Petkovic: “Vivi muito bem no socialismo, mas, na prática, não funcionava”
Ex-jogador relembra infância na antiga Iugoslávia socialista e se mostra dividido antes do duelo entre Brasil e Sérvia pela Copa do Mundo
Uma decisão arriscada fez a vida de Dejan Petkovic tomar um caminho diferente daquele que havia imaginado na época em que ainda tentava se tornar um jogador de futebol pelo modesto Radnicki Nis. Quando defendia o Real Madrid, mas se via sem perspectivas, recebeu uma proposta do Vitória, da Bahia. Resolveu aceitar a aventura em um país distante da maneira mais calculista possível. “Todo mundo que joga bem no Brasil vai para a Europa. Fui com o objetivo de voltar”, conta. Mas a volta não duraria muito tempo.
Foi do Vitória para o Venezia, da Itália, mas, menos de um ano depois, já arrumava as malas novamente para se tornar ídolo do Flamengo. Não saiu mais do Rio de Janeiro. Fincou raízes e hoje, trabalhando como comentarista no Sportv, se sente “meio brasileiro”. Pet, como ficou conhecido desde os tempos na Bahia – os torcedores tinham dificuldade de pronunciar seu nome –, nasceu em uma pequena cidade da antiga República Socialista da Iugoslávia. Em 1992, seu país iniciou um processo separatista que, somente 14 anos mais tarde, resultaria na formação da atual República da Sérvia.
Decepcionado com os rumos políticos da terra natal, Petkovic, entretanto, não se esquece dos bons momentos de sua infância sob o regime socialista de Josip Tito – sem deixar de ser crítico às diferentes formas de governo experimentadas na região dos Balcãs. Em entrevista ao EL PAÍS, o ex-jogador fala sobre geopolítica, socialismo, conflitos separatistas e, naturalmente, de futebol. Antes do jogo entre Brasil e Sérvia, pela última rodada do grupo E na Copa do Mundo, ele torce para que suas “duas casas” saiam felizes, de preferência com um empate que seja suficiente para a classificação de ambas as seleções.
Pergunta. Como começou sua relação com o Brasil?
Resposta. Eu fiz dois gols contra o Vitória em um amistoso pelo Real Madrid, em 97, e o clube me fez uma proposta. Como não tinha muitas oportunidades no Real, eu autorizei que um representante do Vitória fosse ao Santiago Bernabéu para pegar a assinatura do empréstimo. Mas aí o presidente do Real aparece com um diretor do Borussia Dortmund, que era campeão da Champions e me queria. Sou sérvio, cabeça-dura, cumpri com minha palavra. Perguntaram se eu estava louco, mas já tinha feito o acordo com o Vitória.
P. O que te atraiu na proposta do time baiano?
R. Me disseram que o Vitória era campeão, que o Bebeto jogava no clube. Quando cheguei, o Bebeto já não estava mais no time. Eu pensava que o time era campeão brasileiro, mas era só campeão baiano [risos]. Foi um choque de realidade. A diferença de estrutura entre os clubes era gritante. Não tinha nem água quente no vestiário. Mas imaginei que, se jogasse no Vitória, eu voltaria valorizado. Todo mundo que joga bem no Brasil vai para a Europa. Fui com o objetivo de voltar. Eu queria cumprir o desafio. E consegui. Joguei bem e voltei para a Europa.
P. E foi embora já pensando em voltar?
R. Ter ido para o Vitória foi uma decisão que mudou minha vida. Como já falava espanhol, em dois meses eu aprendi o português. Não fiz simplesmente por obrigação. Tinha muita vontade de me adaptar ao Brasil. E comecei a gostar muito do país. Criei vínculos e não pensei duas vezes em aceitar a proposta do Flamengo para voltar.
P. Segue gostando, apesar da crise que afeta o país nos últimos anos?
R. Eu cresci em um lugar que tem muitos problemas. O que acontece no Brasil eu já vivi. Estou acostumado. Mas os brasileiros não merecem o que está acontecendo. Um país maravilhoso, abençoado com essa riqueza natural e humana, pela mistura de cores, sem conflitos étnicos. Isso não pode ser ofuscado pelos problemas de corrupção. No meu país, também sofremos com corrupção e coisas piores, como a separação de territórios, agressões e mortes de inocentes, políticos que não são dignos de nenhum respeito. Talvez por isso eu consiga enxergar o lado positivo das coisas. Lamento a situação política, às vezes eu também quero chutar o balde, mas sou otimista e acredito muito no Brasil.
