Neymar desafia o discurso ético de Tite
Enquanto o treinador prega vencer com jogo limpo, sem artimanhas, o principal jogador da seleção teima em contradizer sua máxima dentro e fora de campo
Assim que o juiz apitou o fim do jogo que decretou a primeira – e suada – vitória do Brasil na Copa do Mundo, sobre a Costa Rica, Tite respirou aliviado. Sabia que, principalmente pelo que produziu no segundo tempo, sua equipe não merecia mais um tropeço na competição. Em pronunciamento depois da partida, exaltou a persistência pelo gol e voltou a lançar mão de princípios morais para fugir da polêmica em torno da arbitragem, que recorreu ao VAR e anulou um pênalti cavado por Neymar. “O técnico [da seleção] é ético”, bradou, subindo o tom de voz. “Eu pedi para a equipe não reclamar com o juiz. Não precisamos de arbitragem para ganhar o jogo. Quero ganhar sendo mais competente.”
Não é novo o discurso de Tite em nome da ética. Antes da Copa, ele o repetiu em diversas oportunidades, como na entrevista ao EL PAÍS, em maio do ano passado: “O futebol é um instrumento de educação. E qual é a contribuição que posso dar ao Brasil? O exemplo. Eu quero vencer por ser mais competente, mais ético e mais leal, com a autoestima elevada. O que significa autoestima elevada? É não precisar de subterfúgio para vencer. Eu posso ganhar tendo orgulho de ser melhor que o meu adversário. Dentro das regras do jogo, sempre. Isso eu acho do caralho! Eu não preciso da arbitragem, só quero que ela seja imparcial. Eu não preciso da malandragem. Eu posso ser melhor que isso”.
Porém, nem todo o grupo parece ter comprado a filosofia alardeada pelo técnico. A contradição fica evidente sempre que Neymar se joga para cavar faltas, provoca os adversários e reclama de forma petulante com a arbitragem. Atitudes que se chocam frontalmente com a postura ética exigida por Tite. Ou, como o craque do time, ele teria carta branca para figurar como exceção no código de conduta do treinador? Pois, contra a Costa Rica, Neymar foi o oposto ao que se espera de um jogador irretocável do ponto de vista moral. Cercou o árbitro no fim do primeiro tempo, persistindo com as queixas até o túnel dos vestiários. Ao sentir a mão do zagueiro González tocar levemente sua barriga, já no segundo tempo, desabou de costas no gramado e enganou o juiz, que apitou pênalti. Depois, com a revisão do vídeo (VAR), a penalidade acabou anulada.
Além da simulação no lance, Neymar também valorizou em excesso as entradas dos adversários, a quem distribuía xingamentos, irritado com a cera costarriquenha quando a partida ainda estava empatada. Respondeu ao antijogo dos caribenhos na mesma moeda, exibindo o melhor repertório de sua face provocativa, flagrante na lambreta que aplicou em Tejeda. Nesse momento, o Brasil já havia saído à frente do placar. Neymar não é santo, tampouco o único “pecador”. Assim como jogadores da Costa Rica caíam para retardar o jogo e segurar o empate, o camisa 10 brasileiro abusou do cai-cai em busca da vitória a qualquer custo. São as armas, os tais subterfúgios, que cada um tem à disposição para triunfar num esporte que exige não só talento, mas também uma dose de malícia e perspicácia.
É legítimo que Tite, no intuito de romper com a escola brasileira da malandragem, queira dar exemplo e vencer à base do jogo limpo. Tem credenciais para isso. Como a inteligência ao tirar Willian e lançar Douglas Costa, a ousadia ao trocar Paulinho por Firmino e a confiança no taco ao apostar em Fagner para o lugar de Danilo. Além dos reservas e de Philippe Coutinho, novamente o jogador mais lúcido do Brasil, os zagueiros também se destacaram contra a Costa Rica, apesar do desencaixe de Casemiro no sistema defensivo. A primeira vitória na Copa teve o dedo do técnico, mas, no campo dos valores, também o expôs a um choque de incoerência. Neymar fez tudo ao contrário do que ele prega.
Como diz o filósofo e educador Mário Sérgio Cortella, crítico da hipocrisia que se disfarça sob o artifício da “ética utilitária”, quando o conceito de certo ou errado varia de acordo com a própria conveniência, não há como ser mais ou menos ético. Os limites são muito claros. É 8 ou 80. Uma equipe não pode ser considerada impoluta se um ou mais jogadores se desviam do comportamento tido como ideal. Códigos internos sempre assimilaram condutas questionáveis, do cai-cai de Neymar ao antijogo costarriquenho, como parte das regras não escritas do futebol. Quebrar esse mecanismo exige mais que discurso. Em sua missão professoral, Tite ainda precisa enquadrar a grande estrela da companhia aos princípios que apregoa para não desvirtuar de vez o compromisso de “vencer com a autoestima elevada”.
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