Se gritar “pega vilão”, não sobra uma seleção
Há quem estabeleça critérios políticos, socioeconômicos e humanitários ao escolher um país para torcer na Copa, mas vai faltar time em meio a tanta problematização
O mundo, assim como o futebol, não está chato, apenas em constante exercício de aprimoramento. Felizmente, por exemplo, as pessoas têm pensado duas vezes antes de apoiar times que pagam pelos deslizes das instituições que os comandam, ídolos que demonstram conduta antidesportiva dentro e fora dos gramados e as atitudes de torcedores que disseminam ódio e preconceito. Mas, na Copa do Mundo, esse hábito saudável de não separar o jogo da sociedade tem sido elevado à máxima potência no raio problematizador que determina como se deve escolher um país emprestado para torcer e, a cada partida, sugere boicotes à seleção relegada ao papel de vilã com base em critérios políticos, socioeconômicos e humanitários.
Houve quem admirasse a irreverência e o ímpeto ofensivo de Senegal, mas mudasse de ideia ao lembrar das dezenas de milhares de crianças talibés expostas ao trabalho escravo no país. Pela garra da seleção somada a políticas pioneiras na América Latina, como a legalização da maconha e a descriminalização do aborto, o Uruguai também amealhou simpatizantes, que, com um olhar mais profundo sobre a história, poderiam se frustrar ao constatar que o genocídio do povo charrúa até hoje não é reconhecido pelo governo local. Assim como se decepcionaram os que ficaram de olhos marejados com a emotiva trajetória de vida contada por Edinson Cavani, até descobrir os vídeos em que o craque aparece caçando javalis, uma prática comum em sua terra natal, de forma tão impiedosa como arrasa defesas e marca gols.
Japoneses foram reverenciados pelo exemplo de civilidade ao recolher o lixo das arquibancadas, mas, em campo, sua seleção flertou com o jogo sujo ao recorrer à malandragem para perder de pouco da Polônia e passar de fase. A Austrália, maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) entre os participantes da Copa, tinha lá seu apelo como oásis da qualidade de vida. Porém, também tem problemas. Um deles o apartheid vivido por imigrantes e aborígenes em uma sistemática de racismo estrutural que já registrou casos insólitos, como o da loja que proibia a entrada de negros e cachorros. Anfitriã do torneio, a Rússia chamou a atenção pelo inesperado avanço às quartas de final. O bom desempenho e a competência em realizar o Mundial, entretanto, não apagam as denúncias de violações de direitos humanos que pesam sobre o Kremlin, seja nas obras dos estádios, seja na perseguição institucionalizada à população LGBT.
Agora, a bola da vez é a Croácia, admirada por ser a grande surpresa da Copa e, ao mesmo tempo, manchada pelas suspeitas de apologia ao nazismo. Antes da competição, a seleção croata já havia sido sancionada por exibir uma suástica no gramado em jogo diante da Itália e viu o zagueiro Simunic ser impedido de disputar a Copa no Brasil, em 2014. Ele foi punido pela FIFA após entoar cânticos fascistas da Ustashe, grupo ultranacionalista apoiado por Adolf Hitler durante a Segunda Guerra Mundial e responsável pelo violento massacre étnico na antiga Iugoslávia. Lovren, seu sucessor no time, também fez alusão ao partido cantando uma música de cunho nazista para celebrar a vitória sobre a Argentina. Depois que a Croácia eliminou a Rússia, o zagueiro Vida e o assistente técnico Ognjen Vukojevic usaram expressões associadas ao movimento fascista croata e pregaram “Glória à Ucrânia”, país que vive conflito com os russos pela Crimeia, em uma deferência implícita ao regime nacionalista ucraniano.
Vida foi advertido, Vukojevic acabou banido da Copa. Envolta pela polêmica, seria razoável que a Federação Croata se pronunciasse, deixando claro que as manifestações individuais não representam a seleção. No entanto, em uma região marcada por rupturas separatistas com feridas mal cicatrizadas, nada é tão simples quanto parece. Vida nasceu em Osijek, cidade que era bombardeada diariamente pelo exército iugoslavo na Guerra dos Balcãs. Lovren, de origem servo-croata, teve de fugir com a família durante a Guerra da Bósnia para a Alemanha, de onde foram despejados em direção à Croácia. Para muitos filhos das batalhas que não só dividiram nacionalidades, mas também acentuaram diferenças religiosas, políticas e culturais, discursos extremistas significam mais uma exaltação patriótica do que necessariamente um grito xenofóbico.
“Levar a ferro e fogo os infindáveis critérios de problematização para definir qual bandeira faz jus ao clamor de torcida pode ser uma armadilha”
Tendo em vista os dilemas e complexidades de cada país, não faz muito sentido torcer para a França contra a Croácia na final da Copa pelo subjetivo critério da nação mais impoluta. Apesar do alinhamento oposto ao regime nazista de Hitler na Segunda Guerra, os franceses não entraram para a história somente pelos louros da Revolução Francesa ou do pensamento filosófico. Ainda que mais da metade de sua seleção seja composta por descendentes de povos africanos, o país de ideais iluministas fechou há pouco tempo as portas para imigrantes, observa a ascensão de uma extrema-direita que prega a xenofobia de maneira escancarada e não costuma ser muito sensível ao sangue derramado em suas incursões bélicas na política externa.
E o que dizer do Brasil? O país do futebol em que um jovem negro é assassinado a cada 20 minutos, onde mais de 10% da população vive em condições de extrema pobreza ao passo que a restrita parcela (1%) dos mais abastados concentra quase 30% da riqueza? Não fosse pela tradição vitoriosa, rica de craques com a bola nos pés, quem torceria pelo Brasil na Copa à exceção do torcedor de bolão, mais preocupado em cravar o placar do que em apoiar A ou B? Como tudo é questão de perspectiva, condenar apologia ao nazismo e, por outro lado, relativizar a matança chancelada pela desigualdade social não nos coloca em um posto mais elevado como nação. Enquanto muita gente promete secá-la pelo rótulo de nazista, a Croácia, presidida por Kolinda Grabar-Kitarović, que banca as próprias despesas no tour pela Copa, e única delegação do torneio gerenciada por uma mulher (Iva Olivari), enxerga a comoção pelo feito esportivo como uma oportunidade de reconstruir identidades num território atordoado pela crise econômica. Nesse sentido, o sérvio Novak Djokovic já declarou que vai torcer pelo título dos croatas e puxa a fila em nome de uma trégua entre povos vizinhos.
É oportuno aproveitar a imensa repercussão midiática da Copa do Mundo para debater questões sociais e aprofundar sobre impasses da geopolítica. Mas levar a ferro e fogo os infindáveis critérios de problematização para definir qual bandeira faz jus ao clamor de torcida pode ser uma armadilha. Se o extracampo for mesmo parâmetro, os boicotes se estenderiam a todo o evento, já que, da Rússia ao Catar – sem excluir o Brasil – a organização dos Mundiais não é nada exemplar no que diz respeito à lisura no processo de escolha das sedes, à transparência na utilização de recursos públicos e ao cumprimento de direitos dos trabalhadores envolvidos nas obras. Para problematizar o futebol, não é preciso abrir mão do sentimento que tende a simpatizar com o time teoricamente mais fraco, tampouco munir a urgência em demonizar uma equipe a partir de julgamentos simplistas. Adaptando a canção popular de Ary do Cavaco, se gritar “pega vilão”, não sobra nenhuma seleção.
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