“A parte boa do regime socialista: tinha emprego pra todo mundo. Mas, como as empresas viviam de subsídio, não importava o resultado. A produtividade era baixa”
P. Já consegue dizer que se sente em casa aqui?
R. Tenho duas casas. Em uma delas, eu nasci. A outra, eu escolhi. Nenhuma delas é perfeita. Mas eu também não sou perfeito. Não existe perfeição na vida, muito menos um modelo de sociedade perfeita.
P. Percebe diferenças marcantes entre os sérvios e o povo brasileiro?
R. Entre tantas coisas boas, um único defeito me chama a atenção: o brasileiro é muito acomodado. Aceita as coisas sem conhecer os seus direitos, sem reivindicar, sem perguntar: “Mas por que isso?”. O brasileiro não questiona. Por que aumentou o preço da gasolina? Por que tem que pagar taxa de matrícula na escola? Por que vão fazer reajuste e correção monetária? Baseado em quê? “Ah, mas é assim. Não me importa quanto vou pagar no futuro, o que importa é que agora me custa menos.” Esse é o pensamento. Nesse ponto, muita coisa é diferente da Europa. Por que tem franquia do seguro? Por que tem que pagar plano de saúde? Por que faz um financiamento? Na Sérvia, pagamos a hipoteca e o valor das parcelas é fixo. Lá não existe plano de saúde. Os salários e as aposentadorias são baixas, mas as escolas públicas ainda são muito boas e melhores que as privadas. Alguma coisa ainda funciona na minha terrinha. Não é só roubalheira.
P. Você nasceu e cresceu na antiga Iugoslávia socialista. Quais lembranças guarda dessa época?
R. Eu vivi muito bem no socialismo, mas nem sabia o que isso significava. Era criança. A ideologia é fantástica, mas, na prática, não funcionava. Um exemplo... Tenho amigos que são trabalhadores, muito profissionais. Mas também tenho os que são “boleirões”, gostam de vida boa, não querem fazer nada. Imagine se esses amigos recebessem o mesmo que os trabalhadores dedicados? Isso desmotiva quem quer trabalhar. Mas tinha emprego pra todo mundo. Essa era a parte boa do regime socialista, algo que o governo realmente tem de fazer. Criar oportunidades de trabalho. Mas, como as empresas viviam de subsídio, não importava o resultado. A produtividade era baixa. Uma fábrica que poderia operar com 3.000 funcionários tinha 30.000. Como meu pai dizia: comia a si mesmo.
P. Como foi vivenciar um sistema de governo que já não existe mais?
R. Minha infância foi maravilhosa. Meu pai e minha mãe tinham empregos. A gente frequentava escola boa, praticava esportes, viajava nas férias para a praia ou para a montanha e vivia com dignidade, mas não tinha mordomia. A comida era muito barata. Hoje, qualquer coisa é cara. Praticamente não existe diferença de preço entre a comida e um aparelho doméstico. Antes, a gente podia comer o mês inteiro com 10% do salário dos meus pais, mas precisava de cinco salários para comprar uma televisão. Agora a diferença entre uma cesta básica e uma TV é pequena. Naquela época, nosso país tinha muita produção industrial, da agricultura a materiais de construção. Quando meus pais estavam construindo nossa casa, faltou grana para comprar as calhas do telhado. Então, eu quebrei meu cofrinho de moedas. Deu pra comprar as calhas e ainda sobrou dinheiro.
P. Hoje, olhando à distância, como avalia o período socialista [1948 a 1992] em seu país?
R. A Iugoslávia teve comunismo, socialismo e capitalismo. Não sei qual deles é o melhor, de verdade. Tudo pode prestar, tudo pode estragar: depende dos interesses envolvidos. Não existe um sistema ideal. Para mim, o fundamental é que exista educação, respeito aos valores comunitários e à história do país.
P. Há uma explicação para tantos conflitos separatistas na região?
R. Foi muito triste a separação da Iugoslávia. Quando querem encontrar brechas para dividir o poder, usam como desculpa a religião, o nacionalismo, a centralização do capital ou o que melhor convier para alcançar esse objetivo. A política aproveita os pontos fracos das pessoas e começa a semear diferenças adotando o discurso de “nós contra eles”. É muito fácil promover a segregação do ser humano. Veja só as torcidas no futebol. Existem brigas dentro delas. A Iugoslávia se separou enquanto toda Europa estava se unindo. Qual era a lógica disso? Daqui a pouco, vamos dividir os Estados, as cidades, os bairros. Precisamos aprender a conviver com as diferenças, como acontece no Brasil.
