. Dos craques descobertos nos subúrbios e lapidados no Ninho do Urubu. Em um contexto de repressão às minorias no lugar onde o extermínio de jovens negros segue rendendo menos manchetes que a morte de um branco na Zona Sul, ou em que o governador do Estado acaba por chancelar uma política de abate de “potenciais criminosos” por snipers no alto dos morros, um clube como o Flamengo tem a obrigação de reafirmar sua vocação popular e redobrar as ações de responsabilidade social. Ser favela é ser povão. Deveria ser motivo de orgulho, e não um pretexto para a diretoria reforçar estereótipos preconceituosos.

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