Iniciação esportiva, um reduto dos abusadores de crianças e adolescentes
Sem regulamentação nem protocolos de proteção a jovens atletas, esporte brasileiro acumula escândalos de assédio e abuso sexual
“Muitos esportistas com potencial são desperdiçados todos os dias por causa do abuso sexual”, afirma a nadadora Joanna Maranhão. Ela foi abusada pelo treinador de natação quando tinha 9 anos. Hoje, se engaja na luta para ajudar crianças a entenderem o que são e como acontecem os abusos. “É praticamente impossível para uma criança contar a um adulto que foi abusada. Como ela vai falar de uma coisa que nem sabe o que é?”.
Promover a integração social, estimular o desenvolvimento físico e mental, cultivar uma vida saudável e, por que não, buscar o sonho de se tornar um ídolo nacional. Essa é a ideia que muitos pais têm ao incentivar os filhos a se dedicarem cada vez mais cedo à prática de um esporte. No entanto, a rotina de jovens atletas esconde uma faceta sombria que tem comprometido a revelação de talentos no Brasil. Em torno da iniciação esportiva, gira uma rede de abusadores de crianças e adolescentes, que se aproveita da falta de regulamentação e protocolos preventivos em clubes formadores.
Para Joanna Maranhão, o sistema que administra clubes, escolinhas e centros de treinamento não passa confiança às vítimas, fazendo com elas hesitem em denunciar agressores. “Não podemos presumir que todo treinador represente um risco, mas, onde tem criança, tem pedófilo. No esporte, o abusador geralmente exerce uma posição de poder sobre o atleta. E isso é determinante para reprimir a exposição dos abusos sexuais.”
Na última terça-feira, Joanna participou de uma audiência pública na Comissão do Esporte da Câmara dos Deputados, em Brasília, para debater o projeto de lei da deputada federal Érika Kokay (PT-DF), que pretende obrigar entidades esportivas que recebem patrocínio de instituições públicas a adotar medidas de prevenção à violência sexual. “Vários técnicos e empresários vendem falsas expectativas, iludindo o atleta a fim de cometer os abusos. Precisamos garantir o compromisso dos clubes para que infâncias não sejam mais roubadas no esporte”, afirma Kokay.
Um estudo do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Yves de Roussan (Cedeca) em parceria com o Unicef, publicado em 2014, antes da realização de Copa do Mundo e Olimpíada no Brasil, constatou que atletas em formação “estão expostos a diferentes situações de vulnerabilidade e violação de seus direitos básicos”, além de concluir que a maioria dos centros esportivos no país não cumpre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Pouca coisa mudou de lá para cá. Na audiência pública, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), por exemplo, foi novamente cobrada pelo descumprimento de um pacto assinado há quatro anos, em que se comprometida a tomar uma série de providências de enfretamento ao abuso sexual nas categorias de base.
O secretário-geral da entidade, Walter Feldman, reconhece que a confederação deixou de implementar parte das propostas sugeridas por parlamentares, mas promete rigor com clubes que deixarem de adequar suas estruturas para resguardar jovens jogadores. “Vamos introduzir a obrigação de aplicar práticas de proteção a crianças e adolescentes. Os clubes que não aderirem serão impedidos de disputar competições profissionais”, diz.
Escândalos sexuais têm se tornado uma rotina no esporte brasileiro. Desde 2011, foram registrados 117 casos de assédio e abuso relacionados ao futebol de base. Este ano, o jogador Ruan Pétrick contou que foi molestado aos 11 anos por um olheiro do Santos. O caso está sendo investigado em São Paulo pela Delegacia de Repressão e Combate à Pedofilia. Em março, a polícia prendeu em Campo Grande um professor de educação física e treinador de vôlei sob a acusação de produzir fotos pornográficas de suas alunas. Já no fim de abril, o Fantástico revelou denúncias de abuso sexual de 40 atletas contra o ex-técnico da seleção masculina de ginástica artística, Fernando de Carvalho Lopes. Ele prestou depoimento ao Senado nesta quarta-feira e alega ser inocente. Entretanto, admitiu que, em seus treinos, era comum fazer brincadeiras sobre pelos pubianos e partes íntimas dos atletas mais jovens.
“Isso é apenas o que aparece superficialmente. Os problemas são mais dramáticos e têm de ser combatidos por todos os setores da sociedade”, afirma Walter Feldman, assumindo que, sozinha, a CBF não é capaz de blindar atletas iniciantes no futebol da violência sexual. “Somente unindo esforços podemos reduzir a calamidade e o drama que vivemos sobre essa questão.” Profissionais ligados tanto ao esporte quanto ao sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes sublinham a necessidade de criar mecanismos para fiscalizar clubes e escolinhas, além de instituir protocolos que indiquem como agir para encorajar a quebra do silêncio.
Apenas recentemente, diante da queda de dirigentes envolvidos em esquemas de corrupção, CBF e Comitê Olímpico Brasileiro (COB) lançaram ouvidorias para receber denúncias de violação de direitos dos atletas. Na terça, o COB assinou um termo de compromisso para viabilizar ações de prevenção ao assédio sexual e moral no ambiente esportivo. Joanna Maranhão entende que é preciso ir além. “As instituições, acima de tudo, têm de passar confiança, mostrar que não vão desacreditar o relato de quem denuncia. E também oferecer suporte psicológico às vítimas.”
O ex-goleiro Alê Montrimas, que afirma ter sofrido assédio sexual ao longo de todo seu processo de formação nas categorias de base e hoje ministra palestras para alertar jogadores sobre o perigo dos abusos no futebol, cobra ações efetivas das autoridades, clubes e federações. Ele chama a atenção para a maior vulnerabilidade de atletas que deixam as famílias – e, muitas vezes, a escola – para tentar triunfar no esporte longe de casa. “Concentrações e alojamentos são canais de fácil acesso para os abusadores”, diz Montrimas. “Eles sabem que ali vão encontrar vítimas potenciais, afastadas dos pais e sem estrutura familiar. Existem casos de garotos que acabam cedendo às investidas para ganhar uma chuteira, um relógio ou até mesmo um prato de comida. Ainda há muito que fazer para quebrar o tabu do abuso sexual no esporte.”
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.
Mais informações
Arquivado Em
- Abusos sexuales deportes
- Pedofilia
- Estatuto Criança Adolescente
- Fútbol alevín
- Direitos criança
- Assédio sexual
- Ginástica artística
- Fútbol base
- Abuso menores
- Ginástica
- Categorías inferiores
- Exploração sexual
- Agressões sexuais
- Menores
- Abusos sexuais
- Futebol
- Violencia sexual
- Infância
- Times esportes
- Brasil
- Sexualidade
- Crimes sexuais
- Grupos sociais
- Competições
- América