P. Você deixou de disputar uma Eurocopa, em 1992, devido a uma sanção da FIFA à Iugoslávia por questões políticas...
“Em 1998, se tivesse pagado para jogar, eu iria para a Copa do Mundo”
R. Essa decisão de implementar o embargo à Iugoslávia foi estúpida. Não nos deixaram jogar a Eurocopa. Levaram a questão política para o futebol.
P. Acredita que o fato de ser um jogador esclarecido, com opiniões fortes, contribuiu para que você jamais fosse convocado para uma Copa?
R. Não vejo por esse lado. Em 1998, se tivesse pagado para jogar, eu iria para a Copa do Mundo. Nunca me falaram isso diretamente. Mas soube por "laranjas" que dava pra ajeitar um esquema. Diziam que alguns pagavam para ir à Copa. Nem pensei em cogitar um absurdo desses.
P. Houve desentendimentos com algum treinador?
R. Eu era o melhor jogador da Iugoslávia. Em 94, viemos jogar contra o Brasil. Fizeram seis substituições no time e eu não entrei na partida. Paciência. No segundo amistoso, contra a Argentina, me mandaram aquecer aos 30 do primeiro tempo. Ainda estou aquecendo... [risos] No último minuto de jogo, depois de uma hora aquecendo, sentei no banco. E aí quiseram me colocar. O auxiliar começou a gritar porque eu estava sentado. Depois disso, acabou o jogo e disseram que eu tinha me negado a entrar. Fui punido. Só voltei a jogar pela seleção em 98, contra o Brasil, em São Luís. E provavelmente só me chamaram porque precisavam de um tradutor.
P. Depois, já como Sérvia e Montenegro, seu país volta à Copa em 2006, mas você não entra na lista. Por quê?
R. Eu vinha de um Campeonato Brasileiro fantástico com o Fluminense. Meus jogos no Brasil eram transmitidos na Sérvia. O país inteiro pedia minha convocação. Sempre inventavam uma desculpa para não me levar. Quando saiu a lista da Copa, as pessoas se perguntavam por que eu não fui convocado. Na época, o Zico disse que a Sérvia ia ganhar a Copa: “Tem 23 melhores que o Pet.” Então, o Vucinic se machucou. E aí divulgaram o substituto: D. Petkovic. Começaram a me ligar, me dando os parabéns, mas, na verdade, o convocado era o Dusan Petkovic, filho do técnico [Ilija Petkovic]. Ele trocou um atacante por um zagueiro. Isso pegou tão mal que, na preparação para a Copa, o garoto não aguentou a pressão e foi embora, com vergonha de estar lá. Disputamos o Mundial com um jogador a menos. Nunca me deram uma explicação oficial. Em off, diziam que, se me chamassem, eu teria que jogar. Infelizmente, perdi duas Copas do Mundo. Entrei para o grupo restrito dos bons jogadores que nunca jogaram um Mundial.
P. Se sente orgulhoso ou frustrado por isso?
R. Não tenho nenhuma frustração por não ter disputado a Copa, porque não foi um insucesso meu. No futebol, alguns poucos têm poder para arruinar muitas coisas. As pessoas que administravam a seleção do meu país é que me fizeram mal, não a instituição. Não guardo mágoas.
P. Como tem encarado o duelo entre Brasil e Sérvia nesta Copa do Mundo?
R. O Brasil é favorito absoluto, sem sombra de dúvida. Nossa seleção é comandada por um técnico de primeira viagem (Mladen Krstajic). Mandaram embora uma comissão técnica depois de classificarem a Sérvia para o Mundial em primeiro do grupo, provavelmente por algum fator político. A nova comissão não assumiu pelo mérito. O técnico era auxiliar, nunca tinha treinado uma equipe. Tem uma grande oportunidade nas mãos. Mas os resultados não podem esconder que a preparação para a Copa não foi a ideal.
P. Você vê a Sérvia em condições de vencer o Brasil?
R. É uma equipe equilibrada, com jogadores experientes e outros mais jovens, como Milinkovic-Savic, que está bem cotado no futebol europeu. Também gosto muito do Matic, um volante firme, forte e alto. Tadic e Mitrovic são as esperanças na frente. Os outros jogadores de ataque têm poucos gols pela seleção. Já o Brasil é grande candidato ao título e tem Neymar, Willian, Coutinho, Gabriel Jesus... Nós não temos tantos jogadores decisivos. Mas torço muito para que as duas seleções passem juntas para as oitavas. Meu coração está dividido. Vai ser um dia de emoções fortes para mim.
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